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Antonio Risério
Antropólogo, poeta e ensaísta fala sobre identidade cultural, movimentos negros e temas ligados à vida intelectual baiana
O baiano Antonio Risério participou da implantação de projetos como o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, e a Fundação Gregório de Matos e o hospital Sarah Kubitschek, na Bahia. Antropólogo, poeta e ensaísta, é autor, entre outros livros, de Avant-Garde na Bahia (Instituto Pietro Bardi e Lina Bo, 1995), Oriki Orixá (Perspectiva, 1996), Uma História da Cidade da Bahia (Versal, 2004), A Cidade no Brasil (Editora 34, 2012) e Edgard Santos e a Reinvenção da Bahia (Versal Editores, 2013). Nesta entrevista, Antonio fala sobre temas ligados à vida cultural e intelectual baiana, como carnaval, axé music, candomblé e igualdade racial.
Alguns anos atrás o carnaval baiano era conhecido pela multiplicidade étnica dos blocos afros, indígenas, os trios elétricos. Hoje se percebe uma massificação pelo axé music. Você acredita que ocorreu uma “branquificação” de um carnaval de origem negra?
O que se tem hoje na Bahia é uma festa que, por falta de nome melhor, a gente continua chamando de carnaval e que se tornou uma grande festa empresarial. Os blocos afro podem até funcionar como chamariz turístico, mas a coisa da grana, do camarote, da festa de classe média, tudo isso virou mesmo uma empresa. Os blocos foram se convertendo em empresas, o axé explodiu no país todo. Outros cantores superiores não têm a mesma disciplina, não cumprem os horários de estúdio, então como vão concorrer com uma estrutura empresarial? O pessoal do axé music é disciplinadíssimo e também se alimenta de algo muito enraizado, que é o samba de roda, e pegou isso em um momento que deu certo. O axé também pegou a Bahia em um momento de extrema complacência, em que tudo aqui virou genial. Não tem como você argumentar o contrário.
Qual o resultado dessa massificação?
O que dançou foi o lado que a Bahia tinha de ousado, vanguarda, experimental, de procurar novos caminhos. Em todas as instâncias havia isso. Havia, pioneiramente no Brasil, uma universidade com curso superior de música, dança, teatro. Você tinha um reitor visionário, o Edgard Santos, que fazia parte de uma elite modernizante local que tentou recolocar a Bahia no mapa do Brasil e apostou na vanguarda para fazer isso. Coincidentemente, na época, muitos europeus tinham fugido da Europa em consequência do nazismo, ditaduras, e por desilusões com o que tinha acontecido em seus países, como Lina Bo Bardi e Karl Reuter, um músico alemão criado na música de vanguarda dodecafônica europeia. É essa vanguarda europeia que, trazida aqui, faz o seminário de música, forma Tom Zé, Caetano Veloso, Glauber Rocha. Esse contexto dos anos 1950 gera o Tropicalismo e o Cinema Novo. Essa era uma Bahia sofisticada e de vanguarda, inquieta, aberta para o mundo, misturando capoeira e Jean-Luc Godard. Essa era uma Bahia que interessava.
O que aconteceu depois?
Depois a Bahia ficou de costas. Fez sucesso, criou um mercado interno, todo mundo ganhando dinheiro sem precisar sair daqui, com os rádios tocando as músicas produzidas aqui, o governo incentivando, toda uma ideologia de baianidade. Isso deu certo mercadologicamente, mas em termos culturais e estéticos foi um atraso de vida. Abandonou-se qualquer coisa que fosse experimental. Dirigi uma pequena ópera nos 500 anos do Brasil com o Gilberto Gil e dirigi um pouco Margareth Menezes, Ivete Sangalo e Daniela Mercury. Eu me lembro da turma de Ivete achando que foi um fracasso porque o teatro não entrou em delírio. Eles não estavam acostumados com a plateia normal, que aplaudia no fim. O Brasil inteiro entrou em um circuito meio maluco, em que a experimentação dançou muito.
Por que, na sua opinião, se perdeu esse compromisso com a inventividade?
