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A revoada dos brasileiros

Miami, a cidade dos brasileiros nos Estados Unidos / Foto: Henrique Pita
Miami, a cidade dos brasileiros nos Estados Unidos / Foto: Henrique Pita

Por: HERBERT CARVALHO

Os gastos dos brasileiros no exterior totalizaram US$ 25,6 bilhões em 2014, maior valor registrado desde o início da série histórica, em 1947, ano em que foram deixados US$ 37 milhões no estrangeiro, de acordo com os dados do setor externo divulgados pelo Banco Central do Brasil (BC). O resultado não chegou a ser, porém, uma surpresa: em 2013 também havia sido contabilizado um valor alto, da ordem de US$ 24,98 bilhões, isso apesar do forte aumento (de 0,38% para 6,38%) do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), decretado naquele ano pelas autoridades com o fim de conter ou reduzir as despesas feitas pelos passageiros em suas viagens internacionais. Já no ano passado, nem a estagnação da economia ou a expressiva alta do dólar tiveram força para frustrar os sonhos de consumo de viajantes que não se conformam em limitar suas compras ou viagens de férias ao país.

Dessa forma, como os estrangeiros em visita ao Brasil deixaram em território pátrio apenas US$ 6,9 bilhões em 2014, o saldo líquido da conta de viagens ficou negativo em US$ 18,69 bilhões, outro recorde histórico que contribuiu para que o rombo em nossas contas externas fosse o maior desde 2001: o déficit no total das transações correntes com o exterior ficou em US$ 90,94 bilhões, equivalente a 4,7% do Produto Interno Bruto (PIB) do país.

Embora o principal responsável por essa deterioração seja o mau desempenho da balança comercial brasileira – que encerrou o ano passado com saldo negativo de quase US$ 4 bilhões em decorrência da perda de valor das commodities, item de peso considerável na pauta de exportação do país –, o tópico viagens também preocupa. Elas representam 20,5% do total do déficit das transações correntes com o resto do mundo, uma conta que inclui a balança comercial, os serviços e as transferências de renda. Nesse aspecto, o desafio maior é fazer com que os estrangeiros gastem mais aqui, pois o acréscimo de ínfimos US$ 200 milhões em relação a 2013, quando desembolsaram US$ 6,7 bilhões, acende a luz vermelha: “Se não fosse a Copa do Mundo, teríamos amargado um sentido recuo nos gastos dos visitantes estrangeiros no Brasil em 2014”, adverte Tulio Maciel, chefe do Departamento Econômico do BC.

Em janeiro, com o dólar rondando os R$ 3, os gastos em viagens pelo estrangeiro chegaram a US$ 2,2 bilhões. Em fevereiro e março, todavia, o primeiro sinal de que o desembolso pode passar a trilhar uma rota descendente foi dado, com as despesas cravando em US$ 1,47 bilhão e US$ 1,50 bilhão, respectivamente.

Até 1994, quando o Plano Real foi criado para conter a hiperinflação, os gastos do turismo no exterior não chegavam a US$ 2 bilhões anuais. Naquele ano, quando a moeda nacional valia o mesmo que o dólar, os brasileiros deixaram lá fora US$ 2,23 bilhões. Entre 1996 e 1998, aquele montante foi de US$ 4 bilhões para US$ 5,7 bilhões. Com a maxidesvalorização cambial, no início do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, quando o câmbio saltou de R$ 1,20 para R$ 2,00 por dólar, os gastos recuaram para US$ 3 bilhões, em 1999.

Torre Eiffel e selfies

De um modo geral, as viagens ao exterior resumiam-se aos extratos mais afortunados da população. O cenário, todavia, começou a mudar em 2006, quando se conjugam favoravelmente fatores conjunturais como a expansão do mercado de trabalho, o aumento da renda dos assalariados, o barateamento dos pacotes turísticos em razão da comercialização massiva pela internet e a maior oferta de crédito, com amplas facilidades representadas pelo pagamento parcelado.

