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Marcelo Maluf
A ÁGUA, A BOLSA AZUL, VOCÊS E EU
Ela mergulha a cabeça num recipiente com água suja. Prende a respiração. Levanta e diz:
Minha mãe me disse: “comprei pra você, tem a sua cara”. A cara de uma bolsa azul. O que exatamente ela quis me dizer com “tem a sua cara”? Naquela época eu não pensei muito sobre isso. Usei a bolsa azul até que ela se transformasse num acessório do meu corpo, como os óculos para os míopes. Por isso, durante algum tempo, eu era “a bolsa azul”. Assim me apelidaram os meus colegas.
Ela mergulha novamente a cabeça num recipiente com água suja. Prende a respiração. Levanta e diz:
Aquele começo não estava bom. Enfiei demais a cabeça no recipiente, era só para molhar o rosto na primeira vez. Agora valendo: Quando me olho no espelho não me reconheço como uma bolsa azul. Os meus olhos são castanhos, a minha pele é branca, o meu sangue é vermelho. Nem mesmo o meu sangue é azul. Até parece que eu desejo ter sangue azul. Definitivamente, não. Com esses cabelos longos e esse corpo minguado, estou mais para uma cenoura com pernas de gambito. Uma cenoura parecida com a Pina Bausch. Se eu fosse uma atriz numa peça de contos de fadas, talvez me escolhessem para fazer o papel da bruxa e não o da princesa. Portanto, nada de sangue azul. Nada de castelos.
Quando eu era pequena tinha a mania de dançar no quintal da minha avó. Eu inventava uns movimentos e gestos que até hoje trago em mim, e fantasiava uma plateia como vocês, e me via num palco, como esse. É claro que vocês sabem que estão sentados num teatro e que eu sou a atriz principal da peça. Mas eu apenas sou a atriz principal da peça do meu ponto de vista e não do ponto de vista de qualquer um de vocês, o que faz com que vocês estejam no papel principal agora, olhando por outro ponto de vista. Talvez até o texto seja outro.
Quem me garante que vocês e esse palco não são invenções da minha mente? Ou da mente de vocês? E que na verdade eu estou vivendo neste exato momento dentro de um sonho. E tranquila eu durmo numa tenda no deserto do Saara. Ou em qualquer outro lugar habitado dentro do sonho e da mente de cada um de vocês? Um lugar que seja importante para a história que apenas vocês poderiam contar.
Ela afunda a cabeça na água e emerge rápido. Respira três vezes antes de recomeçar a falar.
Depois eu subia no pé de goiaba do quintal da minha avó e escolhia as goiabas com bichos, para imitar os gestos deles, os bichos de goiaba são mestres dançarinos. Eu os comia para ver se assimilava em mim os seus modos de se movimentar, tão graciosos. E caminhava como eles pelas ruas. Mas nunca entendi o motivo pelo qual os meus colegas de escola me chamavam, às vezes, de bicho de goiaba. Quando, é claro, eu não era a bolsa azul.
Eu gostaria que eles entendessem que eu não era nem o bicho de goiaba, nem a bolsa azul, que eu apenas era eu mesma. Só que eu gostava de imitar. Aquilo me trazia calma. Vocês já ficaram assim? Mansos como se num fim de tarde percebessem que vocês são o outro e não vocês mesmos? E que afastados de si admirassem aquele ser que um dia vocês foram? Aquela outra vida? Aquele estrangeiro?
Estar diante de si e perceber-se uma estranha. É assim. Vontade de ser outra. Se eu fosse outra eu iria fazer uma entrevista com o meu antigo Eu. E perguntaria tudo sem nenhum pudor. O perfume preferido, o livro favorito, as canções que me fizeram e me fazem chorar. Como você gosta de ser tocada? Em que lugar? E os segredos que só são possíveis de contar para as formigas em fila trabalhando. Essas coisas importantes pelas quais nos calamos.
Faria também aquelas perguntas que nunca temos coragem de fazer a nós mesmos. Como, por exemplo, você realmente sabe o que está fazendo no mundo? Dá para entender o que eu estou dizendo ou está muito confuso? Seria melhor se eu dançasse para vocês? Eu danço muito bem. Eu poderia cantar, mas é que eu comi alguns amendoins e eles podem aparecer entre os meus dentes. A verdade é que eu sempre achei que a dança é a melhor tradutora das coisas sem explicação, como os milagres e a morte.
