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Glamourosa e internacional

Entardecer na praia dos Ossos / Foto: Ronald Pantoja/Prefeitura de Búzios
Entardecer na praia dos Ossos / Foto: Ronald Pantoja/Prefeitura de Búzios

Por: FRANCISCO LUIZ NOEL

De férias no Rio de Janeiro, no verão de 1964, na condição de musa sem rival do cinema europeu, a francesa Brigitte Bardot refugiou-se do assédio da imprensa numa paradisíaca vila de pescadores na fluminense Região dos Lagos, um lugar sem água encanada, rede de esgotos, luz elétrica e telefone. Passado meio século, Armação dos Búzios, ou, simplesmente, Búzios, continua sendo sinônimo de paraíso à beira-mar, já que o bucolismo que conquistou a atriz deu lugar às benfeitorias urbanas e à badalação de visitantes brasileiros e estrangeiros, boa parte deles donos de polpudas contas bancárias. Hoje, o turismo elegante move a vida dos 30,5 mil buzianos – uma realidade inimaginável para o pouco mais de 300 moradores que acolheram Bardot. Sim, Bardot, o jeito como as pessoas sempre se referiram a Brigitte, pelo sobrenome.

A estrela desfrutou dos encantos do lugar e do jeito simples de viver dos pescadores, de janeiro a abril daquele ano, hospedada com o namorado, um brasileiro marroquino, na casa de veraneio de um diplomata, na praia de Manguinhos. Encantada, voltou para o réveillon de 1965, instalando-se, agora, na residência de um argentino na Rua das Pedras, via que se tornaria point décadas depois. Desta vez foi seguida por fotógrafos e repórteres em caravana: estampada em capas de jornais e revistas nos quatro cantos do planeta, acabou, involuntariamente, servindo de garota-propaganda do lugar. Assim, Búzios foi “vendida” como o paraíso secreto, em pleno trópico, do mais vistoso símbolo sexual do cinema nos anos 1960.

“Se Brigitte Bardot não tivesse permanecido quatro meses aqui, a Búzios glamourosa e internacional não existiria”, diz o comerciante José Wilson Barbosa, pesquisador da estada da atriz na cidade e autor do documentário A Búzios de Bardot. O lançamento do filme, em 2014, junto com uma exposição de imagens e publicações da época, marcou os 50 anos da visita que mudou a história do município. Sem o veraneio de Bardot e a cobertura jornalística, observa o “brigitólogo” Barbosa, Búzios seria como as vizinhas cidades litorâneas de Cabo Frio, Arraial do Cabo e São Pedro da Aldeia. “São lugares conhecidos no país, mas não internacionalmente”, compara.

Distrito de Cabo Frio, até 1995, quando então se tornou município, Búzios não tinha ruas calçadas na década de 1960 e seus habitantes careciam de escola para as crianças, atendimento médico, coleta de lixo e outros serviços urbanos. Bares, boates, cinemas, hotéis, lojas de grife e de suvenir, passeios turísticos de barco, pousadas e restaurantes requintados – nem pensar, como mostra, lembrando a rotina caiçara daquele tempo, o filme de Barbosa, dono na cidade de lojas para turistas.

“Paisagens sublimes”

A visitante ilustre é lembrada na Orla Bardot, extensão da Rua das Pedras, na praia da Armação, por uma estátua em bronze da escultora Christina Motta. Em novembro de 2014, aos 80 anos, o mito fundador de Búzios remeteu do balneário francês de Saint-Tropez uma carta para um festival de cinema feito em sua homenagem numa das duas salas de Búzios, o Gran Cine Bardot. “Foi nessa pequena cidade perdida e desconhecida que eu fui mais feliz. Não tinha nada, nem mesmo eletricidade – mas paisagens sublimes e selvagens, e praias desertas, praias de sonho!”, escreveu a atriz, que agora se dedica à proteção dos animais.

