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Ser humano e atleta

A nadadora Joanna Maranhão. Crédito: Satiro Sodré | SSPress | CBDA
A nadadora Joanna Maranhão. Crédito: Satiro Sodré | SSPress | CBDA

NEM DEUSES NEM HERÓIS, PROTAGONISTAS NO ESPORTE E NA SOCIEDADE TÊM MUITA HISTÓRIA PARA CONTAR

Cabeça, músculos, ossos, tendões. Cada parte do corpo exerce um papel fundamental na engrenagem do organismo humano durante o exercício físico. Só que, para esportistas profissionais, esse desempenho precisa superar metas, bater recordes e se destacar de outros competidores. Para isso, dedicam horas e horas de treinos diários e têm uma alimentação específica. Tudo isso para um dia chegarem ao pódio mais alto e almejado, as Olimpíadas e Paralimpíadas, que neste ano serão realizadas em Tóquio (Japão), a partir deste mês. Para além do cenário esportivo, o público, focado nas competições e medalhas de seus ídolos, ainda desconhece quem são esses e essas atletas e paratletas. E poucos têm conhecimento da importância do papel de cada um deles e delas na sociedade.

São homens e mulheres que ainda enfrentam a homofobia, o racismo, o preconceito de gênero e tantos outros tipos de violência. Profissionais que, apesar de vivenciarem esses desafios, assumem um importante papel social pela defesa da representatividade. Afinal, enquanto a discussão sobre diversidade estiver presente em todas as esferas da sociedade, será possível transformar intolerância em empatia. Cai o mito, ou a ideia de herói e heroína, para dar lugar a atletas de carne e osso, e toda sua complexidade.

Curadora da exposição Ser Atleta (leia Diversidade na prática), a professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e psicóloga Katia Rubio investiga há mais de 20 anos a trajetória dos atletas olímpicos nesse ambiente diverso. “Entendo que aquilo que mobiliza o papel social do atleta é essa relação com o mito do herói. Um feito atlético, do ponto de vista olímpico, imortaliza o seu protagonista e isso é inegável. Diante da impossibilidade de negar esse fato, queremos mostrar com a exposição que, para além disso, o atleta é essencialmente humano, e, na condição de ser humano, suscetível a todas as mazelas da sociedade. Mazelas de seu tempo histórico, da sua classe social, da sua identidade”, explica.

Por isso, a exposição abrange cinco eixos da diversidade, em referência aos cinco arcos olímpicos. São eles: Ser Diferente?, Ser LGBTQIAP+, Ser Migrante, Ser Mulher, e Ser Negra e Ser Negro. Cada um é composto por quatro atletas olímpicos e dois paralímpicos que, por meio de fotos, vídeos, textos, animações e áudios, contam suas histórias de pertencimento e identificações sociais. “Fomos em busca de histórias significativas que revelam não apenas o protagonismo do atleta do ponto de vista de sua habilidade, mas seu protagonismo social. Isso significa buscar esses outros papéis que o atleta protagoniza e o impacto disso na sociedade”, complementa.

Conheça a história de cinco representantes notáveis do esporte, que participam de cada arco temático da exposição Ser Atleta:

O atleta Alfredo Gomes (1899-1963) | Crédito: Acervo da família 
 

Ser Negra e Ser Negro

ALFREDO GOMES (1899-1963) Atletismo

O paulista Alfredo Gomes sai na frente na história do atletismo brasileiro ao representar o país nos Jogos Olímpicos de Paris, em 1924, e ao vencer a primeira edição da São Silvestre no ano seguinte. Ele foi o primeiro atleta negro a compor uma delegação olímpica brasileira. Neto de escravizados, nasceu em 16 de janeiro de 1899, na cidade de Areias, interior de São Paulo, de onde seguiu com a família rumo à zona leste da capital em 1914.

Apesar de ter demonstrado interesse inicial pelo futebol, jogando pela agremiação Guarani do Tatuapé, foi com a prática do atletismo, iniciada com a mudança para o Esporte Clube Corinthians, que sua carreira começou a ser traçada. No entanto, o sucesso veio com a troca para a pista de atletismo do Clube Esperia. Apaixonado pelo esporte, Alfredo Gomes ignorou o desprestígio e condições precárias em que se encontrava a modalidade nos anos 1920. Treinava sem técnico, mas mantinha um regime disciplinado de práticas.

