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Cerco às pragas
Por: MIGUEL NÍTOLO
Até meados do século passado, as propriedades agrícolas no estado de São Paulo tinham olhos apenas para o café, isso por uma razão muito simples. O ouro verde, como se referiam ao grão, era uma das molas propulsoras da economia nacional, num tempo em que a industrialização ainda não havia alcançado um avançado grau de desenvolvimento. O tempo passou e o panorama mudou: o café tomou o caminho de outros estados – apesar de continuar vicejando no interior paulista – e continuou se sobressaindo na pauta de exportação, mas agora sem o peso de antes. E parte do espaço outrora destinado à cultura cafeeira caiu no colo de outra riqueza do agronegócio, a cana-de-açúcar, o ouro branco, conforme apelido dado ao produto pelos europeus no período da colonização. É um mar verde sem fim, plantações gigantescas que em algumas regiões podem avançar sobre grandes faixas de um território que também produz em larga escala banana, batata, cebola e tomate, para citar apenas alguns itens agrícolas, e serve de pasto para o gado.
Mais de cem usinas de açúcar e destilarias operam na terra dos bandeirantes, respondendo pela maior parte de tudo o que o setor produz em escala nacional. É certo que as empresas da área vêm amargando uma série de dissabores por causa da estiagem (baixa na produtividade), defasagem no valor de mercado do etanol e queda no preço do açúcar, situação que já levou ao fechamento dezenas de unidades. Um problema conjuntural que abala as finanças, mas não ofusca a grandeza desse importante ramo empresarial.
Os canaviais, todavia, não estão sozinhos na ocupação de enormes glebas em São Paulo. De algumas décadas para cá passaram a ter a companhia da laranja, o fruto, este sim, da cor do ouro quando maduro, que em alguns lugares disputa palmo a palmo com a cana-de-açúcar os espaços agricultáveis. Em outros, perde terreno. De acordo com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), do final dos anos 1980 até aqui a área com pomares de laranja encolheu mais de 40%, período em que o terreno destinado à cana encorpou 120%. A região de Ribeirão Preto, a 313 quilômetros da capital paulista e onde a citricultura é forte, foi a mais prejudicada. E os motivos, segundo representantes do setor, são basicamente os mesmos que têm criado embaraços a alguns outros ramos da atividade agrícola: safras elevadas, problemas fitossanitários e baixa remuneração. Naquela parte do estado de São Paulo o município de Bebedouro, que em anos passados tinha na laranja a base de sua economia, foi um dos que mais sofreram com a triste realidade: há 25 anos, por exemplo, o fruto ocupava 57% de seu território (aproximadamente 38 mil hectares), índice que nos dias atuais não chega a 20%. Diante daqueles obstáculos, muitos produtores estão arrendando suas terras para as usinas de açúcar, cultura que hoje marca presença em quase 60% do município.
Essa queda de braço, que vem de longa data e já é parte da rotina da citricultura, aparentemente não tem interferido na disputa do país pelo mercado mundial. A safra 2013/2014, que rendeu a colheita de 284,9 milhões de caixas de 40,8 quilos, manteve o Brasil no primeiro lugar no ranking – posição que não se altera há anos –, seguido pelos Estados Unidos, China, Índia, México, Egito e Espanha, grupo de produtores que controla quase 70% da oferta global. Brasileiros e americanos destinam a maior parte do que colhem para a indústria de suco, o primeiro exportando, o segundo atendendo o consumo interno; chineses e mexicanos comercializam o produto in natura e os espanhóis miram essencialmente a exportação. A nação do “em se plantando, tudo dá” é dona absoluta desse mercado, respondendo, aproximadamente, pela produção de 30% da laranja e de 60% do suco do fruto.
Censo e pesquisa
A laranja é cultivada em várias partes do país. Sua cultura é expressiva no triângulo mineiro, mas os números que exibe em São Paulo tornaram o estado o maior produtor do fruto em território nacional (ao redor de 75% da oferta local, em torno de 6 mil citricultores, 400 mil hectares cultivados e 200 milhões de laranjeiras). De acordo com estimativas do setor divulgadas no início do ano, a produção brasileira poderá atingir, na safra que está se encerrando, 317 milhões de caixas (270 milhões apenas no cinturão citrícola compreendido entre São Paulo e Minas Gerais), número que não levou em conta os efeitos da longa estiagem que, em meses passados, afetou a lavoura basicamente em todo o país.
