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Terra pintada de verde
Por: MIGUEL NÍTOLO
Um dia o café foi chamado de ouro verde em referência à sua condição de mola propulsora da economia nacional, mas isso foi há muito tempo. Era o produto que despertava o interesse no campo e imprimia força às exportações. Não seria nenhum despropósito, agora, emprestar o rótulo para a cana-de-açúcar, cultura que ocupa extensas áreas do território nacional – em especial o estado de São Paulo, seu maior cultivador – e que contribui com muitos cifrões para o fortalecimento das finanças nacionais. Faz sentido. A plantação do vegetal, safra 2015-2016, ocupa área de 8,95 milhões de hectares, uma imensidão que dá ao país a posição de maior produtor mundial do setor. “O Brasil tem disponibilidade de terras cultiváveis para o plantio da cana, sem prejuízo dos outros alimentos, além de tecnologia de produção e estrutura na distribuição”, diz o Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).
Aquele número, na realidade, a despeito de sua grandiosidade, é inferior em 0,6% (o equivalente a 49,7 mil hectares) ao espaço ocupado pela safra 2014-2015, e essa redução pode ser explicada pelo encolhimento da plantação em quatro polos produtores: Minas Gerais (menos 90,2 mil hectares), São Paulo (37,5 mil hectares), Paraná (21,6 mil hectares) e Espírito Santo (13,5 mil). Além deles, Alagoas, Paraíba, Piauí, Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul também devem amargar algum recuo, informa a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). No Brasil, assim como se dá com algumas outras culturas, são dois os períodos de plantio da cana-de-açúcar: no centro-sul ele se estende de abril a novembro, e, no norte-nordeste, de setembro a março.
Segundo a entidade, a produção nacional poderá chegar a 655,16 milhões de toneladas na safra em curso, um incremento da ordem de 3,2% ante a produção de 2014-2015. Deixa claro que esse avanço só não é maior devido – além da redução da área plantada – à queda da produtividade dos plantadores paulistas, que se recuperam da estiagem que pontificou na safra passada. “A expectativa é que a produtividade média em São Paulo seja de 74.945 quilos por hectare, 2,8% superior à safra 2014-2015, mas, ainda assim, 8,5% menor que no período 2013-2014, que foi de 81.899 quilos por hectare.” A Conab salienta que, graças ao pequeno avanço, a estimativa aponta para uma produção, no interior paulista, de 348,36 milhões de toneladas, um incremento da ordem de 6,8 milhões de toneladas em relação à safra anterior.
De acordo com a União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica), a moagem no centro-sul deverá cravar em 590 milhões de toneladas na safra 2015-2016, uma expansão de 18,66 milhões de toneladas em relação ao total processado no período 2014-2015. Maior organização representativa do setor de açúcar e bioetanol do Brasil, a Unica, criada em 1997, é o resultado da fusão de diversas organizações setoriais do estado de São Paulo, junção feita após a desregulamentação do setor no país. “As 120 companhias associadas são responsáveis por mais de 50% do etanol e 60% do açúcar produzidos em território brasileiro”, esclarece a sociedade.
O retrato do crescimento esperado para a safra em andamento, elaborado em conjunto com sindicatos, associações de produtores da região e o Centro de Tecnologia Canavieira (CTC), “decorre, em especial, da expectativa de um maior rendimento da lavoura em razão da melhora das condições climáticas”, observa a assessoria de imprensa da Unica. Segundo o diretor-técnico da entidade, Antonio de Pádua Rodrigues, “a retração na renovação dos canaviais no último ano e o consequente envelhecimento da lavoura devem ser mascarados pelo regime hídrico mais apropriado ao crescimento da planta e já registrado no início de 2015”.
Na realidade, a expectativa aponta para um aumento da produtividade agrícola neste exercício, mas o número final estimado para a safra ainda vai depender do índice de precipitação dos próximos meses, ponderou Rodrigues meses atrás. Ele disse que o reflexo da renovação não inteiramente consumada nos canaviais em 2014 é evidenciado a partir do perfil da lavoura disponível para colheita na safra atual. Os dados compilados indicam que a área de cana de primeiro corte deve representar apenas 14,5% do terreno total disponível para colheita no atual ciclo, contra 17,6% na safra 2014-2015. “A redução na taxa de renovação reflete a difícil situação financeira enfrentada por parcela significativa das unidades produtoras, e apesar de ter seu impacto minimizado em 2015, deverá levar a uma redução na disponibilidade de cana para colheita em algum momento nas próximas safras”, prognostica o executivo.