Quando eu morrer queria poder dançar para que os meus amigos e parentes não ficassem chorando a minha falta. Se eu pudesse dançar, eles saberiam que eu estou bem. Será que as almas dançam? Alguém pode me responder? Ou é necessário ter o volume dos músculos e ossos para sustentar as agitações da alma? Será que só os vivos é que conseguem dançar?
Será que a dança é um privilégio de quem ocupa uma matéria bruta? Prefiro não saber a resposta. Gosto da ideia de não saber, as coisas em aberto não têm um fim. Elas continuam como um gesto em infinita expansão, como as imagens em nossa mente ou o desejo de novos amantes.
Ela submerge novamente a cabeça no recipiente com água suja e prende a respiração. Levanta. Olha para os rostos na plateia. Submerge mais uma vez. Os cabelos molhados. Sorri.
Hoje eu serei um pássaro. Eu sempre quis voar. Posso ser uma ave de rapina. Uma águia. Um falcão. Daí eu pousaria no topo de uma grande árvore e ali eu dançaria. Afinal, o que estamos todos nós fazendo aqui senão balançando, sentados nos galhos das árvores, esperando ouvir algum segredo do tempo. Depois as minhas asas poderiam pegar fogo. Uma experiência como essa não pode se tornar algo corriqueiro, banal, senão perde a poesia, sabe?
Tem que ser efêmero. Como tudo nesse palco é efêmero. Ou melhor, eu poderia ser um pica-pau, o pássaro escritor, registrando ideias em árvores, gravando com meu bico algumas histórias. E depois eu poderia morrer atingida por um raio. Ser vítima da luz. É que no fundo eu nunca quis que um milagre acontecesse em minha vida. Eu, na verdade, sempre desejei ser um milagre para alguém.
Ela mergulha a cabeça na água. Sessenta segundos. Levanta-se. Ofegante. A água se acalma. Translúcida.
Acho que esse deve ser o íntimo desejo de todo artista. Eu queria que um passo meu numa dança pudesse acordar o meu pai, e que ele viesse em minha direção sorrindo, e me aplaudisse, e me abraçasse. Eu queria que uma dança minha pudesse curar uma dor, que pudesse interromper um míssil, que me fizesse uma nova criança e que pudesse mil vezes se repetir sem parecer um gesto mecânico.
Vocês acham que eu tenho a cara dessa bolsa azul?
Eu sempre me achei mais laranja e amarela do que azul. Se vocês me disserem que eu me pareço mesmo com essa bolsa azul, daí eu vou entender que eu não me conheço mesmo. Se vocês me disserem que do ponto de vista de vocês eu não sou uma atriz numa peça de teatro e sim uma bolsa azul, eu não sei, mas eu posso parar de balançar aqui nessa árvore. Ou melhor, nesse palco.
Ela agita a cabeça na água. Emerge rapidamente. Ajeita o cabelo e percebe que a água ficou suja novamente.
Mas se vocês concluírem que eu me pareço com uma chuva de meteoros, daí, sim, eu irei concordar plenamente. É isso. É assim. Se eu não nascesse humana e nascesse uma chuva, eu seria uma chuva de meteoros. Há uma grande diferença entre essa bolsa azul e uma chuva de meteoros.
Não acham? Nenhuma bolsa azul é um farelo de cometa. E se vocês me veem como uma bolsa azul e não como uma chuva de meteoros, isso significa que eu não estou me expressando bem. E que eu não estou sendo transparente. E que eu não estou vivendo aquilo que eu sou e que eu deveria estar. Talvez se eu dançasse para vocês. Talvez ficasse claro.
Talvez se vocês prendessem a respiração agora por alguns segundos e olhassem para o céu enquanto eu mergulho a cabeça nessa água, talvez ela ficasse limpa para sempre, talvez vocês pudessem ver claramente, talvez pudessem compreender o que eu sou hoje. Talvez, quando vocês voltassem a olhar para mim, eu já não estivesse mais aqui, nem vocês, nem esse palco, nem essa bolsa azul.
Marcelo Maluf é autor dos livros Esquece Tudo Agora (Terracota, 2012), As Mil e Uma Histórias de Manuela (Autêntica, 2013), entre outros. Em 2013 foi contemplado com a bolsa de criação literária do Programa de Ação Cultural (ProAC), da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, com o romance A Imensidão Íntima dos Carneiros (inédito).