Em suma, o turismo é a viga mestra do Produto Interno Bruto (PIB) de Búzios, que somou R$ 2,46 bilhões em 2012, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A oferta de bens e serviços aos visitantes tem a reboque a construção civil, voltada para o atendimento da demanda turística, por conta da edificação e reforma de hotéis e pousadas, condomínios residenciais, moradias avulsas de alto padrão e empreendimentos de lazer. Pelo mesmo caminho, na manutenção da infraestrutura do balneário, vai parte dos investimentos públicos, engrossados pelos royalties do petróleo da bacia de Campos, que ultimamente andam minguados.

Porque avança em forma de península mar adentro, Búzios tem praias para todos os gostos – ao norte, banhadas por correntes mornas do equador; ao sul, por águas frias vindas do polo. Famílias com crianças ficam nas marolas das praias da Tartaruga e dos Amores, enquanto os surfistas encaram as ondas da Brava e de Geribá. Já os praticantes de windsurf preferem os ventos de Manguinhos e adeptos do mergulho procuram a limpidez de Azeda, Azedinha e do entorno da ilha da Âncora. O ponto de partida dos passeios de barco é a praia dos Ossos, que abriga as construções mais antigas. E os naturistas têm as escondidas areias da praia Olho de Boi, onde carro não chega.

Búzios é o quinto destino mais visitado pelos estrangeiros que desembarcam no Brasil a lazer. Em 2013, dos 2,7 milhões de visitantes dessa modalidade de turismo, 224,4 mil (8,3%) estiveram na cidade – a grande maioria procedente de países vizinhos. O número é da última pesquisa de demanda turística divulgada pelo Ministério do Turismo, que coloca na frente apenas o Rio de Janeiro (30,2%), Florianópolis (18,7%), Foz do Iguaçu (17%) e São Paulo (10,7%). O maior contingente entre os turistas do exterior que buscam Búzios é formado por argentinos (67%), que têm afluído ao balneário desde os anos 1960, influenciados pelas notícias que falavam do paraíso tropical de Bardot.

O secretário de Turismo da Búzios, José Márcio dos Santos, diz que milhares de pessoas passam anualmente pela cidade, especialmente na alta temporada, que vai de dezembro a março. Itens indispensáveis ao turista típico são um cartão de crédito e uma boa conta no banco. “Vir a Búzios e pagar uma diária de hospedagem em bom hotel não sai por menos de R$ 600 a R$ 700, um programa para públicos das classes A e B, que são reconhecidos na cidade pela forma de se vestir e pelo padrão dos carros. Não dá para imaginar que quem passa as férias numa cidade como a nossa, onde os preços são diferenciados do restante do país, não sejam turistas com boa situação financeira”, diz Santos.

Mas há os turistas de fim de semana e dos períodos de férias, que se hospedam em municípios vizinhos, onde os preços são menos salgados, e frequentam as praias de Búzios e a balada noturna na Rua das Pedras. “Mas esse visitante também está em condições de gastar, porque passar aqui, o dia ou a noite, também não sai barato”, observa a secretário municipal. Turistas de poder aquisitivo mais modesto, que se valem de ônibus fretados para curtir a cidade, esbarram numa lei municipal que restringe o acesso de coletivos, cobrando taxa de entrada desses veículos no balneário.

Os visitantes reclamam, mas Santos rebate as queixas de que a medida é elitista e excludente. “No passado, o grande fluxo de ônibus gerava problemas de mobilidade urbana. O poder público foi compelido, então, a editar uma lei com vistas a controlar o ingresso de coletivos na cidade, mas ninguém é proibido de entrar”, diz. A lei aludida por Santos é a 999, de 2013, que condiciona a entrada na cidade de ônibus, micro-ônibus e vans de turismo a agendamento com três dias de antecedência e pagamento antecipado de pedágio que varia de R$ 100, para veículos com turistas que dispõem de reservas de hospedagem, a R$ 1,5 mil, para ônibus com visitantes que vão passar somente o dia na praia.

Dois navios por vez

Búzios é escala consagrada no circuito de cruzeiros na costa brasileira, tendo recebido mais de 120 transatlânticos na temporada 2014-2015, encerrada em abril. Fundeados a quase um quilômetro da orla, os navios desembarcaram mais de 300 mil estrangeiros e brasileiros entre turistas e tripulantes. Conduzidos em pequenas embarcações até os dois píeres da cidade, os visitantes movimentam restaurantes, lojas e serviços de barco que oferecem passeios ao redor da península, gastando em média R$ 200 por pessoa. Embora cada navio permaneça um dia e a municipalidade só permita duas escalas simultâneas, a temporada rendeu mais de R$ 60 milhões em divisas ao município.

