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30 anos da Lei de Cotas
Neste mês, uma grande conquista é celebrada: os 30 anos da Lei de Cotas (art. 93 da lei 8.213/1991). Uma lei que determina que empresas com 100 funcionários ou mais contratem pessoas com deficiência numa proporção de 2% a 5%, a depender do total no quadro de empregados. “Hoje pessoas com deficiência participam de processos de seleção com mais segurança, conhecem seus direitos, buscam melhoria profissional, contribuem com a renda familiar e, em muitos casos, são arrimo de família”, destaca a coordenadora do Programa Coexistir do Sindicato do Comércio Varejista de Gêneros Alimentícios do Estado de São Paulo, Maria de Fátima e Silva. Por isso, complementa a consultora Marta Gil, coordenadora executiva do Amankay Instituto de Estudos e Pesquisas, “falar dos 30 anos da Lei de Cotas é falar do exercício do Direito ao Trabalho por quem, durante séculos, não pôde exercê-lo – salvo honrosas exceções”. Até 2019, as estatísticas referentes à contratação de pessoas com deficiência no mercado formal de trabalho traçava uma curva ascendente contínua, segundo a RAIS/Relação Anual de Informações Sociais, instrumento de coleta de dados atualmente vinculado ao Ministério da Economia. Soma-se também a pandemia, que evidenciou barreiras de acessibilidade e de atitude. Tanto que o capacitismo, termo usado para definir o preconceito contra pessoas com deficiência, foi a dificuldade mais apontada pelos entrevistados da pesquisa Pessoa com Deficiência e Emprego, realizada durante dezembro de 2020 e janeiro de 2021 pela Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Estado de São Paulo. Neste Em Pauta, Maria de Fátima e Silva e Marta Gil apontam desafios e conquistas nestas três décadas da Lei de Cotas e refletem sobre o comprometimento de todas as esferas da sociedade para mudanças necessárias.
Precisamos falar de Direito ao Trabalho
MARTA GIL
Falar dos 30 anos da Lei de Cotas é falar do exercício do Direito ao Trabalho por quem, durante séculos, não pôde exercê-lo – salvo honrosas exceções. Verificamos a presença mais significativa de brasileiros e brasileiras com deficiência no mercado formal de trabalho a partir da promulgação da Constituição Federal do Brasil (1988). Mas foi em 1991 que o Artigo 93 da Lei 8.213 estabeleceu os critérios para a reserva legal de cotas para empresas com 100 trabalhadores ou mais. Dada sua importância, esse artigo passou a ser considerado “lei”. Porém, foi somente a partir de 2003 que a lei de cotas passou, efetivamente, a vigorar e a ser fiscalizada, com a aprovação de normas para a imposição da multa administrativa (Portaria no 1.199).
A Lei de Cotas é uma ação afirmativa, que visa combater discriminações e possibilitar o acesso ao trabalho. Até 2019, ela garantiu a contratação de mais de 500 mil pessoas com deficiência. Um círculo virtuoso vai se estabelecendo: pessoas até então vistas como “incapazes” passam a contribuir para o crescimento econômico, a consumir e a pagar tributos e impostos. Mais empresas reconhecem a diversidade trazida pela condição da deficiência como positiva, ao estimular a inovação e a descoberta de talentos e potenciais; contribuir para a qualidade do clima institucional, para a imagem institucional, interna e externa; e evidenciar a existência de significativo nicho de mercado a ser explorado. Esses fatores apontam para a sustentabilidade do negócio.
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – CDPD (ONU, 2006) impulsionou a inclusão, em especial no Brasil, onde foi recepcionada com equivalência de Constituição Federal (Decreto Executivo 6.939/2009) e posteriormente pela Lei 13.146/2015 (Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência), que a efetivou.
A partir desse breve retrospecto, podemos dizer – com o respaldo da CDPD – que a inclusão é um processo histórico, em constante devir. Também constatamos que receber formação profissional e começar a exercê-la em um mundo com regras próprias e em constante transformação ainda é uma vivência recente para esse grupo populacional.
