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Shirlei Torres Perez
Pense na sua cidade
Essa provocação já levanta uma pergunta. Minha cidade? Qual cidade? A cidade em que nasci? O local onde eu vivo? A cidade que me traz lembranças, a mais confortável, a mais impressionante? Aquela que eu escolhi? Onde passei mais tempo? A cidade que eu sonho, um dia, conhecer? Onde pretendo viver?
A minha cidade é uma escolha, ou uma resposta natural, opção única? Qual a relação que me faz poder chamar de minha uma cidade?
Bem. Pense na sua cidade.
Na minha cidade, ali no fundo havia um rio. Depois veio o colégio, no alto da colina. O espaço foi desbravado, recebeu centenas de pessoas. Depois milhares. Viajantes, passantes, e os que ficaram. Os terrenos foram loteados, divididos e mais divididos. Espaços foram modificados, e os redesenhos, redesenhados. Minha cidade se tornou múltipla. Como quase todas as cidades, habita diferentes tempos, povoada de realidades muito diversas. Uma cidade é uma grande contadora de histórias, uma propulsora de memórias. Outras vezes um mosaico de problemas, um labirinto de impedimentos.
As memórias e história, os modos de vida, estão expressos no horizonte da cidade. Mas não apenas no horizonte, estão nos caminhos nas construções e nas sensações, nas relações. Os corpos que habitam o cotidiano da cidade são, ao mesmo tempo, habitados por ela. Quem atravessa, quem visita, quem conhece e quem estranha, faz parte desse ambiente, passa, incontinenti, a compor a relação.
A cidade difícil de longas distâncias, o pouco tempo destinado à convivência, o transporte público, ou a solidão no carro particular, o medo da violência, a violência do preconceito. O luxo do shopping exclusivo, o heliponto, a casa cercada e a rua particular.
A faculdade, o emprego, o fim de semana. A cidade nos habita, cria hábitos, e nós a desenhamos pelo hábito. A ocupação e uso de cada espaço, a construção de caminhos, o medo de passar e a vontade de transitar. Quem se encontra pelo caminho? As pessoas me tocam? Invadem o espaço, já difícil de dividir? Caminho com pessoas afins? Encontro amigos? Troco, de bolha em bolha, vendo o mundo pelas janelas?
Meu tempo me permite olhar pro lado? Eu gosto do que vejo? Desejo, desdenho, estranho? Reconheço?
Quando penso na minha cidade, existem muitos e muitos, outros e diferentes, a quem essa cidade também pertence. Desse ponto de vista, uma cidade sempre me parece uma luta – ou uma dança. A contenda entre o muro do castelo e a praça do mercado. A ideia de cidade como espaço protegido, em que a fortaleza demarca o uso e a propriedade, mas também dificulta a entrada, ou retarda a travessia. Delimita o diferente. Do outro lado, o encontro com o novo, a conversa do dia-a-dia, a cerimônia das trocas, o ver e ser visto.
Nesse embate, hábitos e ocupações são nossas ferramentas para circular entre as lógicas, para buscar a inversão de modelos estratificados, para a busca de uma cidade mais viva e mais criativa.
É preciso habitar o mundo das perguntas. Enxergar os desenhos e perguntar ‘por quê?’ Reconhecer as dinâmicas e sondar novas possibilidades. Acreditar na importância de compartilhar e de inverter as lógicas já conhecidas. As que nos incomodam e também as que nos confortam, pois sempre haverá alguém no outro extremo de cada relação.
Cada vez que a cidade ganha a rua, um caminho novo se abre. E a rua não é feita só de obstáculos e de lutas. Nem só de violência ou travessia. A rua pode ser o espaço de respiro, o mercado que oferece novos gostos. Arte, discussão, perguntas, caminhadas. Ganhar a rua é acreditar em novas perguntas. Investir na convivência, e lançar outro olhar sobre os espaços já conhecidos. É preciso perceber, com urgência, a importância do encontro, e é nesse momento que a coragem de olhar além do horizonte e das histórias já contadas pode trazer, realmente, um novo mapa.
Pense na sua cidade.
Shirlei Torres Perez, mestre e doutoranda em Comunicação e Semiótica, é gerente adjunta do Sesc Carmo.