Aos 20 e poucos anos, figurava entre os principais nomes do atletismo brasileiro, quebrando recordes e liderando, ao lado de outros atletas, o movimento esportivo metropolitano. Paralelamente aos treinos, Alfredo trabalhava como técnico de telefonia para a Cia. Telefônica Brasileira (CTB), na qual se tornou inspetor de telefonia. Atividade que exerceu por 51 anos, atuando também no sindicato de sua categoria.

Os seis meses que involuntariamente passou na França, por conta da Revolta Tenentista de 1924, acabaram corroborando para o seu aprendizado dos idiomas inglês, italiano, alemão e francês. Na Europa, também enfrentou o racismo como negro e imigrante. Alfredo Gomes faleceu aos 64 anos, enquanto fazia os seus rotineiros trotes de dois quilômetros na pista do Clube Esperia. A partir de 2015, sua história começou a ser resgatada pelo neto Antônio Carlos, advogado e poeta. Foi ele o principal responsável pela emergência da memória do avô no espaço público ao pesquisar, lançar e divulgar o livro Vida, Vitórias e Conquistas, sobre o avô, devolvendo seu papel à história do esporte nacional.

 

Ser Mulher

Joanna Maranhão – Natação

Proibidas de participar da primeira edição dos Jogos Olímpicos da era moderna, em 1896, as mulheres ainda enfrentam preconceitos, abusos e outras violências no campo dos esportes em pleno século 21. No entanto, nos últimos anos, após denúncias e manifestações, esportistas de todo o mundo demonstram que esse movimento por direitos e contra a violência está cada vez mais provocando mudanças. Esse é o caso da ex-nadadora Joanna Maranhão, protagonista dessa luta dentro e fora das piscinas. Nascida em Recife (PE), em 29 de abril de 1987, Joanna de Albuquerque Maranhão Bezerra de Melo começou a nadar no Clube Português do Recife aos três anos, com o incentivo da mãe. Aos 12, transferiu-se para a academia de natação do técnico Nikita e, com ele, se especializou. Em 1999, participou dos Jogos Pan-Americanos de Winnipeg.

Aos 16 anos, foi aos Jogos Pan-Americanos de Santo Domingo, e em 2003 conquistou a medalha de bronze. Competiu nos Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004, ocupando o ranking de 5ª nadadora mais rápida do mundo nos 400 metros medley, com apenas 17 anos. Nos Jogos Pan-Americanos do Rio de Janeiro, em 2007, foi medalhista de bronze e nos Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008, bateu o recorde sul-americano da prova dos 200 metros medley. Naquele mesmo ano, Joanna revelou que havia sido molestada sexualmente, aos nove anos, pelo seu então treinador.

Enquanto teve que lidar publicamente com os desdobramentos da denúncia, Joanna não abdicou de sua carreira e, em 2011, nos Jogos Pan-Americanos de Guadalajara, conquistou a medalha de prata e de bronze. Até que, no ano seguinte, nos Jogos Olímpicos de Londres, momentos antes da prova dos 400 metros medley, sofreu um súbito desmaio no vestiário da piscina, fato que a tirou da prova.

Em 2012, o caso de abuso sexual sofrido por Joanna deixou um marco na legislação brasileira com a aprovação da lei “Joanna Maranhão”, que muda as regras para esses casos, estabelecendo que o prazo de prescrição de abuso sexual de crianças e adolescentes seja contado a partir da data em que a vítima completar 18 anos. Formada em Educação Física, Joanna encerrou a carreira de atleta no início de 2014. Na ocasião, divulgou uma carta escrita para a criança que sonhava ser medalhista, “a Jujuca”:

Escrevo para te falar uma coisa que você precisa lembrar para o resto da sua vida: VOCÊ NÃO TEM CULPA. Sei que você pensará isso várias vezes, sei que esse sentimento fará de você sua principal adversária, sei que esse pensamento terá o poder de tirar esse sorriso, mas confia em mim, você é forte o suficiente para superar tudo isso.

Hoje, Joanna atua em vários projetos voltados para o acesso ao esporte e também na luta contra a pedofilia por meio de sua ONG Infância Livre, criada em 2014, voltada para crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Lá, são oferecidas aulas de educação sexual para crianças e para profissionais que trabalham com elas.