É certo que a cidade já acolheu até quatro cruzeiros por dia, porém, havia muita confusão nos desembarques e embarques. A redução a dois navios diários visou pôr fim aos tumultos e preservar a imagem do balneário como destino turístico de alto padrão. Os mais de 300 hoteleiros, que dispõem de 13 mil leitos e nada faturam com esses visitantes, torcem o nariz para os cruzeiros. Em compensação, eles fazem a festa dos donos dos 150 restaurantes – alguns, de alta gastronomia – e demais negócios. “É uma propaganda gratuita que os navios nos proporcionam”, diz o secretário Santos. “Muitos turistas dos cruzeiros voltam mais tarde para passar alguns dias na cidade”, relata.

Búzios é a ponta leste de uma das mais antigas regiões pisadas pelos colonizadores europeus no litoral brasileiro. O lugar apareceu pela primeira vez em registros documentais no século 16, como território ancestral dos índios tupinambás, e, em 1615, teve oficializada sua primeira povoação colonial, com a criação de Cabo Frio. Pelo isolamento geográfico e abundância de pau-brasil, derrubado de forma predatória para venda na Europa, o lugar era uma espécie de terra de ninguém, frequentada por corsários e conturbada por escaramuças entre portugueses, franceses e holandeses, que exploravam rivalidades indígenas para, nas refregas, selar alianças com eles.

A fartura de grandes conchas nas praias rendeu ao lugar o nome de Ponta dos Búzios, substituído por Armação dos Búzios em meados do século 18, quando o local era o principal entreposto de pesca baleeira do Rio de Janeiro. Emigrados das águas frias do sul para se reproduzir no litoral fluminense, os cetáceos eram arpoados ao largo e puxados à atual praia dos Ossos, no noroeste da península, para que a gordura e a carne fossem separadas da carcaça. Da massa gordurosa fabricava-se óleo usado na iluminação e outros fins, e sua produção era feita no engenho da Armação das Baleias de Búzios, na praia contígua, que herdaria o nome de Armação.

Testemunho da época é a Capela de Sant’Anna, de 1743, a mais longeva edificação do município. Em pedra, cal e argamassa de óleo de baleia, a construção é creditada ao português Brás de Pina, que comandava a armação à frente de escravos e brancos pobres. Reza a lenda que o potentado, dono de engenhos de açúcar e de muitas terras, fez erguer o templo para agradecer o salvamento de um navio negreiro que perigava ir a pique. Ponto de chegada de africanos vendidos a fazendas da região e do norte fluminense, Búzios continuaria a receber escravos, mesmo após a proibição desse comércio (eles eram desembarcados por traficantes).

Búzios abrigou em sua porção continental pelo menos dois quilombos – o da Rasa e o da vizinha Baía Formosa. Caiçaras, alternando-se entre a pesca e a lavoura de subsistência, como fariam depois os buzianos que recepcionaram Brigitte Bardot, os negros procediam de fugas empreendidas logo após sua chegada ao país ou de fazendas próximas como a Campos Novos, que fora dos jesuítas. As comunidades remanescentes foram reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares em 2005, com base na Constituição, mas, passados dez anos, as terras quilombolas não foram delimitadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para a titulação de propriedade.

Cidade partida

Periferia continental da península turística, a região da Rasa abriga mais da metade dos habitantes do município. Sua ocupação pouco ordenada cresceu à medida que o balneário recebia levas de migrantes franceses, alemães e argentinos, da década de 1960 à de 1980. A área é habitada por muitas famílias que moravam na península e venderam suas casas aos recém-chegados, gente de fora que, atraída pelas potencialidades do turismo local, ergueu hotéis, pousadas, restaurantes e bares. Antes de Búzios ser propagandeada por Bardot, veranear no local era excentricidade de uns poucos cabo-frienses e cariocas dispostos a encarar estradas de chão batido longe das comodidades da vida moderna.