Chegamos então ao ano de 2020, que se revelou um turning point para o Brasil e para o mundo – e, claro, também para as pessoas com deficiência. A pandemia escancarou situações de vulnerabilidade e desigualdade que atingiram os segmentos mais frágeis da sociedade: pela primeira vez, a presença de trabalhadores com deficiência mostrou ligeiro decréscimo em relação aos trabalhadores sem deficiência. Trabalhar em casa (home office) nem sempre é possível, seja pela precariedade (ou ausência) de acesso à internet; a intranet, as plataformas e ferramentas digitais da empresa que frequentemente não têm acessibilidade digital; ou ainda pelas características da função exercida, que precisa ser presencial – para mencionar alguns entraves.
Embora os dados da RAIS 2020 ainda não estejam disponíveis, sites de anúncio de vagas e levantamentos parciais, feitos por consultorias especializadas, apontam menor procura ao longo de 2020, evidenciando que o impacto da pandemia também foi sentido por este expressivo segmento populacional. Por outro lado, há sinais que apontam um cenário positivo. Segundo a Page PCD, a qualidade das vagas melhorou. No ano passado, enquanto as posições para auxiliar caíram de 27% para 13%, a busca por pessoas com deficiência para gerência ou níveis superiores saltou de 1% para 21%.
FUTURO À VISTA
Além dessas questões, que podem ser consideradas circunstanciais, pois se espera que a pandemia seja controlada, há que se ampliar a visão: a Quarta Revolução Industrial (ou Indústria 4.0), anunciada desde 2016, está se acelerando a um ritmo exponencial e constitui uma preocupação global. Documentos como a Declaração Centenária para o Futuro do Trabalho (OIT, 2019) e a Agenda 2030 (destaque para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável 8, 9 e 10) enfatizam a necessidade premente de incluir as pessoas com deficiência no contexto do crescimento econômico e do trabalho decente.
A publicação “Tornando Inclusivo o Futuro do Trabalho das Pessoas com Deficiência” (OIT, Fundação ONCE e Rede Global de Empresas e Deficiência/OIT – 2020) destaca o poder público, empresas, universidades, sindicatos e associações de pessoas com deficiência como sendo os agentes apoiadores que garantem, em um mundo em constante mudança, que as abordagens de trabalho estejam centradas nas pessoas com deficiência e outros grupos em situação de vulnerabilidade.
Já encontramos, no Brasil e em outros países, práticas de trabalho norteadas pelos princípios da inclusão e da equiparação de oportunidades. Porém, é necessário avançar mais, ampliando o espectro da articulação para envolver outros atores sociais.
UM CÍRCULO VIRTUOSO VAI SE ESTABELECENDO: PESSOAS, ATÉ ENTÃOVISTAS COMO “INCAPAZES”, PASSAM A CONTRIBUIR PARA O CRESCIMENTO ECONÔMICO, A CONSUMIR E A PAGAR TRIBUTOS
FAMÍLIA E ESCOLA
Destaco a importância de acrescentar pelo menos outros três atores sociais ao grupo de agentes apoiadores acima citados: a família, o sistema educacional (desde a creche) e órgãos e instâncias de representação, como o Ministério Público, que é uma instituição independente e não pertence a nenhum dos três poderes constitucionais, Conselhos de Defesa e Direitos de Pessoas com Deficiência, entidades representativas, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que tem comissões específicas, entre outras.
Ainda que o objetivo da publicação “Tornando Inclusivo o Futuro do Trabalho das Pessoas com Deficiência” contemple o mercado de trabalho formal, ou seja, que emprega pessoas com ou sem deficiência a partir de 16 anos de idade (exceto na condição de Aprendiz, cuja idade inicial é de 14 anos), considero relevante considerar os três atores sociais acima mencionados.
A família e a escola são as instâncias iniciais e decisivas para a formação da personalidade e o desenvolvimento do potencial social e mental que possibilitam ingressar no mundo do trabalho, seja como colaboradores ou como empreendedores. Também é preciso investir, desde o início da formação educacional, nas habilidades e atitudes que a Economia 4.0 demanda: saber fazer a curadoria das informações necessárias, investir na educação continuada (lifelong learning), estar constantemente atualizado, trabalhar em equipe e saber lidar com a fusão entre os mundos físico e virtual, entre outras habilidades.