Ações ambientais
A Conab, cuja especialidade, desde sua fundação, em 1990, é fazer o acompanhamento da trajetória da produção agrícola no país e do planejamento do plantio à mesa do consumidor – e cujas ações são coordenadas pelo Mapa –, esclarece, por sua vez, que a melhora dos índices em âmbito nacional se deve, de certa forma, ao bom desempenho do cultivo no centro-sul e no norte-nordeste, destacadas regiões produtoras. Também assevera que a área cultivada com cana no estado de São Paulo equivale a 51,8% (4.648,2 mil hectares) do total plantado no país, despontando, em seguida, Goiás, com 10,1% (908 mil hectares); Minas Gerais, com 8% (715,3 mil); Mato Grosso do Sul, com 8% (713,7 mil); Paraná, com 6,8% (613,4 mil); Alagoas, com 4,2% (380,3 mil); Pernambuco, com 3,1% (273,4 mil) e Mato Grosso, com 2,6% (230,3 mil).
“Os oito estados respondem por 94,7% da produção”, classifica a Conab. E diz mais: acentua que no centro-sul a recuperação da produtividade induz à expectativa de um aumento da oferta em torno de 3,2%, crescimento que só não é mais substancioso devido, basicamente, ao encolhimento da área plantada. “Já nas regiões norte e nordeste a cultura da cana-de-açúcar, na safra 2014-2015, recuperou-se de uma forte seca no período compreendido entre 2012 e 2014, e, em função da expectativa de um bom regime climático, deve experimentar um acréscimo de 2,2% em produtividade na atual safra, além de um aumento de 0,8% na área plantada.” Se confirmados, esses resultados poderão levar aquele enorme pedaço do território nacional a dar um salto de 3,1% nos números da produção em comparação com a colheita anterior.
É assim que a terra descoberta por Cabral se mantém na liderança do setor, seguida de longe pela Índia, o segundo maior plantador de cana em escala global com 360 milhões de toneladas anuais, 200 milhões de toneladas menos que a safra brasileira. A grande diferença entre os dois produtores reside no emprego, pelo Brasil, de conhecimentos avançados em contrapartida à forma de cultivo praticada pelos conterrâneos de Gandhi. Notícias divulgadas pela imprensa relatam que, na grande nação asiática, boa parte do plantio, por exemplo, é manual assim como a aplicação de fertilizantes (ao contrário do que se tem aqui, lá são terceiros que plantam o vegetal, restando às usinas apenas seu processamento). Na lista dos dez mais importantes produtores de cana ainda despontam a China, o México, a Tailândia, o Paquistão, a Colômbia, a Austrália, a Indonésia e os Estados Unidos.
O fato é que o setor, no Brasil, está bem adiantado no plano tecnológico em relação aos seus competidores externos. Assim, por exemplo, no tocante ao plantio e à colheita da cana, a mecanização das usinas nacionais (hoje próxima de 100% no estado de São Paulo) deu um grande salto, 22 anos atrás, com o lançamento de uma máquina capaz de colher, picar e carregar a cana crua, equipamento que, sozinho, substitui algo em torno de cem trabalhadores. O elevado número da nova colhedora já em atividade no país, uma tecnologia desenvolvida aqui e que revolucionou o manejo nos canaviais, fechou uma infinidade de vagas, levantando vozes contra seu uso por causa, justamente, da eliminação de empregos numa área que não exige, necessariamente, a capacitação da mão de obra, bastando ao interessado habilidade no manuseio do facão (“podão”) e disposição para trabalhar debaixo do sol e mesmo da chuva.
A adesão ao equipamento em solo brasileiro ganhou força após o protocolo agroambiental celebrado pela indústria canavieira com o governo paulista, em 2007, iniciativa que tornou proibida a queimada da palha da cana em áreas passíveis de mecanização em São Paulo a partir da safra 2014-2015. O acordo também estipulou ações ambientais por parte das usinas, tais como, recuperação de matas ciliares, reúso da água, proteção das nascentes de rios e restrição ao emprego de agrotóxicos. Ficou combinado, também, que o entendimento passará a valer em 2017 para as áreas que não comportam a mecanização.