À consolidação de uma classe média propensa ao endividamento, para alcançar suas metas, somaram-se características brasileiras que trabalhadores dos Estados Unidos e da Ásia, por exemplo, não desfrutam: férias remuneradas obrigatórias de no mínimo 20 dias por ano, acrescidas do abono pecuniário de um terço. Estavam criadas as condições para que a moda das viagens a Buenos Aires e ao estado norte-americano da Flórida se transformasse em verdadeiras invasões de turistas patrícios no início da segunda década do século 21, a ponto de ser comum ouvir em Orlando mais o idioma português que o inglês.

Aos destinos tradicionais de Miami e Nova York, nos Estados Unidos, acrescentaram-se as areias claras e o mar azul do Caribe em Aruba e Punta Cana (República Dominicana) ou ainda Cancún, balneário mexicano que já conta com voos diretos operados pela TAM desde São Paulo. Na América do Sul, os brasileiros atravessaram a cordilheira dos Andes e descobriram o Chile, onde a temporada de neve pode ser uma alternativa para quem já enjoou de Bariloche, no lado argentino. E, no verão, a praia uruguaia de Punta del Leste desponta como atração para as celebridades tupiniquins.

Do outro lado do oceano Atlântico, as preferências recaem sobre a Itália e a França, eixos obrigatórios de circuitos europeus que costumam incluir quatro países a serem visitados em dez dias, num ritmo alucinante. Isso porque as principais operadoras armam seus pacotes de acordo com o perfil do turista brasileiro, que gosta de ser recepcionado por guias falando português e exige passeios a monumentos como a Torre Eiffel, para fazer fotos e as onipresentes selfies (autorretratos), demonstrando reduzido interesse em museus ou atividades culturais.

Embora não existam dados específicos sobre os gastos dos brasileiros no exterior, Kelly Carvalho, assessora econômica da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (Fecomercio SP), explica que cerca de 70% dos desembolsos totais destinam-se ao pagamento dos serviços de hospedagem, alimentação e transporte. Em especial nas viagens aos Estados Unidos, o restante é torrado em compras de vestuário e produtos eletroeletrônicos, adquiridos a preços muito mais competitivos que os similares importados ou produzidos aqui, agravados por taxas alfandegárias e pelo “Custo Brasil” (dificuldades de ordem burocrática, econômica e estrutural que encarecem e desestimulam o investimento no país).

Assim, entre 2006 e 2013, o número de brasileiros que viajaram para o país do dólar aumentou 292%, segundo dados do National Travel and Tourism Strategy, órgão do Departamento de Comércio americano – crescimento que colocou o Brasil na quinta posição entre os países que mais enviam turistas para lá, logo abaixo de Canadá, Japão, Reino Unido e México. Em 2013, foram mais de 2 milhões e a expectativa é que a barreira dos 3 milhões seja superada até 2018. Em média se deslocam daqui para lá 171 mil turistas por mês, 92% dos quais citam as compras como a principal motivação da viagem. Em 2013, a receita gerada pelos viajantes do país das praias ensolaradas em território norte-americano foi da ordem US$ 10,5 bilhões.

Na Flórida, o Greater Miami Convention & Visitors Bureau revela ter recebido 755,5 mil turistas brasileiros em 2013, acréscimo de 9,5% em relação ao ano anterior. O gasto de cada um, em média, foi calculado em torno de R$ 635,00 por dia de viagem. Em Nova York, onde lojistas de regiões turísticas chegaram a contratar funcionários que falam português, o Brasil ocupa o terceiro lugar como fornecedor de visitantes, depois do Canadá e do Reino Unido. Corremos o risco, porém, de perder esse posto para a China, que em 2014 ultrapassou a França na quarta colocação e ajudou a mais famosa metrópole estadunidense a hospedar 56,4 milhões de visitantes, 2,2% a mais que no ano anterior.

Crédito consignado

Diferentemente dos brasileiros – de acordo com a agência oficial de turismo NYC & Company – os chineses tendem a comprar produtos mais caros, o que os torna mais cobiçados pelos comerciantes. Não ficaremos para trás, porém, em que pese a estagnação de nossa economia e a desvalorização cambial, se prevalecerem os estímulos, inclusive de ordem cultural, para que malas abarrotadas por etiquetas de grife continuem a ser despachadas com destino ao Brasil.

