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A difícil tarefa de contar uma história
Transglobe. Esse era o nome da fera. Recebia notícias do Brasil, da Europa, da União Soviética e dos Estados Unidos. Alimentado por seis pilhas médias, dono de uma antena que lembrava uma varinha de pescar e com dial luminoso, esse rádio da Philco foi um dos responsáveis pelas paisagens sonoras da minha infância nos anos 1970/80. Zé Béttio, Barros de Alencar, Gil Gomes, Paulo Barboza e Silvio Santos. Causos, ave-marias, horóscopo, fofocas, crimes e sucessos populares. A rádio AM era como se alguém estivesse sobre a geladeira conversando com você.
A toada passou a ser outra, com menos papo e mais música, com a chegada do rádio-relógio em casa, que trouxe o FM e seus locutores apressados. Era a velocidade desembestada do pop, da democratização que finalmente se aproximava e da pré-adolescência.
Em 1985, o três-em-um da National passou a definir o que, quando e quanto se tocava. Era a autonomia do ouvinte! Enquanto os discos (e a autonomia!) não chegavam, o único caminho era gravar em fita cassete as músicas da FM, que exigia determinação, senso cirúrgico e paciência oriental. Como conta Sérgio Seabra, amigo de longa data: você tentava apertar o rec após a vinheta da emissora estragar o começo da música, como também acionar o pause antes do fim, quando a vinheta voltava para desgraçar de vez sua trilha. E o adolescente ficava somente com o refrão. Mas essa realidade não era vivida pelos afortunados do bairro, que tinham elepês a granel, garantia de extrações sonoras indolores e integrais, podendo, ainda, ordenar as músicas conforme seu interesse e malícia.
Somente muitos anos depois, a falta de insumo para compilações individuais encerra-se no Brasil. As plataformas de streaming de áudio começam a operar a partir da primeira metade dos anos 2010. Só a Deezer conta com mais de 70 milhões de músicas.
Assim, a seleção musical ganha novo status, vira playlist e commodity. Se antes as fitas magnéticas definiam a duração da coletânea (30, 45, 60, 90 ou 120 minutos), as playlists via streaming podem durar horas, com 50, 100, 200 músicas. Os recortes temáticos são tão variados quanto o repertório disponível, mas aqueles que sanam algum tipo de necessidade são os campeões da audiência. São os tais moods ou humores. Músicas para dirigir seu possante, para o seu churrasco, para louvar, relaxar, para apimentar sua relação. A novidade não reside aí: os elepês já ofereciam a trilha sonora conforme a demanda do freguês. A diferença é que, de 12 faixas, a coletânea passou a ter dez vezes mais.
Por obra do destino, trabalhei na Rádio Cultura Brasil (AM 1200 kHz), da Fundação Padre Anchieta. Ali, no fim dos anos 2000, antes mesmo da chegada ao país das plataformas de streaming, ao lado de colegas radialistas, como Vilmar Bittencourt, Julio de Paula e Eduardo Weber, testemunhei o quão fascinante pode ser contar uma história por meio de uma seleção musical na Internet. Os preceitos eram básicos: “o que se quer contar?”, “por quê?”, “com quem?” e “para quem?”. A ordem das músicas definia o enredo: o começo, o meio e o fim. Mas tudo sem esquecer do mais importante: a seleção tinha de ser gostosa de ouvir.
Esse espírito – o de contar histórias por meio de uma playlist – alimenta parte do trabalho do Sesc São Paulo junto ao Deezer, Spotify e Apple Music. Compreender e respeitar as regras do terreno em que se joga é parte da inteligência para qualquer tipo de conteúdo digital. Assim, não se negam os moods e os grandes agrupamentos temáticos que predominam e dão sentido às plataformas e aos desejos dos usuários, mas expor a intencionalidade, o que se quer contar, amplia as opções de criação e de descoberta. E, claro, dá um brilho para a autoria e para o Sesc São Paulo, que passa a ser um ambiente de boas histórias, sacadas e trilhas. Pode ser ingenuidade infantil, mas vale mirar o Transglobe e vencer suas próprias fronteiras.
RICARDO TACIOLI SERAFINI é graduado em Ciências Sociais e coordenador de Programação do Sesc Digital.
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