Tuany Barbosa, do arremesso de peso | Crédito: Washington Alves | Exemplus | CPB
 

Ser LGBTQIAP+

TUANY BARBOSA – Atletismo / Arremesso de Peso

Tuany Barbosa nasceu e foi criada na comunidade Jacarezinho, zona norte da cidade do Rio de Janeiro, onde conheceu o judô aos oito anos de idade por meio de um projeto social. Segundo a atleta, o esporte foi a oportunidade para não ter seguido o caminho do tráfico, como aconteceu com outros colegas. Seu talento foi notado em uma competição amadora, dando-lhe a oportunidade de continuar treinando em uma pequena academia do bairro. Foi praticante de judô olímpico durante 15 anos, chegando a ser campeã brasileira. Até que em 2014, aos 21 anos, durante o GP Brasil de Interclubes, na luta contra a campeã olímpica e mundial, Idalys Ortiz, sua perna ficou presa no tatame. Parecia o fim da carreira de Tuany nos esportes.

O lento e árduo processo de recuperação deixou como sequela a perda de movimentos do joelho para baixo da perna lesionada. Três anos após o acidente, tempo em que também enfrentou uma depressão, ela foi levada pelo ex-judoca Flávio Canto, fundador e presidente do Instituto Reação, para o Movimento Paralímpico. Em São Paulo, Tuany reconheceu no Centro de Treinamento a possibilidade de retomar a carreira nos esportes. Atleta paralímpica do arremesso de peso, classe F 57 (sem movimento nos membros inferiores), Tuany começou a treinar em 2017 e logo se consagrou na modalidade.

Recordista brasileira, vice-campeã Parapan-Americana, terceira do mundo, a atleta se prepara para o próximo desafio: as Paralimpíadas de Tóquio, ao final de agosto. Além de todos os desafios vencidos, Tuany enfrentou o preconceito por ter assumido a homossexualidade publicamente. “Olhando pra mim as pessoas já veem. Não preciso falar que sou negra, lésbica ou tenho deficiência. Pelo olhar de cada um eu vejo qual característica minha chama mais atenção. Uns perguntam se sou senhor ou senhora, porque tenho cabelos curtos e roupas largas. Mas eu sou mulher, que gosta de outra mulher”, disse. Em entrevistas, a superação e vitória no esporte se combinam à defesa da existência e dos direitos LGBTQIAP+. 

O jogador de rúgbi Juliano Fiori | Crédito: Acervo pessoal

 

Ser Migrante

JULIANO FIORI – Rúgbi

Juliano Fiori nasceu em Londres (Inglaterra), em 1985, para onde os pais se exilaram na década de 1970, durante a ditadura militar. Lá, começou a jogar rúgbi na escola, com apenas seis anos de idade, mas também brincava com outras modalidades, como futebol, tênis, atletismo e cricket. Apesar da distância da família, desde a infância, Juliano visitou periodicamente o Brasil, para encontrar os parentes.

Aos 18, recebeu um convite para jogar rúgbi pela equipe do Richmond, o que conseguiu fazer simultaneamente com os estudos universitários, de maneira semiprofissional. Cursou Letras Clássicas e em seguida um mestrado em Relações Internacionais na Universidade de Cambridge. Mas sempre conciliou a atividade estudantil com os treinos e competições de rúgbi. Tanto que jogou em outro clube inglês, o Apache.  Após a conclusão do curso universitário, Juliano morou durante um período em Nova York, onde foi estagiário da Organização das Nações Unidas. Neste tempo, ficou afastado do rúgbi. Até que, ao retornar à Inglaterra, passou a trabalhar na ONG Save The Children e voltou a praticar a modalidade.  Foi somente no Brasil que Juliano fez contato com a seleção por intermédio do pai, que ao visitar país encontrou a delegação brasileira da modalidade no aeroporto, em 2010.

Após dizer ao gerente da equipe que tinha um filho que jogava rúgbi, ele pegou um cartão e levou para Juliano, que ficou com receio de fazer o primeiro contato. Meses depois, porém, a seleção brasileira foi para uma fase de treinamentos na Inglaterra e jogou justamente contra a equipe de Juliano.

