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Não dá para fazer milagre
Por: CARLOS JULIANO BARROS
Nascido em Madri, capital da Espanha, Carlos Buch Pastoriza chegou ao Brasil com apenas 3 anos. Mas o sangue quente – folclore ou não –, típico de sua terra natal, aflora à pele quando ele discorre sobre o atual cenário econômico do país e, principalmente, acerca da situação da indústria brasileira. Engenheiro químico formado pela Universidade de São Paulo (USP), Pastoriza não administra mais a fábrica de testes de peças que tocou com o falecido pai, no município de São Bernardo do Campo – onde chegou a se candidatar a prefeito pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), em 2000. Depois de vender a empresa a uma multinacional americana, ele assumiu a presidência da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq).
Hoje, aos 58 anos, Pastoriza se dedica à representação do chamado “setor de bens de capital”. Em sua avaliação, a derrocada desse segmento, que nos últimos três anos amargou uma retração de 22%, é um termômetro exemplar da crise política e econômica que assombra o país. Nesta entrevista exclusiva concedida a Problemas Brasileiros, na sede da Abimaq, zona sul da capital paulista, Pastoriza vociferou contra o câmbio supervalorizado, as altas taxas de juros e o famigerado “Custo Brasil”. “A indústria de transformação definha e nós estamos virando basicamente uma economia exportadora de commodities”, lamenta.
Problemas Brasileiros – Vivemos um cenário de estagnação econômica, além de alta da inflação e das taxas de juros. O setor de bens de capital, que compreende a produção de máquinas e equipamentos, vem registrando forte queda. Como o senhor analisa o atual momento econômico?
Carlos Buch Pastoriza – Nosso setor está regredindo desde 2012. No acumulado de três anos, houve um recuo de 22%. Com o que infelizmente esperamos cair em 2015, vamos acumular uma queda de faturamento que pode superar 30%. A questão do setor de máquinas e equipamentos é relevante não só para nós, mas para todo o país, porque estamos no centro de um hub. Somos fornecedores de todos os outros setores da economia brasileira. Não só a indústria, mas o setor de comércio e de serviços também utiliza máquinas e equipamentos.
PB – Trocando em miúdos: o setor de bens de capital é uma espécie de termômetro da atividade econômica?
Pastoriza – Exatamente. Inclusive, é um termômetro antecipado porque o que o país investe hoje em maquinário é o que o Brasil vai crescer amanhã. Qualquer economia só cresce se tiver investimentos. Quando falamos em investimento – o termo técnico é “formação bruta de capital fixo” –, 40% corresponde a maquinário. O resto compreende custos com galpões industriais e comerciais, informática, mas o grosso é maquinário. O fato de o setor de máquinas e equipamentos vir experimentando um decrescimento de vendas significa que o Brasil está reduzindo seu nível de investimento ano após ano. Investimento público e privado. Isso é visível para qualquer cidadão: é só olhar para a carência de infraestrutura que temos em portos, aeroportos, ferrovias, estradas. Também é visível para as indústrias na medida em que você percebe um número cada vez maior de fábricas defasadas, tecnologicamente, com parque fabril antiquado porque não há investimento. Houve uma conjugação macroeconômica muito ruim que começou há dez anos. Teve início com o boom dos preços das commodities, principalmente soja e minério de ferro, que tiveram seus preços multiplicados em dólar. Isso provocou uma sobrevalorização artificial do real. Por essa razão, o produto importado ficou mais barato do que o nacional, a indústria local passou a sofrer tremendamente com a concorrência, perdendo market share (participação no mercado) e deixando de exportar. Assim, as indústrias passaram a vender menos, com margens muito mais comprimidas, e a operar sem lucro. Sem lucro, não investiram e ficaram atrasadas.
PB – Muitos criticam a “reprimarização” da economia brasileira. Porém, o setor primário é bastante intensivo no uso de tecnologia. Isso não contribuiu para o crescimento do setor de bens de capital?