Em vez de ser uma economia de mercado, o Brasil está virando uma sociedade de mercado, e isso é péssimo. Essa coisa da ascensão social e incentivo ao consumo contamina muito a cultura. A cultura virou uma coisa que não é bem ela. Por exemplo, antigamente as pessoas tinham prazer de comer. Hoje existe uma espetacularização do ato de comer. As pessoas não comem, elas dissertam sobre isso. É toda uma falsa sofisticação que substitui o paladar pela cenografia do comer. Isso acontece em todas as áreas. O Brasil precisa de uma grande revolução cultural.
Você acredita que isso é possível?
Sim, eu acredito. O país que gerou o futebol com Pelé, o país que fez Brasília, que fez a Bossa Nova, a Tropicália e o Cinema Novo sempre pode surpreender a gente.
A Bahia colabora com o imaginário brasileiro desde Gregório de Matos, Dorival Caymmi, Carybé, Jorge Amado. Você acha que esses momentos fundadores foram ultrapassados e a gente está em uma outra situação em que não se busca mais uma identidade?
O problema não é esse, o problema é a qualidade da reflexão. Estamos em outro tipo de realidade, que exige novas formas de pensar, novos conceitos, mas cadê a produção disso? Se eu pego Antônio Vieira pensando sobre o século 17, o Nestor Duarte no livro A Ordem Privada e a Organização Nacional, o Guerreiro Ramos com a teoria da redução sociológica, são momentos de alta reflexão completamente extintos. A história é assim. Novos séculos, novas formas, mas cadê o pensamento sobre isso? E aí, nesse caso, a Bahia está no porão do porão. O Brasil ainda tem momentos em que produz coisas interessantes. Você vê reflexão de ponta no mundo, mas a Bahia está fechada, está de costas para o mundo. A Bahia está de costas até para o próprio Brasil. As pessoas aqui não sabem o que acontece em outros lugares.
O elemento negro ainda é central na cultura baiana?
Não tem como não ser. A Bahia é mestiça com predominância de signos culturais europeus e negros. Existe uma presença da coisa africana, da qual não há como escapar. Mesmo a língua falada no dia a dia é completamente impregnada de africanismos. O comportamento, o modo como as pessoas agem aqui. O próprio fato de o axé music estar enraizado no samba de roda. O samba de roda é de origem africana. O modo como isso é trabalhado é outra coisa. Houve uma injeção de reafricanização muito forte a partir da década de 1970. Virou inclusive moda as pessoas da elite frequentarem o candomblé. A elite baiana viu que estava correndo o risco de ser estrangeira em sua própria terra. O candomblé, nos últimos anos, é coisa de elite. O povão é evangélico. Os terreiros perderam os seus adeptos. A religião do povo hoje é o neopentecostalismo.
O enfraquecimento do candomblé interfere culturalmente em um espaço como Salvador, que tinha toda uma mitologia em torno dessa religião?
É complicado o momento em que a gente vive. O candomblé triunfou na cultura hegemônica dominante. A legislação protege os terreiros, eles são tombados, as mães de santo são reconhecidas, recebem condecoração, Dilma Rousseff vem jogar búzios aqui. Ao mesmo tempo, eles perdem no plano popular para os evangélicos, então o candomblé vai ter que se reinventar, porque ele já começou a virar uma outra coisa. A mistura das classes sociais lá dentro é a primeira. Nós vamos ter, em breve, uma espécie de neocandomblé. Ele vai ser obrigado a se reinventar ou vai sumir. Muita coisa já se perdeu de quando eu tinha 15 anos para cá. Muita gente não sabe mais dançar para alguns santos. Muitas cantigas só os mais velhos sabem, e isso vai sumindo.
Além do candomblé, existe algum outro elemento da cultura negra que você vê se dispersar neste momento?
Vejo uma espécie de baixa de qualidade geral e de densidade em tudo, não só na cultura negra. Não acho que isso possa ser algo simplesmente pessimista ou nostálgico, porque acho realmente que é possível haver séculos em que um país ou um povo não produzem culturalmente nada que interessa. Houve, no Brasil, o século 17, que foi extraordinário, em termos de criação poética e de reflexão antropológica religiosa, com Gregório de Matos e Antônio Vieira. No século 18, ninguém escreveu nada que interessasse no Brasil. Tivemos um segundo grande momento de criação na Bahia em meados do século 20. Podemos estar em um desses momentos em que não se produz nada que interesse.
