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Memória e polifonia
PARA A HISTORIADORA E MUSEÓLOGA, OS MUSEUS DEVEM ABRIR AS PORTAS PARA DIFERENTES VOZES DA SOCIEDADE
A importância de um museu vai muito além da definição, empregada pelos dicionários, de uma instituição onde se expõem obras de arte e objetos de cunho científico ou histórico. Os museus na contemporaneidade abrem-se para a dissonância e incorporam outras narrativas e objetos que antes eram deixados do lado de fora. No campo da museologia social, esse espaço deve ser apropriado como uma ferramenta de uso comunitário e participativo. E para a historiadora e museóloga Marília Bonas, diretora técnica do Museu da Língua Portuguesa essa é a bússola. Em sua atuação anterior como diretora-executiva do Museu do Café, em Santos, na direção do Museu da Imigração e na coordenação do Memorial da Resistência, ambos na cidade de São Paulo, Marília Bonas reforçou o papel dessas instituições como espaços de múltiplas vozes, que, muitas vezes, discordam. “Na área de museus falamos muito sobre processos, mas muitas vezes a gente está falando sobre sujeitos, sobre pessoas que são sujeitos da própria experiência. Então, como transformar esse lugar onde as pessoas não são objetos, mas sujeitos, e como os museus podem criar esse caminho das múltiplas vozes?”, questiona. Neste Encontros, a historiadora e uma das curadoras da exposição permanente no Forte São João, em Bertioga, realizada pelo Sesc São Paulo em parceria com a Prefeitura de Bertioga e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), desata nós. Afinal, qual a importância do museu para a sociedade hoje?
VALOR DA ESCUTA
Minha primeira grande experiência foi no Museu do Café, em Santos, onde rapidamente entendi a importância da escuta e a importância dos museus para traduzir e pensar vozes silenciadas e vozes já cristalizadas dentro das narrativas de identidade, e em São Paulo isso é muito forte. O Museu do Café fica no Palácio da Bolsa Oficial de Café, que é de 1922 e foi construído e restaurado em função de um movimento dos corretores da Praça de Café de Santos, que ainda é a maior praça de exportação. Mas todos os outros trabalhadores do café não estavam ali representados (no museu). Foi ali que comecei a entender, dentro dessa formação em museologia social, como alinhavar essas histórias. As histórias das catadeiras, das cerzideiras, da estiva, e como trazer e abrir espaço dentro dessas instituições para que essas vozes fossem representadas. Uma premissa muito usada nas comissões da verdade, em geral em comissões da verdade de povos originários, é: “Nada sobre mim sem mim”. Na área de museus, falamos muito sobre processos, mas muitas vezes a gente está falando sobre sujeitos, sobre pessoas que são sujeitos da própria experiência. Então, como transformar esse lugar onde as pessoas não são objetos, mas sujeitos, e como os museus podem criar esse caminho das múltiplas vozes? O Museu do Café foi a minha primeira grande experiência de curadoria colaborativa, e a gente levou três anos para construir uma exposição de longa duração que contou com a participação de diversas pessoas, desde a equipe de limpeza à diretoria administrativa.
LUGAR DE EMPATIA
O Memorial da Resistência é um lugar de memória da ditadura civil-militar, mas também da ditadura de (Getúlio) Vargas, e foi constituído e construído a partir da experiência de ex-presos dentro do espaço carcerário do Dops [Departamento de Ordem Política e Social, criado em 1924, foi um órgão do governo brasileiro utilizado principalmente durante o Estado Novo e mais tarde na Ditadura Militar]. E uma coisa é importante na área dos museus: não existe neutralidade e não existe totalidade. Toda escolha implica uma perda. Então, era um grupo de ex-presos que construiu uma narrativa de uma experiência. Outros ex-presos teriam construído outras narrativas. Isso implica que o museu esteja sempre aberto a essas outras vozes que não estão necessariamente presentes numa construção principal. Então, têm lacunas ali que foram identificadas muito cedo: a questão das mulheres, a questão do movimento negro, a questão LGBTQIA+. Questões em que a pesquisa do Memorial foi avançando para dar conta em exposições temporárias. Os lugares de memória têm um poder. Nem sempre a experiência da cultura é para ser prazerosa. Ela é uma experiência que te movimenta como ser humano e, às vezes, esse movimento não é a melhor das experiências, mas ele te transforma e te conecta. E o Memorial tem esse papel. Como gestora há a obrigação de encaminhar essa experiência. Ou seja, agora que você sentiu o quão terrível foi, o que você pode fazer como cidadão para que isso não se repita? Como você pode se posicionar em relação a isso? Então, o Memorial tem uma função educativa essencial, que é essa coisa de lembrar para não repetir.