Pastoriza – Sim, contribuiu. Durante alguns anos, vendemos muitos bens para a indústria de mineração. Também entregamos várias máquinas e implementos agrícolas. Dos 30 setores que a Abimaq representa, esse é o único que está bem porque seus clientes também estão bem: agricultores que estão vendendo e exportando produtos agrícolas. Nós não temos nada contra as commodities. Mas o Brasil deveria seguir o exemplo dos Estados Unidos, que é um grande produtor e exportador de commodities agrícolas e minerais e, ao mesmo tempo, uma grande potência industrial. No Brasil, por causa dessa equação macroeconômica complicada, a indústria de transformação está definhando e nós vamos virando basicamente uma economia exportadora de commodities, negócio que, por definição, é pouco gerador de valor agregado. Além disso, não cria tantos empregos nem bons empregos. Também não contribui tanto assim para a Pesquisa & Desenvolvimento (P&D). No mundo inteiro, 70% da P&D vem da indústria de transformação – do setor privado, inclusive. Por fim, a atividade das commodities é concentradora de renda porque tem uma cadeia produtiva curta. Esse é o grande risco que o Brasil vive hoje: reprimarizar a economia, chegando a tal ponto de desidratação da indústria que não haverá retorno.
PB – Recentemente, o governo lançou uma série de medidas que compreendiam o corte de direitos trabalhistas, o aumento de tributos e a elevação de tarifas, como a da energia elétrica. Essas medidas foram apelidadas – inclusive pelo senhor – de “pacote de maldades”. O próprio governo e muitos analistas afirmam que o ajuste fiscal é necessário para resgatar a credibilidade da economia brasileira. O senhor concorda com a iniciativa?
Pastoriza – Era necessário fazer um ajuste fiscal porque o governo estava gastando demais. No ano passado, não tivemos um superávit primário, mas um déficit. É preciso colocar a casa em ordem para voltar a dar confiança aos agentes econômicos, aos investidores nacionais e estrangeiros. Mas a maneira como esse ajuste está sendo conduzido é contraprodutivo para o próprio governo.
PB – O ajuste fiscal penaliza a atividade industrial e a geração de empregos?
Pastoriza – Sim. E penaliza inclusive a população. Dos R$ 110 bilhões que o governo se propõe a economizar para gerar superávit, apenas 20% correspondem a cortes de gasto de custeios – o que deveria ser prioritário. Os outros 80% são cortes de investimentos públicos ou aumento de impostos e taxas ou desmonte dos poucos instrumentos de política industrial que ainda existiam neste país. Fora o aumento da Selic [taxa básica de juros da economia]. Todo o ajuste que o governo está fazendo é no sentido de aumentar o “Custo Brasil”. Ou seja, será um ajuste fortemente recessivo e vai ser um tiro no pé porque não vai levar ao aumento, mas a uma queda da receita. Isso já aconteceu em janeiro.
PB – O Brasil tem uma das dez mais altas taxas de juros do mundo. Como isso afeta a atividade industrial do país?
Pastoriza – Afeta diretamente. E eu não me refiro à Selic, eu me refiro à taxa de mercado. A Selic está batendo em 13%, mas qualquer empresa média paga 30% ao ano. Aqui o spread [diferença entre o que um banco gasta para captar e o que ele cobra para emprestar dinheiro] é gigantesco, muito pior que a própria Selic. Essa distorção advém de um poder descomunal que o sistema financeiro tem na política, na economia e na formação de opinião no Brasil. A indústria, há muitos anos, está perdendo de lavada a batalha da comunicação. O setor financeiro domina grande parte dos articulistas e economistas ditos independentes. Dizem: “Os industriais são uns molengas, uns mamadores, uns chorões – eles que se desenvolvam”. Enquanto isso, os bancos praticamente não pagam Imposto de Renda e têm margens de lucro “pornográficas” – não há outro termo. Com esse espaço gigantesco que eles detêm, através dos articulistas cooptados, fazem a cabeça até de gente supostamente esclarecida. Muitas pessoas dizem: “Tem de aumentar os juros porque a inflação vem aí”. Estamos com uma recessão cavalar e precisamos conviver com uma taxa de juros desse nível? Veja a planilha de custo de qualquer industrial: o custo do capital de giro é muito alto. A indústria de transformação, por definição, é de cadeia produtiva longa: atrás de um fabricante há seis, sete, oito fornecedores. Em cada uma dessas planilhas, há um dispêndio de capital. Então, chega ao fabricante de máquina um custo de capital multiplicado por sete.
PB – O debate econômico no Brasil é refém dos interesses do mercado financeiro?