E pensar que há um ano, quando ninguém em sã consciência imaginava que ia faltar chuva no sudeste, o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos projetou para a safra 2014/2015, no Brasil, uma produção de 425 milhões de caixas a partir de dados coletados em viagens a Minas Gerais e São Paulo. Segundo o jornal “O Estado de S. Paulo”, que publicou a notícia, “também foram utilizadas informações do governo, das secretarias estaduais de agricultura, de associações de produtores, da indústria processadora de suco de laranja, de consultores, comerciantes e instituições de pesquisa, entre outros”.
A ausência de estimativas calcadas em dados objetivos estimulou o Fundo de Defesa da Citricultura (Fundecitrus) a fazer o mapeamento dos pomares de laranja, limão e tangerina das regiões produtoras (cinturão citrícola), trabalho que demandou alguns meses e levou uma equipe formada por 43 agentes de pesquisa a 447 municípios daqueles dois estados. “Os resultados do censo e da pesquisa de estimativa de safra (PES) irão melhorar a qualidade dos dados e a democratização da informação sobre o tamanho e a produtividade da citricultura”, ressalta a entidade. O Fundecitrus é uma associação mantida pelos citricultores e pela indústria de suco, que se tornou mundialmente reconhecida pelo combate às doenças de citros e realização de pesquisas com a missão de garantir a sanidade dos pomares.
De qualquer forma, a colheita projetada para a safra 2014/2015 não será recorde, e a maior de todas elas, a de 1999/2000, de pouco mais de 510 milhões de caixas, não será superada tão cedo. Assim como as safras de 2004/2005 (495,2 milhões); 1997/1998 (481,6 milhões); 2002/2003 (473,2 milhões) e 2007/2008 (469,9 milhões). Por ora, as expectativas sobre os números da safra 2015/2016 não são animadoras. “Ainda não temos a estimativa final, mas elas são negativas em razão do clima e dos baixos preços pagos aos produtores”, adiantou o presidente da Associação Brasileira de Citricultores (Associtrus), Flávio de Carvalho Pinto Viegas, em depoimento ao informativo daquela entidade, na edição de fevereiro/março deste ano.
Ele esclareceu que a seca de 2014 e as altas temperaturas provocaram o abortamento de florações e a queda de frutos, mesmo em pomares irrigados, considerando que todos os vegetais necessitam de água para manutenção e produção. A estiagem afeta o crescimento da planta, podendo mesmo levá-la à morte, além de reduzir a quantidade de frutos. Se as plantas já tiveram frutos, é quase certo que o produtor amargará queda no volume e na qualidade do suco.
É claro que nem sempre foi assim, com a produção sendo contabilizada em centenas de milhões de caixas. Na safra 1971/1972, por exemplo, a colheita não avançou além de 40 milhões de unidades, a menor oferta dos últimos 45 anos, um tempo em que o setor ainda dava os passos iniciais de uma caminhada que o conduziria ao topo da pirâmide em escala planetária – posto que já foi dos Estados Unidos, país que veio perdendo mercado por causa de seguidas quedas na colheita do estado da Flórida, onde a laranja é amplamente cultivada. Para a safra 2014/2015, a expectativa de produção para aquele estado americano é da ordem de 103 milhões de caixas, 2% menos que o resultado da safra passada e um tombo feio ante as 242 milhões de caixas de dez anos atrás.
Inspeções anuais
Geadas, furacões, pressão imobiliária e consumo de suco de laranja em baixa (destino de 90% da produção), enfim, uma somatória de motivos tem levado a Flórida a reduzir o cultivo do fruto. Todavia, nada se compara ao estrago provocado nos laranjais estadunidenses pelo greening, uma das pragas mais devastadoras que a citricultura já conheceu. Não se trata, porém, de um problema limitado aos pomares da nação de Barack Obama: o mal também grassa em outras partes do mundo, inclusive no Brasil, e, conforme ensinamentos do Fundecitrus, é a mais destrutiva doença dos citros no país. Não há variedade comercial de copa ou porta-enxerto que resistam ao seu ataque, e as plantas contaminadas não podem ser curadas.