Transmitido pelo canal da TV paga GNT, o programa “Além da Conta” ultrapassa, como o próprio nome diz, qualquer limite na promoção do consumismo mais desvairado. Nele, a atriz global Ingrid Guimarães – que arrastou multidões de espectadores aos cinemas com as comédias De Pernas pro Ar 1 e 2 – acompanha celebridades, no mais das vezes também ligadas à Rede Globo, pelas ruas de Miami e Nova York, em desenfreada busca para comprar tudo o que surgir pela frente.

Reality show na linha de “Mulheres Ricas” – transmitido pela TV Bandeirantes –, a produção comandada por Ingrid não se limitou a promover um estilo de vida marcado pela futilidade de pessoas adultas. Em uma edição dedicada ao consumo infantil, um personal stylist de famosa loja de brinquedos de Manhattan ensina qual roupa revela melhor a “personalidade” de cada boneca. Quando uma participante mencionou que se deveria pensar também em oferecer aos consumidores mirins alternativas de caráter educativo, a hostess desconversou, evitando questionamentos quanto aos objetivos do programa. “As crianças não se interessam muito por esse tipo de brinquedo”, disse.

Até mesmo os brasileiros recém-nascidos são contemplados pela avalancha dos produtos comprados nos Estados Unidos: é lá que muitas famílias vão buscar o enxoval dos bebês para, dessa forma, diferenciar seus rebentos com o status internacional. Tudo isso ajuda a explicar por que os serviços diplomáticos estadunidenses sediados no Brasil emitiram em 2014 um total de 1.128.223 vistos, 6% a mais do que em 2013. Foi o terceiro ano consecutivo em que se ultrapassou a marca de um milhão de documentos concedidos. Mais da metade dos vistos foram expedidos pelo consulado em São Paulo. Apenas em dezembro passado, o tempo médio de espera para agendamento foi de três dias em todos os consulados, à exceção do Rio de Janeiro, onde os interessados tiveram de aguardar por sete dias, em média.

E a criatividade faz morada aqui: novas estratégias de comercialização de pacotes de viagens não param de ser colocadas em prática pelas empresas do setor. O empresário Eloi D’Avila, CEO do Grupo Flytour, de 2,7 mil funcionários e faturamento de R$ 4,5 bilhões em 2014, anuncia para breve a utilização, em seu negócio, de crédito consignado, que permitirá aos funcionários públicos quitarem suas viagens em até 70 vezes. Para Kelly Carvalho, ao contrário de medidas restritivas de gastos no exterior, o governo brasileiro deveria adotar políticas de estímulo ao aumento das receitas para o turismo interno, de forma a conseguir atrair mais estrangeiros. Segundo ela, o custo para viajar pelo Brasil está muito elevado quando comparado a outros países sob aspectos como hospedagem, transporte e alimentação. “Apesar disso, os estrangeiros continuam gastando menos no Brasil do que os brasileiros quando vão ao exterior. Os turistas que recebemos vêm conhecer as belezas naturais do país e raramente fazem compras além das tradicionais lembrancinhas”, diz a economista.

Parques nacionais

Em 2014, mesmo com a Copa do Mundo, não houve um crescimento significativo nos gastos desses viajantes no Brasil capaz de compensar o resultado deficitário na conta turismo. Reverter esse quadro, de acordo com os especialistas, significa trabalhar melhor o marketing de nossos destinos turísticos, identificando seus pontos fortes e diferenciais. “São Paulo, por exemplo, se destaca pelo turismo de negócios, mas não podemos deixar de realçar a diversidade gastronômica, os teatros, os cinemas e os centros de compras. Todos os agentes envolvidos na atividade turística, como governos nos diversos níveis e empresas, devem saber vender o país para os turistas por meio de imagens, vídeos, folders e outras divulgações”, explica Kelly Carvalho.