Portanto, não é possível esperar até que as pessoas cheguem às universidades para que desenvolvam as habilidades requeridas pelo mercado. A participação é cada vez mais demandada, em todas as esferas da sociedade. Assim, é importante dialogar de forma mais próxima com as entidades de representação acima mencionadas, visando ao cumprimento dos dispositivos, valores e princípios constantes no atual ordenamento jurídico e marcos conceituais firmados pelo Brasil.
Quanto à Lei de Cotas, entendo que é necessário adequá-la à realidade atual. Esse é um processo a ser realizado de forma participativa, envolvendo os agentes apoiadores citados pela OIT e principalmente as próprias pessoas com deficiência, que devem ocupar cada vez mais o seu lugar de fala. Além disso, a adequação da Lei de Cotas deve estar fundamentada em pesquisas sobre a realidade do mercado de trabalho brasileiro.
Finalmente, nunca é demais enfatizar a importância que a Informação e a Comunicação têm ao longo de todo o processo recomendado: o desafio é chegar até a ponta, utilizando recursos de acessibilidade e todos os canais, dos acadêmicos às redes sociais, respeitando as diferentes culturas.
MARTA GIL é coordenadoraexecutiva do Amankay Instituto de Estudos e Pesquisas, consultora na área de inclusão de pessoas com deficiência, com ênfase em educação e trabalho, empreendedora social reconhecida pela Ashoka Empreendedores Sociais, palestrante em encontros nacionais e internacionais e escritora.
Rumo à desconstrução da invisibilidade social no mercado de trabalho formal
MARIA DE FÁTIMA E SILVA
Toda sociedade que exclui pessoas
do trabalho por qualquer motivo –
sua deficiência, sua cor ou seu
gênero – está destruindo a
esperança e ignorando talentos.
Se fizermos isso, colocaremos
em risco todo o futuro.
Robert White
Quando falamos de inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho se faz necessário entender que a cultura social marcada pelo assistencialismo, a caridade e a falta de informação pautaram nossa relação com o tema e ainda há muito que superar para desconstruir o ciclo de invisibilidade social ao qual estão submetidas, segundo Rosangela Berman Bieler em Desenvolvimento Inclusivo: uma Abordagem Universal da Deficiência (2006). Segundo Bieler, as pessoas com deficiência são escondidas das demais, tornando-se invisíveis a seus olhos, não se constituindo, portanto, em um problema na comunidade em que vivem.
Se não são problema social, e sim familiar, não há preocupação em oferecer a elas os mesmos serviços oferecidos aos demais cidadãos; se não são considerados cidadãos com direitos a serviços sociais, elas são discriminadas e por serem discriminadas são afastadas pela família dos demais cidadãos, e o ciclo não se interrompe.
Quando nos deparamos com essas pessoas, a nossa atitude revela não somente nossas crenças e valores individuais, como também o contexto social em que vivemos. Através de um condicionamento cultural assimilamos os preconceitos e reproduzimos estigmas de acordo com cada momento histórico. Dessa forma, a trajetória histórico-cultural das pessoas com deficiência reflete como se desenvolveram os valores da humanidade e nos ajudam a entender os motivos por que um dia condenamos ao extermínio membros imperfeitos e hoje estamos aprendendo a conviver com a diversidade humana.
CONQUISTA RECENTE
A Lei de Cotas completa 30 anos, porém, a avaliação de resultados de sua aplicação se dá a partir da sua regulamentação por meio do Decreto 3298/99, ou seja, nos últimos 22 anos, contados a partir da atuação da fiscalização das empresas que devem cumpri-la. Devemos reconhecer que passos importantes foram dados e algumas conquistas alcançadas.