Citricultores contam que a enfermidade muda a coloração das folhas das laranjeiras, que vão se tornando amareladas e com manchas, culminando, posteriormente, com o desfolhamento dos ramos e a morte dos ponteiros. Não bastasse isso, reduz o tamanho e deforma os frutos, causando expressivo prejuízo aos produtores. A huanglongbing (HLB) – doença do dragão amarelo – ou simplesmente greening, moléstia que surgiu na China no final do século 19, principiou sua caminhada destruidora nos pomares brasileiros na segunda metade do século passado, depois de já ter contaminado os laranjais nos continentes asiático e africano. A vilã desse alvoroço é a bactéria Candidatus liberibacter, transmitida por um inseto pequeno – o psilídeo Diaphorina citri –, mas com capacidade para pôr a perder investimentos milionários feitos no decorrer de décadas. Nunca se viu nada igual, considerando que, se nada for feito, a doença é capaz de tornar um pomar economicamente morto em questão de poucos anos. Um exemplo sempre lembrado é o da fazenda chinesa de Beihai, que no passado ocupou lugar de realce como produtora de citros, mas que, em dez anos, ficou sem seu pomar: o laranjal de 1,3 milhão de plantas foi integralmente aniquilado pelo greening.
Os chineses da Beihai podem ter sido pegos de surpresa, já que o controle adequado de plantações acometidas reduz o tamanho do prejuízo. E como isso é feito? Eliminando as plantas com HLB, independente da idade e da severidade dos sintomas, orienta o Fundecitrus. A pulverização com inseticidas nas plantas para evitar que insetos contaminados migrem para árvores sadias durante a operação de corte ou arranque é uma prática recomendável. O corte da árvore rente ao solo e a aplicação imediata de herbicida sobre o lenho, impedindo o rebrotamento do tronco e das raízes, também são operações bastante utilizadas. Especialistas dizem que não há necessidade de queima das plantas descartadas e sua substituição pode ser feita alguns meses depois, apenas para evitar uma possível intoxicação da replanta com o herbicida.
Outras medidas também contemplam o controle regional do vetor da bactéria causadora do greening: o uso de mudas sadias e a eliminação de plantas doentes em um raio de pelo menos um quilômetro em torno do pomar, destaca Marcos Antonio Machado, pesquisador do Instituto Agronômico de Campinas (IAC), da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo. O Fundecitrus recomenda, no mínimo, seis inspeções anuais em todas as plantas por pessoal capacitado, especialmente entre fevereiro e setembro, “quando os sintomas do greening são mais visíveis, facilitando, portanto, a identificação das laranjeiras doentes”.
A história do HLB no país pode ter pouco mais de dez anos, mas o medo da doença vem criando sobressaltos há muito mais tempo. Segundo o Fundecitrus, o inseto transmissor, o psilídeo Diaphorina citri, está presente no Brasil desde 1942, situação que manteve os pesquisadores em atenta prontidão. “A primeira suspeita da doença foi registrada em 1967, quando sintomas bem semelhantes aos do greening apareceram em pomares de Araraquara. O caso foi investigado pela pesquisadora Victória Rossetti, do Instituto Biológico, e Ody Rodriguez, do IAC, mas os testes microscópicos e de cromatografia, únicos existentes na época, não foram suficientes para determinar a causa dos sintomas. O caso ficou conhecido como o mal de Araraquara. O pomar foi erradicado e os sintomas sumiram”, esclarece o Fundecitrus.
O receio de que o HLB desembarcara em terras brasileiras retornou 20 anos mais tarde quando a clorose variegada dos citros (CVC) deu sinal de vida e passou a danificar as laranjeiras. À primeira vista, tratava-se do greening, mas os exames mostraram logo que, como da vez anterior, não havia por ora o que temer. “Embora não fosse HLB, o Fundecitrus resolveu, em 1999, fazer um alerta aos produtores de São Paulo, publicando o primeiro material educativo sobre a doença”, relata a entidade, passando, a seguir, a promover uma série de simpósios sobre a doença para engenheiros agrônomos e técnicos.
Evento mundial
Olhando para trás, vê-se agora que aquela foi uma iniciativa acertada: o profissional que, no início de 2004, encontrou várias plantas em pomares da região de Araraquara com malhas escuras (mosqueados) e comunicou ao Fundecitrus, integrou o grupo de pessoas treinadas naqueles encontros técnicos. Constatou-se, mais tarde, que aquele sintoma estava presente em pomares de 14 municípios. Na realidade, o problema era muito mais sério porque, em pouco tempo, o registro de plantas doentes já envolvia um número crescente de municípios.