Nesse aspecto é bom lembrar que o Instituto Brasileiro de Turismo (Embratur), criado em 1966, sempre teve dificuldades para transmitir ao mundo os contrastes de um país com as dimensões territoriais e as diversidades naturais e culturais do Brasil. Nas décadas de 1970 e 1980, os focos da divulgação eram o carnaval e o futebol, época em que o ex-jogador Edson Arantes do Nascimento, Pelé, foi nomeado embaixador do Turismo no Brasil. O reducionismo, agravado pelas imagens de mulheres bonitas e sensuais que predominavam nos materiais difundidos no exterior acabariam por colocar o país na rota do turismo sexual.

Esses estereótipos deixaram sequelas, dando margem ao aparecimento de agências de viagens na Europa, especializadas em vender pacotes vinculados a prostíbulos no país. A partir de 1995, as autoridades lançaram campanhas de ataque à exploração sexual, sobretudo de crianças e adolescentes, tema que ainda hoje merece atenta vigilância do governo brasileiro. Em paralelo, passou-se a divulgar, com maior intensidade, o ecoturismo e o nosso patrimônio histórico e cultural, esforço fortalecido com a criação do Ministério do Turismo, em 2003.

Alicerçado até pouco tempo atrás apenas na exuberância de seu litoral, com mais de oito mil quilômetros de praias, o Brasil finalmente começa a se capacitar para oferecer novas opções ao turista estrangeiro. Um bom exemplo é o Instituto Inhotim, em Brumadinho, no interior de Minas Gerais, onde o minerador Bernardo Paz criou um lugar idílico. Ali, obras de artistas plásticos consagrados mundialmente – como os estadunidenses Chris Burden e Matthew Barney – se misturam a lagos e jardins com palmeiras. Como é possível até nadar em algumas das instalações, um dia apenas tornou-se pouco para a visitação da área e respectivo acervo.

Os parques nacionais representam outra possibilidade de atração dos adeptos do turismo de natureza, um segmento que cresce entre 15% e 25% ao ano, de acordo com a Organização Mundial do Turismo. Esses locais tiveram um incremento de visitação de 1,9 milhão de pessoas, em 2006, para 6 milhões, em 2013, entre brasileiros e estrangeiros. Os números do Instituto Chico Mendes (ICMBio), responsável pela administração dos parques nacionais, são pequenos quando comparados aos parques dos Estados Unidos, que recebem, anualmente, 280 milhões de pessoas, estrutura que gera US$ 30 bilhões de receita e dá emprego a 252 mil pessoas.

O ministro do Turismo, Vinicius Lages, diz que sua pasta tem preparado as cidades do entorno dos parques brasileiros – como o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, em Goiás, um dos recordistas de público – para lidar com o aumento de visitantes, investindo em qualificação profissional e viabilizando recursos para a infraestrutura, em parceria com o ICMBio. “O potencial de crescimento é enorme. As belezas naturais podem atrair um número cada vez maior de visitantes”, acredita Lages.

As viagens corporativas, que representam 74,5% dos deslocamentos de turistas no país, também despertam a atenção dos organismos especializados. De acordo com os Indicadores Econômicos das Viagens Corporativas, organizados pela Associação Latino Americana de Gestores de Eventos e Viagens Corporativas, as receitas com esse tipo de turismo totalizaram R$ 40,17 bilhões, em 2014. E, para este ano, a estimativa fala em R$ 43,4 bilhões. O Brasil é hoje o 9º país que mais sedia eventos internacionais e a modalidade já é a segunda entre os fatores de atração de turistas do exterior, responsável por 25,6% dos viajantes estrangeiros que fazem essa opção.

“O turismo de negócios é exigente com a qualidade dos serviços e tem um gasto acima da média”, explica o ministro, que ressalta a urgência de investimentos para integrar toda a cadeia econômica do setor. “Para atrair turistas, são necessárias também as mesmas políticas públicas reclamadas pela população nas áreas de saneamento básico, mobilidade e segurança”, acrescenta Kelly Carvalho.