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Telma Scherer

Ilustrações: Paulo Sayeg
Ilustrações: Paulo Sayeg

Um homem que sabe tudo

é um homem que tem medo

e nunca será uma árvore.

Não terá galhos, nem olhos

para ver o que não sabe.

Um homem sabe o medo,

quando é arrogante

e arrota nas madrugadas.

Tem filhos, tem bens,

não sabe dizer: “meu bem”.

Um homem é sempre filho

e mija atrás dos muros,

diz que pode, porque paga,

e morre na madrugada.

Um homem que sabe tudo

já morreu, para a mulher,

antes que o filho aprenda

a mijar também, a arrotar,

a escarrar

na cara das notícias.

O filho do homem que sabe

também sabe, mas

morre

antes de nascer.

Surge, de manhã,

em forma de sonho

que a mulher apaga

assim que acorda

com o barulho do homem

e levanta

para ver o sol

do seu próprio ser.

O homem

jamais desperta.

Ele abre os olhos,

começa

toda sua aula completa

sobre nunca se saber.

A mulher

sabe que não sabe.

Ela já foi embora

antes que ensinasse

ao homem

como se limpa um sonho,

como se abrigar

do medo

entre os braços,

fazê-lo dormir,

tirá-lo da sala

e limpar a cozinha.

A mulher não sabe

como é que ela fez.

E sabe.

Ela não lembra

de ter fabricado

o seu próprio caldeirão.

Dentro da noite,

mexe,

com sua colher de sonho.

 

Subimos as escadas

do farol

para ver a paisagem.

Os leões

ficaram lá embaixo,

fazem xixi amarelo.

Ouvimos os seus gritos

soados

na era dos dinossauros.

Sua pele combina

com as pedras

manchadas em alguns pontos

onde os leões

se aninham, nojentos.

Eu, você, sua pele combina

com o rugido dos bichos,

seus cabelos

se enredam

ao pé do vento

onde subimos,

para ver a paisagem.

Você já viu tudo, e senta

no último degrau, me espera

como uma criança

enquanto faço as fotos

que você nunca verá.

Sua face, assim, sentado

combina com o farol, no topo:

você combina o tempo todo

com esse medo de cair

se me alongo mais um pouco

para fazer um close

no leão lá embaixo, um porco

que urra e de repente é você

que solta a gosma da boca

enquanto se move, um vagar,

e se ajusta na outra pedra.

Você e esse leão, tão amigos,

já viram tudo, já fizeram

tudo o que quiseram

comigo,

já mijaram no vento amarelo,

dormiram no ponto

onde o sol se põe

e vocês combinam, sim,

já combinaram

de me ver cair,

o leão-marinho

e você,

meu urso,

um urso apenas

de passagem.

 

 

TORNA-VIAGEM

encontrei a cobra

cortada ao meio

e ainda filhote

cheguei a salvo do

bote da jararaca

apesar de cortada

ela estava

com a cabeça

em pé

os vizinhos já cansaram

de dizer

que devo cortar as gramas

podar os matos

por questões de segurança

por questões de higiene

por favor

há tantos perigos

nessas varandas

eu não ligo

para os vizinhos

eu moro

à vista das cobras

empilho garrafas

vazias

de vinho

dizem

ali mora a bruxa, olha

ela deixa ao léu

ela bebe

e quando sai

nem nos cumprimenta

não tem nem carro

é bela pangaré

eu escarro

nas varandas

na da frente

e na de trás

observo como somem

a cada tossida rouca

como se trancam

a salvo da mulher louca

sou como a cobra

que mataram

tenho a cabeça

em pé

dou apenas alguns passos

no meio da pandemia

meu pequeno corpo morto

olha o céu

escarra

na cara de quem mata

no pátio devassado

cenário do descalabro

quem terá matado

a outra

erguida ainda

no meio do meu peito?

 

 

é ânsia de voto ou de vômito,

vontade de falar tudo o que vai na goela;

é gula civil

esse gosto amargo enforcado na garganta,

esse lodo preso nas telas, no passo em punho,

nas poças do sangue

deslocado de sentido

.

é enjoo, sim, é vontade de voo,

de voto, de voragem

e de alguma sorte,

mas os tempos são outros:

tempos de julgar, de saber, de prender,

de passar as escopetas de punho em punho,

.

são tempos de morte, pandemia,

as panelas vazias e cheias de ruído

dizem que não, não sossegue, e se negue

a toda a vida assim amortecida

entre os trunfos tão falsos dos perfis

.

e são tempos de fome, sim:

fome de céu, de abraço, de um silêncio

que congregue

quem pede

que culpem os culpáveis,

não a culpa.

.

são tempos de desinventar

o que odiar, de parar pra pensar

em criar um lugar bem sossegado

(um pátio, um peito, uma página)

pra sarar dos atropelos

enquanto eles pagam a conta.

 

 

Telma Scherer é escritora, artista e professora de Literatura Brasileira na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Publicou o romance Lugares Ogros (Caiaponte, 2019), o híbrido Entre o Vento e o Peso da Página (Medusa, 2018), e cinco livros de poesia, entre eles Rumor da Casa (7 Letras, 2008), Depois da Água (Nave, 2014) e Squirt (Terra Redonda, 2019), este último, semifinalista do prêmio Oceanos de Literatura em Língua Portuguesa. Suas obras mais recentes são o poema Não Alimente a Escritora (Urutau, 2021) e o romance As Avessas (Ipêamarelo, 2021).

 

 

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