O sinal vermelho estava aceso. Coletas e amostras, centenas delas (extrações de DNA, clonagens e sequenciamentos), e exames laboratoriais, aqui e na França, chegaram ao resultado que o setor tanto temia. “Assim a citricultura brasileira foi oficialmente apresentada ao greening”, diz Diva do Carmo Teixeira, pesquisadora do Fundecitrus. A instituição passou, então, a investir na ampliação das pesquisas, levando, simultaneamente, informações aos produtores. “Era fundamental conscientizá-los sobre a doença e ensinar a combatê-la”, frisa o gerente do departamento de Pesquisa e Desenvolvimento da entidade, Antonio Juliano Ayres. Ele conta que a divulgação foi feita por meio de manuais técnicos, campanhas em rádio e TV, outdoor, adesivos nos caminhões de laranja, imprensa e palestras. “Como parte dessa política de comunicação, o Fundecitrus organizou, em 2006, o primeiro evento mundial direcionado exclusivamente para discutir o HLB, reunindo especialistas americanos, brasileiros, chineses, franceses e sul-africanos”, destaca Ayres.
Desde o surgimento da doença, foram realizadas 123 pesquisas sobre HLB e psilídeo, 89 conduzidas pelo Fundecitrus e 34 por meio do apoio da entidade a parceiros.
O greening se espalhou pelo mundo e o combate à doença é geral, mas nada se compara ao sucesso alcançado em São Paulo. “Em dez anos, o HLB atingiu 15% das plantas do estado contra 50% na Flórida, que descobriu a doença um ano depois e, desde então, vem registrando quebras sucessivas de safra, em torno de 20%, anualmente, pela queda prematura dos frutos nas plantas doentes”, observa a instituição. “Antes de a doença chegar a São Paulo, era considerada terminal e significava a condenação da citricultura”, diz Machado, do IAC. “Houve um avanço considerável na área científica e tecnológica, que partiu do esforço de um grupo pequeno e com menos investimento do que em outros países, mas que conseguiu o que não se viu em cem anos na Ásia.”
Um bom exemplo desse trabalho foi dado em março passado, com a inauguração, pelo Fundecitrus, de um laboratório de Controle Biológico, em Araraquara. Com instalação de 342 metros quadrados, abriga uma biofábrica de criação de Tamarixia radiata, vespinha que parasita o inseto transmissor da bactéria do greening, empreitada que contou com recursos da Bayer CropScience e da Citrus Unidos. “Uma parceria firmada em prol do setor com o propósito de oferecer soluções sustentáveis e tecnológicas para os citricultores”, diz André Brante, diretor de Negócios da região Centro da Bayer CropScience.
Encontrada no país em 2005, a Tamarixia radiata, segundo o Fundecitrus, é uma maneira eficiente e sustentável de controlar a população do psilídeo. “Pesquisas desenvolvidas na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo (USP), em Piracicaba, comprovaram que em locais em que a vespinha está presente obtém-se a eliminação de até 70% das ninfas (fase jovem do desenvolvimento do psilídeo), em média, podendo atingir picos de 90%.” Cada vespa consegue parasitar até dez ninfas de psilídeo. Elas serão liberadas em áreas com citros e murta que não recebem controle químico e que podem servir de criadouros do inseto transmissor do greening, operação que não causa impacto ambiental, pois só parasita o psilídeo Diaphorina citri. “Nosso objetivo é contribuir com o manejo sustentável do HLB, proporcionando um meio natural de reduzir a população de psilídeo e, consequentemente, diminuir a necessidade de pulverizações nos pomares”, explica a bióloga Ana Carolina Pires Veiga, coordenadora do laboratório.
O HLB não é a única questão fitossanitária capaz de tirar o sono dos donos de pomares em território brasileiro. As laranjeiras também são afetadas por uma série de outras enfermidades – como o cancro cítrico, a clorose variegada dos citros, o declínio, a gomose, a leprose, a mancha marrom, a morte súbita dos citros (MSC), a podridão floral dos citros, a rubelose e a tristeza. Sem falar nas pragas que atendem pelos nomes de ácaro-da-ferrugem, bicho furão, cigarrinha, minador dos citros, mosca negra, mosca-das-frutas e ortézia. Todas elas, indistintamente, são de difícil controle, mas algumas têm merecido mais atenção por causa do potencial de destruição. O cancro cítrico, por exemplo, é um velho conhecido dos produtores. Os registros dão conta de que a bactéria causadora da doença apareceu pela primeira vez no país em 1957, na região de Presidente Prudente, no oeste do estado de São Paulo, tendo motivado, na oportunidade, a criação do Fundecitrus. As lesões provocadas pelo cancro cítrico, que se propagam através das folhas, frutos e ramos, são salientes, diferentemente do que se vê na maioria das outras doenças e pragas, um mal endêmico que já se espalhou por todo o estado.