Hoje pessoas com deficiência participam de processos de seleção com mais segurança, conhecem seus direitos, buscam melhoria profissional, contribuem com a renda familiar e, em muitos casos, são arrimo de família. Profissionais de RH (Recursos Humanos) aprofundaram seus conhecimentos, aprenderam novas formas de se comunicar com as pessoas com deficiência em busca de trabalho, trocaram informações entre si, desenvolveram programas, venceram desafios.
Essas mudanças trouxeram aos profissionais de RH a tarefa de rever seus conceitos e aprender sobre as formas de lidar com a diversidade humana. Hoje podemos conversar sobre experiências positivas da inclusão e como elas são úteis para a melhoria da qualidade das relações nas empresas. Relatos sobre superação e comprometimento são comuns quando se fala dos programas desenvolvidos. Entendemos que o processo de inclusão exige envolvimento, informação e vontade para promover a mudança cultural.
ENTENDEMOS QUE O PROCESSO DE INCLUSÃO EXIGE ENVOLVIMENTO, INFORMAÇÃO E VONTADE PARA PROMOVER A MUDANÇA CULTURAL
TRABALHO CONTÍNUO
Pessoas com deficiência devem ser contratadas por sua capacidade profissional e, caso seja necessária alguma modificação/adequação (compra de equipamentos, adaptações arquitetônicas etc.) para o desempenho de sua função, esta deve ser encarada como um dos investimentos que as empresas habitualmente fazem para promover a melhoria dos seus processos.
O cumprimento da legislação pede um trabalho contínuo tanto na busca quanto na retenção dos profissionais, bem como na concretização da inclusão, que exige um olhar atento para a qualidade dos processos. Pessoas com deficiência estão alcançando as mesmas oportunidades na organização? Estamos olhando para o desenvolvimento de suas carreiras, a transversalidade está inserida nesse contexto?
Os desafios ainda são muitos no momento que atravessamos um turbulento período que nos foi colocado pela pandemia da Covid-19. Profissionais de RH são desafiados a identificar e prover condições de acessibilidade para o desenvolvimento de trabalho home office, bem como estabelecer formas e critérios para acompanhar o desenvolvimento e resultado do trabalho realizado nessa condição.
Não se têm ainda resultados desse processo, porém trabalhadores com e sem deficiência devem ser ouvidos para que se possa avaliar esse novo momento. O que pensam do desenvolvimento das atividades nessa condição? O que lhes falta? As relações interpessoais, tão importantes para a mudança de cultura perante os profissionais com deficiência, estão comprometidas?
FORMAÇÃO DE REDES
A compreensão das dificuldades possibilitou o diálogo entre os parceiros e avanços na busca de formas de superar os desafios e garantir a qualidade nas ações de inclusão. A formação de redes por pessoas com deficiência, especialistas e profissionais que atuam em empresas vem contribuindo para entender o processo, buscar referências e promover debates.
O comportamento das empresas e suas relações com seus públicos podem influenciar uma postura mais reflexiva em relação ao respeito à diversidade e aos direitos das pessoas com deficiência. Deixar claro uma postura inclusiva na relação com os atores envolvidos, divulgar ações e desenvolver materiais informativos contribuem para que mais e mais pessoas compreendam e valorizem o tema.
MARIA DE FÁTIMA E SILVA é coordenadora do Programa Coexistir do Sindicato do Comércio Varejista de Gêneros Alimentícios do Estado de São Paulo, tem MBA em Gestão Estratégica de Pessoas pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e experiência na área de educação com ênfase em ações de inclusão e gestão da diversidade no mercado de trabalho com planejamento, implantação e coordenação de programas de inclusão social, responsabilidade social e sustentabilidade.
DEBATE ONLINE
Evento organizado pela Câmara Paulista da Pessoa com Deficiência, com apoio do Sesc São Paulo, celebra o 30º aniversário da Lei de Cotas, nos dias 23 e 24 de julho. Na programação, debates online com especialistas de diversos segmentos levantam reflexões sobre a inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho. No dia 24/7, será exibido um vídeo realizado pelo Sesc São Paulo junto a outras instituições: uma amostra de ações com foco na participação e cidadania das pessoas com deficiência. Saiba mais: https://www.camarainclusao.com.br/.