A chegada dos estrangeiros mudou radicalmente a vida pacata da vila. Quando não vendiam as moradias – posses sem registro em cartório –, os moradores as ofereciam em locação. “Os pescadores foram abandonando a pesca e, diante da nova situação, passavam a viver de aluguel”, relata o secretário municipal de Cultura, Alexandre Raulino de Oliveira. O processo de gentrificação teve como pano de fundo a urbanização sem controle, numa época em que o lugar ainda era distrito de Cabo Frio e recebia poucos cuidados das autoridades. Terrenos avançaram sobre áreas de uso público, matas foram derrubadas, lagoas naturais acabaram aterradas e casas antigas viraram escombros. No boom imobiliário, que durou até os anos 1990, surgiu na arquitetura o chamado estilo Búzios, que combina alvenaria com madeira aparente, vidros e telhas de tipo colonial, em construções com um ou dois pavimentos – gabarito imposto por lei municipal em 1970.

Símbolo ostensivo da distinção espacial entre a Búzios dos turistas abonados e moradores de posição social mais alta, de um lado, e a dos nativos menos aquinhoados, de outro, é um pórtico turístico no entroncamento da rodovia RJ-102 com a estrada José Bento Ribeiro Dantas, que dá acesso ao balneário. Erguido no fim dos anos 1990, logo após a emancipação, o pórtico demarca a fronteira da cidade glamourosa, península adentro, a leste, e da parte mais popular, representada pelo bairro da Rasa e outros pontos do continente, como Cem Braças e São José. Esse marco divisório, uma espécie de cidade partida, gera até hoje sentimentos de exclusão entre os habitantes da periferia – muitos, quando se dirigem ao centro urbano, dizem que estão indo a Búzios, como se se tratasse de um outro município.

Superar a divisão histórica na vida social de Armação de Búzios é desafio manifesto pela municipalidade, comandada pelo prefeito André Granado, médico nascido em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, e que reside na cidade praiana há mais de 20 anos. “Estamos fazendo um trabalho de integração”, diz em nome do governo local o secretário Santos. Além de ter construído um centro de informações turísticas na Rasa, na estrada por onde entra a maioria dos visitantes motorizados, a municipalidade intensificou os investimentos em obras, ações sociais, culturais e esportivas na região, na tentativa de levantar a autoestima local.

“Parece que Búzios é só do pórtico para a frente, mas também somos moradores da cidade”, chama a atenção a presidente de honra da Associação da Comunidade Remanescente do Quilombo da Rasa, Carivaldina Oliveira da Costa, a dona Uia, mãe de seis filhos e com 12 netos. Empregada doméstica aposentada e bisneta de escravos da antiga Fazenda Piraúna, da qual só existem ruínas, ela reconhece que a qualidade de vida vem avançando nos bairros periféricos. “Ainda não está como a gente quer, mas está melhorando”, diz, queixando-se, porém, de que “Búzios ficou uma cidade muito cara”.

Uma das empreitadas levadas a cabo pelo poder público local no continente foi a transformação de um templo desativado na Rasa num moderno cine-teatro com 119 lugares, resultado de parceria com a concessionária de água e esgoto Prolagos. As ações municipais no terreno da cultura incluem o apoio à formação musical de 400 jovens e cursos de qualificação profissional em parceria com os governos estadual e federal, abrangendo idiomas, história local e atendimento a turistas.

O incentivo à atividade pesqueira, distintiva das origens locais, também é alvo de ações da municipalidade, com apoio às colônias de pesca das praias da Armação, Manguinhos e Rasa. “O objetivo é garantir que essa tradição não se perca”, diz o secretário Raulino, da Cultura, empenhado em pôr de pé o projeto interativo Búzios Memória, sobre a trajetória histórica do local. Cinco décadas de urbanização orientada para o turismo de alto poder aquisitivo quase fizeram da pesca uma página virada. “A atividade pesqueira foi diminuindo, enquanto a demanda por pescado aumentou”, observa ele. “Hoje, a pesca local representa 10% do que é consumido aqui.”