Pastoriza – Quem contesta é massacrado. Lembra quando a presidente Dilma, no primeiro mandato, resolveu peitar o sistema financeiro e mandou o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal baixarem as taxas de juros? A ideia era boa, mas não funcionou porque, vendo pelo retrovisor, percebemos que foi ingênua. Era muito melhor ter atacado os componentes do spread, alegados pelos bancos. De qualquer maneira, o Planalto teve naquela oportunidade a coragem, pela primeira vez na história, de atacar o sistema financeiro e mandar baixar as taxas de juros. Nós da Abimaq e outras entidades de classe resolvemos fazer um manifesto – pago por nós mesmos – para parabenizar a Dilma. Sabe o que aconteceu? Alguns jornais se negaram a publicar, mesmo mediante pagamento.
PB – Em março, o dólar rompeu a barreira dos R$ 3,00 – o que é visto por muitos analistas como mais um sinal da decadência da economia brasileira. Porém, representantes da indústria sempre reclamaram uma taxa de câmbio mais elevada, capaz de tornar as exportações nacionais mais competitivas. Esse novo patamar do dólar é razoável para a indústria?
Pastoriza – Por incrível que pareça, ainda é baixo. Em 2001, no mandato de Fernando Henrique Cardoso, o dólar estava na casa de R$ 2,40. Em março, chegou a R$ 3,10. Dá um aumento de cerca de 29%. Nesses 14 anos, a inflação oficial brasileira foi de 130% [segundo o IPCA do IBGE, a inflação acumulada no período foi de 144%]. Não preciso falar mais nada. Se você fabricasse qualquer coisa aqui no Brasil, há 14 anos, esse produto custaria hoje 130% a mais em reais. Se o câmbio só se moveu 29%, o produto continua muito mais caro em dólar. Por que a indústria de transformação está na ponta perdedora dessa grande equação macroeconômica do Brasil? A indústria da construção civil até convive bem com o “Custo Brasil” porque não dá para importar um apartamento da China. O construtor joga o “Custo Brasil” no preço do imóvel e o brasileiro que pague um dos metros quadrados mais caros do planeta. A indústria extrativa, com a exuberância dos preços das commodities, conviveu bem esses anos todos com o “Custo Brasil” e ganhou bastante dinheiro porque os preços se multiplicaram em dólar. Já no setor de serviços e de comércio não é possível importar um jantar de Paris ou um corte de cabelo da Itália. Porém, a indústria de transformação está na ponta perdedora porque não tem proteção nenhuma. No caso específico de máquinas, a alíquota média do imposto de importação é de 6%. Isso é praticamente nada. Se uma máquina de Taiwan igual à brasileira custar 10% mais barata, o cliente vai importar de Taiwan. Além disso, como somos uma cadeia produtiva longa, com diversos subfornecedores, os componentes do “Custo Brasil” chegam em cascata.
PB – Há um intenso debate sobre a existência de um processo de desindustrialização do país. Para alguns economistas, a perda de peso da indústria no PIB brasileiro é reflexo de um movimento mundial em que o setor de serviços tende a crescer, ganhando cada vez mais importância. O Brasil atravessa um processo de desindustrialização?
Pastoriza – Fortíssimo e há muitos anos. Mas esse processo está mascarado. Em primeiro lugar, a nossa desindustrialização não é do tipo clássico – quando as indústrias fecham as portas. É dissimulada. As indústrias estão deixando de ser fabricantes e se transformando em montadoras, maquiladoras e, no limite, importadoras. O industrial traz o produto da China e coloca a marca dele aqui. O empresário que faz isso pode até se safar e ganhar mais dinheiro. Mas é um desastre para o país porque, primeiro, faz desabar a cadeia de subfornecedores. Além disso, desaparecem os empregos de maior valor agregado, como técnicos e engenheiros, porque uma indústria maquiladora não precisa deles. E também perdemos soberania tecnológica. Outra fonte de mascaramento é o desemprego baixo. Outro dia, um economista inglês me fez uma pergunta: “É verdade que o desemprego tem diminuído nos últimos tempos e que o PIB há anos não vem crescendo?”. Isso fundiu a cabeça do economista: se existe mais gente empregada, há mais gente produzindo e o PIB deveria estar aumentando. Aí eu expliquei que a matriz econômica brasileira empobreceu fortemente nos últimos anos. Nós temos cada vez menos indústria de transformação, que é o setor que gera PIB, riqueza e bons salários. Mas isso está meio mascarado porque vem sendo gerado um monte de empregos, principalmente em áreas de serviços, de baixíssimo valor agregado. Nós temos três milhões de trabalhadores em call center. Há 20 anos não tínhamos nenhum. Não tenho nada contra call center, mas é um trabalho precário, de um salário-mínimo. Não gera PIB, nem tecnologia, nem valor agregado.