Um um de seus livros você fala sobre os movimentos negros. Nos últimos anos nós tivemos cotas raciais, estatuto da igualdade racial e outros itens em termos de legislação que vieram em atendimento a essa movimentação. A partir da Bahia, qual o resultado disso?
É mínimo. O que mais me impressiona é a covardia política e intelectual da elite brasileira. Na década de 1970 a história do Brasil teve uma virada brutal. Até então havia a velha história oficial do Brasil, que celebrava a colonização portuguesa. Na década de 1970 vem a história dos oprimidos, em que tudo o que vem de índio e negro é bom, e tudo o que vem da Europa tem que ser jogado no lixo. Isso reduz a história brasileira a um filme de bandido e mocinho, e depois se aplica aqui o pensamento gerado pela realidade racial norte-americana. Nos Estados Unidos não existem mulatos, mestiços. Eu não sou, em princípio, contra as cotas, mas acho que não se deve jogar fora a experiência histórica brasileira. É uma prática importada que falsifica a experiência histórica e cultural do povo brasileiro. A história tem que ser olhada em sua complexidade. O que acho principal é parar de importar ideologias. Quando o Brasil vai pensar em seus próprios termos? Nós é que temos que produzir teorias originais, em vez de tentar colocar o país em uma camisa de força.
Você concorda com uma afirmação de que, no caso da discussão dos negros ¿no Brasil, a escravidão era quase um projeto de poder da África?
Isso é um fato histórico. Para dar um exemplo, Daomé mandou duas embaixadas à Bahia no final do século 18 para tentar garantir o monopólio da exportação de escravos para cá. Isso era uma peça fundamental da economia africana. Sempre houve escravos na África. As formações estatais africanas começam com a economia escravista. Tanto que foi uma zorra na África quando acabou o comércio atlântico de escravos. A maior crise econômica da história africana é essa.
Você tem escrito sobre urbanismo. O que tem ocorrido em Salvador nos últimos anos, nesse campo?
Observo também que a segregação espacial das pessoas na cidade chegou a um ponto que nunca tinha existido antes no Brasil. É até engraçado: numa sociedade escravista a distinção entre o senhor e o escravo é a mais nítida possível, mas na sociedade brasileira eles frequentavam os mesmos lugares. A segregação veio com a modernização do país. A modernização vai jogando as pessoas para as favelas e aplicando a engenharia de guerra à engenharia residencial. Em uma sociedade escravista, com todas as rebeliões de escravos, nunca se pensou em ter cerca eletrificada, alarmes, guaritas. Isso é engenharia de guerra, você cria trincheiras. As cidades, historicamente, sempre tiveram muros que as protegessem de inimigos externos. Hoje as cidades têm muros internos para proteger as pessoas umas das outras. Em Salvador, além disso tudo, a cidade foi totalmente abandonada. A cidade vai se expandindo e não tem uma produção urbanística dando conta.
“O que se tem hoje na Bahia é uma festa que, por falta de nome melhor, a gente continua chamando de carnaval. Os blocos afro podem até funcionar como chamariz turístico, mas a coisa da grana, do camarote, da festa de classe média, tudo isso virou mesmo uma empresa”
“Criou-se um mercado interno, todo mundo ganhando dinheiro sem precisar sair da Bahia, toda uma ideologia de baianidade. Isso deu certo mercadologicamente, mas em termos culturais e estéticos foi um atraso de vida”
“Nós vamos ter, em breve, uma espécie de neocandomblé. Ele vai ser obrigado a se reinventar ou vai sumir. Muita coisa já se perdeu de quando eu tinha 15 anos para cá”
“O que acho principal é parar de importar ideologias. Quando o Brasil vai pensar em seus próprios termos? Nós é que temos que produzir teorias originais, em vez ¿de tentar colocar o país em uma camisa de força”