A partida acabou aproximando o atleta de alguns jogadores, e em 2014, finalmente começou a treinar com a seleção brasileira de rúgbi sevens. Além de ter o objetivo de representar o Brasil, Juliano seguia trabalhando na ONG. Ele deixou a instituição em março de 2016, quando tirou um ano sabático para dedicar-se exclusivamente à seleção brasileira de rúgbi, com a qual foi aos Jogos Olímpicos e ficou em 12º lugar. “Tive a sorte na Inglaterra e no Brasil de ter tido uma vida profissional e pessoal que me permitiu fazer viagens entre os dois países para representar a seleção”, disse em entrevistas na época.

 


A nadadora Joana Neves | Crédito: Marcelo Regua | MPIX | CPB
 

Ser diferente?

JOANA NEVES – Natação

Como deve ser o corpo de um atleta? Alto, forte? A imagem estereotipada de homens e mulheres no cenário esportivo não condiz com a pluralidade de corpos existentes no mundo. Padrões tampouco respondem pelo melhor rendimento ou domínio de habilidades de um atleta em ação. Esse é o caso da paratleta Joana Neves.

Potiguar de Natal, Joana nasceu em 14 de fevereiro de 1987 com acondroplasia, um tipo de nanismo. Aos 13 anos, por recomendação médica, entrou na natação para evitar fraqueza nos ossos. Um ano depois, em 2001, foi convocada para a Copa das Américas. Em sua primeira competição internacional, passou pela classificação funcional, que não levou em conta seu nanismo por conta da idade. Da classe S5 (comprometimento físico moderado a severo) a subiram para S9 (mínimo de comprometimento físico). Passou, então, a competir com atletas com muito mais mobilidade, mas não desistiu.

Somente em 2010, foi reclassificada como S5 e realizou suas conquistas. Participou de cinco campeonatos mundiais, três Jogos Parapan-Americanos e dois Jogos Paralímpicos. No Campeonato Mundial de Natação Paralímpica em Glasgow, no ano de 2015, ganhou duas medalhas de ouro e uma de bronze. Também foi medalhista de prata nos Jogos Paralímpicos, no Rio de Janeiro, um ano depois.

Eleita a Melhor Nadadora Paralímpica do Brasil, título que a fez receber o Troféu Best Swimming, “a peixinha”, como é conhecida, não se esquiva da oportunidade de falar sobre capacitismo, termo usado para definir o preconceito contra pessoas com alguma deficiência, e compartilhar seus desafios e vitórias com outros e outras jovens que desejam seguir o caminho do esporte. “Seja sua própria inspiração, torça por você, vibre a cada vitória, chore a cada derrota, mas nunca desista de ser quem você sempre quis ser”, escreveu em sua página no Instagram. Em agosto, a nadadora Joana Neves também vai representar o Brasil nas Paralimpíadas. 

 

Diversidade na prática

EXPOSIÇÃO REFLETE SOBRE DIFERENTES REALIDADES E REPRESENTATIVIDADE DE ESPORTISTAS OLÍMPICOS E PARALÍMPICOS

De onde vieram e quais desafios enfrentam diariamente atletas e paratletas do Brasil? No ambiente online do Sesc Itaquera, a exposição Ser Atleta, realizada pelo Sesc São Paulo, em parceria com o Comitê Olímpico do Brasil (COB) e Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB), levanta essas e outras questões. Fora das quadras, ginásios, pistas, campos, tatames e piscinas, o que eles e elas representam na sociedade?

“Esta exposição permitirá ao público a mobilização de outros olhares para o fenômeno esportivo, transcendendo a imagem do pódio como a única cena representativa do atleta vitorioso e trazendo de forma sensível e provocativa a identificação e a projeção do público com a interface esporte-diversidade”, explica Elder Marques, supervisor do Núcleo Físico Esportivo do Sesc Itaquera.

Na abertura, dia 19 de julho, serão apresentadas dez narrativas. Em agosto serão lançados mais dez novos conteúdos e, em setembro, os últimos dez. Ser Atleta também apresenta uma Linha do Tempo com 100 marcos históricos de avanços e retrocessos sociais relacionados aos cinco eixos temáticos. Os visitantes ainda terão acesso a um espaço educativo com materiais direcionados para professores e educadores, visitas virtuais mediadas e quatro jogos online. Além disso, de julho a novembro, a programação do Sesc Itaquera reúne bate-papos, oficinas, cursos e atividades para crianças que dialogam com a exposição, que se encerra dia 30 de novembro. Visite: seratleta.sescsp.org.br.

 

 

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