PB – Há quem diga que o Brasil é um país excessivamente protecionista. O senhor concorda?
Pastoriza – Existem alguns setores que são muito protegidos e que acabam dando a má fama para toda a indústria. Nos Estados Unidos, o imposto de importação de máquinas é de 3%. Aqui é de 6%. Muito baixo. Mas tome como exemplo o setor de veículos. Por causa de um forte lobby, eles conseguiram o maior imposto de importação de todos os setores: pagam-se 35% para importar qualquer veículo. Em cima disso, eles conseguiram há dois anos enfiar mais 30% de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) nos carros importados. Hoje, eles têm uma proteção absurda. Esse setor ganha rios de dinheiro, mas quem paga a conta são os 200 milhões de brasileiros. Somos motivo de chacota lá fora porque pagamos o carro mais caro do planeta. Porém, a indústria de modo geral não tem proteção nenhuma. Pelo contrário, temos desproteção principalmente pelo câmbio defasado.
PB – Muitos criticam a experiência de proteção à indústria de informática, que não conseguiu desenvolver esse setor no país...
Pastoriza – Mas nisso eles têm razão. Houve uma época aqui no Brasil em que era praticamente proibido importar não só itens de informática, mas quase tudo. Ou era proibido ou havia alíquotas de importação gigantescas, justamente para beneficiar o fabricante local. Mas o governo deveria ter estipulado um plano de metas para manter esses benefícios: metas de exportação, de queda de preço. E deveria ter desenhado uma rampa suave – “Vou dar a proteção, mas daqui a 20 anos vai cair a zero” – para estimular a indústria a se preparar e não dormir em berço esplêndido. O governo não fez isso. Pelo contrário: em 1990, o ex-presidente Collor [Fernando Collor de Mello], numa canetada só, derrubou todas as alíquotas de importação. Derrubar essas proteções do dia para a noite destrói a indústria. Mas eu faço a autocrítica. A indústria dormiu em berço esplêndido na época da megaproteção e o governo falhou ao não criar metas.
PB – Em todos os países com indústria forte o governo adotou medidas de proteção, como na Coreia do Sul.
Pastoriza – Na Coreia do Sul, até hoje é assim. Lá, importar um navio é impossível. Mas eles fizeram isso de forma inteligente, de modo que o fabricante de navio da Coreia é mundialmente competitivo. Eles protegem o mercado interno, mas criam mecanismos de incentivo para que as empresas sejam players internacionais. Nós ficamos só na parte da proteção, sem um incentivo para aumentar a eficiência.
PB – Recente estudo da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) aponta queda de 2,9%, entre 2007 e 2014, na produtividade dos trabalhadores da indústria de máquinas e equipamentos para a construção civil. Como é possível incrementar a produtividade e a capacidade de inovação da indústria brasileira?
Pastoriza – Recentemente, li uma pesquisa mostrando que, em média, o trabalhador industrial alemão é quatro vezes mais produtivo que o brasileiro. Uma pessoa pouco conhecedora do tema pode achar que o trabalhador brasileiro é “devagar”. Ao contrário, ele trabalha mais horas e de forma muito mais estressante que o alemão. Qual é a grande diferença? Fizemos um estudo sobre os fatores que afetam a produtividade intramuros numa fábrica. O fator mão de obra é importante, mas corresponde a 25% do total da produtividade de uma indústria. E esse índice vem caindo na medida em que as fábricas se automatizam. Outros 15% dizem respeito a uma série de fatores, como sistema de gestão, informática etc. Os 60% restantes têm a ver com os equipamentos à disposição do trabalhador. A média de idade das máquinas do parque fabril brasileiro é de 17 anos. Na Alemanha, a média é de sete anos. O brasileiro trabalha em um torno antigo, manual, que quebra facilmente e produz muitas peças com defeito. Já o alemão opera equipamentos de última geração: aperta um botão e a máquina sai cuspindo peças como uma metralhadora. Essa é a diferença. A situação macroeconômica esmagou a tal ponto as margens das indústrias brasileiras, principalmente pelo câmbio supervalorizado, que elas não conseguem ter lucro, não podem investir e vão ficando defasadas. Não há milagres.