CURADORIA COLABORATIVA
Queríamos contar a história do Forte (São João) Bertioga como um lugar de encontro, mas também um lugar de disputa. Então não poderia ser uma exposição que envelhecesse mal. Teria que ser uma exposição com uma camada de construção sobre a qual a própria população de Bertioga pudesse construir novas narrativas. Aí depois de um levantamento histórico, fizemos escutas sistemáticas. Por muito tempo, a história do forte contada pelos guias era muito distante do que de fato aconteceu, do que a gente sabe em termos de pesquisa. Quais eram os grupos indígenas? Sempre havia uma relação contraditória, como inimigo ou elemento constitutivo. Então, passamos a fazer as escutas sistemáticas da população de Bertioga. A gente ouviu a prefeitura, entendemos a necessidade de desconstruir os mitos dos heróis da cidade. Ouvimos os pescadores, os moradores do outro lado do canal, ouvimos sobre a cultura caiçara, fomos ouvir os guaranis e como eles se entendiam com essa herança tupi, que era de outro grupo da região, como era essa contradição. Isso tudo foi costurado a partir de escutas e de participação. O processo de curadoria colaborativa é essencialmente você saber o papel de cada um, negociar, ceder e pensar qual o objetivo maior. No caso do Forte Bertioga, o objetivo maior era contar a história do forte, mostrar por que ele é patrimônio nacional e, agora, com essa exposição, candidato a patrimônio mundial. E por que ele é tão importante? Por causa dessa história, por causa dessas memórias e afetos sobre essa história, e essas histórias sobre essa história, e pela importância que ele tem na identidade de uma região inteira. Estamos fazendo uma exposição para durar 20 anos, para a cidade se orgulhar e se apropriar, para os professores poderem usar e para os turistas entenderem por que Bertioga é importante. Vai ser a primeira exposição decolonial [que se desprende de uma lógica de mundo de origem eurocêntrica e se abre para uma pluralidade de vozes e caminhos] da história colonial do país.
DISSONÂNCIA FUNDAMENTAL
Por muito tempo, os museus tentaram construir um consenso e hoje a gente entende que o dissenso é fundamental, que o importante é a convergência de determinados valores comuns, e que esses dissensos enriquecem. Acho que o Museu da Língua Portuguesa hoje reabre com janelas de discussão de diferentes vozes. Uma polifonia numa harmonia de muitas vozes que têm suas tensões. E a gente quer discutir essas tensões. O museu abre um caminho de conciliação, inclusive, dentro de tantas narrativas. Acho que esse interesse do público pelos museus está no fato de essas instituições entenderem esse alinhavo e não se colocarem acima dele. Os museus não são só lugares de conhecimento, mas lugares de referências que podem ser mais próximas à sua.
Diretora técnica do Museu da Língua Portuguesa em espaço da mostra Língua Solta, que marca a reabertura do museu
LÍNGUA SOLTA E DIGITAL
No Museu da Língua Portuguesa há alguns temas sobre os quais a gente quer se debruçar. Um deles é a língua portuguesa na internet. A variante brasileira da língua portuguesa é a mais falada na internet, ou seja, na internet, quando se fala português se fala português do Brasil, e isso tem um impacto. Há um movimento de intelectuais portugueses dizendo que o Brasil está fazendo colonização às avessas. Linguistas portugueses vão abrir um Museu da Língua Portuguesa em Portugal, cuja agenda é “a verdadeira língua portuguesa”. Mas a língua é dinâmica. Então, acho que o Museu da Língua Portuguesa, no Brasil, tem essa provocação. Ele provoca os falares. A gente tem uma parte nova linda sobre os falares no Brasil, tem essa agenda contra o preconceito linguístico, e isso começa pela internet. A gente gosta de brincar com o erudito e o popular. A exposição que a gente vai abrir com o museu se chama Língua Solta, e para ela o Tom Zé compôs várias músicas a partir de placas de sinalização como: Não jogue o papel no chão. A gente gosta da diversidade da língua. No museu temos uma parte dedicada aos falares regionais. É lindo: tem crianças, imigrantes, jovens e indígenas falando. Você ouve todos os sotaques.
SEMANA DE 2022
Nosso recorte para 2022, para o centenário da Semana de Arte Moderna, pergunta: onde está a produção inovadora, disruptiva e contestadora em São Paulo hoje? Ela surge nos saraus, ela surge em outros ambientes que não são os ambientes da elite. Nós queremos falar disso: de slam, de trans sarau, Sarau do Binho [referência de expressão cultural e conscientização política na região do Campo Limpo, na Zona Sul de São Paulo], enfim, tem muita coisa em muitos espaços que são ou periféricos territorialmente ou periféricos em termos hierárquicos da “grande cultura”. Lugares de onde vêm grandes nomes como Emicida, de onde vem quem está trazendo uma nova maneira de olhar a própria cultura, essa coisa da antropofagia: quem é que está redevorando os modernos hoje? Então, esse é o tema do Museu da Língua Portuguesa para 2022 e também o do Museu do Futebol.
MARÍLIA BONAS esteve presente na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E no dia 20 de maio de 2021.