Fogo no trem
A população vizinha aos canaviais conhece o transtorno que as queimadas causam por espalhar fuligem por quilômetros, mas possivelmente desconhece os reais motivos que levam as usinas a agirem assim, sempre antes da colheita. As razões: eliminação de folhas secas (redução do custo do transporte) e da vegetação estranha que viceja junto ao pé da cana-de-açúcar; o afastamento de animais (abelhas, cobras e felinos, dentre tantos outros) que poderiam atacar os trabalhadores, e o incremento da produtividade pela consequente redução do esforço físico do cortador, que, livre da palha, tem a execução de sua tarefa imensamente facilitada.
Fogo no canavial pode levar a outras contrariedades. Em 8 de setembro passado, uma grande plantação de cana em chamas, entre os municípios paulistas de Lavínia e Valparaíso, na região de Araçatuba, provocou o incêndio de pelo menos 30 vagões carregados de papel de uma composição que vinha de Três Lagoas (MS) a caminho do porto de Santos. O fogaréu pode ter começado na rede elétrica de uma propriedade rural e, incontrolável, caminhado para o canavial. E fogo na cana é como rastilho de pólvora, se espalha com impressionante velocidade.
O imenso mar verde que cobre terras no passado ocupadas por outras culturas permitiu que, na safra 2014-2015, a oferta nacional de açúcar chegasse a 35,56 milhões de toneladas, 4,8% menos que a produção esperada para a safra atual (37,28 milhões). De acordo com a Conab, na safra anterior, 71,6% do açúcar foi produzido na região sudeste, 10,8% na centro-oeste, 9,5% na nordeste, 8% na sul e 0,1% na norte. A maior parte dessa colossal oferta é comercializada fora do território nacional: o país aparece como o primeiro do ranking entre as nações exportadoras com o embarque de 24,2 milhões de toneladas do produto na safra 2014-2015, tendo totalizado, no período, o ingresso de divisas da ordem de US$ 9,459 bilhões. Os paulistas se destacaram com a venda ao estrangeiro de 15 milhões de toneladas, seguidos pelos paranaenses, com 2,67 milhões; mineiros, com 2,39 milhões; alagoanos, com 1,58 milhão e sul-mato-grossenses, com 1,05 milhão. Segundo o Mapa, as vendas internacionais de açúcar pelo Brasil seguem uma linha francamente ascendente, antevendo-se o embarque, em 2019, de 32,6 milhões de toneladas.
A China passará a ocupar, este ano, o posto de maior importador global de açúcar bruto, desbancando a Indonésia da posição. Devido ao incremento de suas necessidades, a expectativa é que o país do mandarim compre no exterior entre 4 e 5 milhões de toneladas do alimento entre 2015 e 2016, e o Brasil, por sua condição de liderança na área, certamente ficará com um gordo pedaço dessa venda. Quando a China comunica a disposição de elevar a aquisição de determinada commodity no exterior, o mercado fornecedor internacional se agita tal feito ondas. Afinal, nunca é demais lembrar, a grande nação asiática é habitada por 1,39 bilhão de pessoas, constituindo-se no maior mercado consumidor do planeta. De sua parte a Indonésia, habituada a importar açúcar bruto para ser processado internamente (capacidade anual de 5 milhões de toneladas/ano), anunciou no ano passado que pretende comprar no estrangeiro, em 2015, o total de 3,6 milhões de toneladas do produto, 800 mil toneladas mais que o volume rotineiramente importado a cada exercício.
A produção de açúcar no Brasil consome pouco mais de 30% da cana colhida. A maior parcela, ao redor de 65%, ou pouco mais, contrastando com os números de décadas atrás, destina-se à fabricação de álcool. O Programa Nacional do Álcool (Proálcool), criado há 40 anos pelo governo federal com o propósito de intensificar a oferta nacional de etanol, foi a alavanca que deu uma nova face ao setor, até então focado essencialmente na produção de açúcar. A ideia era oferecer uma opção nacional à gasolina, um produto caro à época por causa da crise mundial do petróleo, e o país, naquela oportunidade, sangrava financeiramente porque era um grande importador do combustível. Graças ao advento dos carros flex fuel (que consomem tanto gasolina quanto álcool), as usinas se sentiram tentadas a investir no biocombustível. É sabido, também, que o baixo preço internacional do açúcar no mercado internacional motivou os usineiros a destinarem a maior parte da cana para a fabricação de álcool. O fato é que o veículo flex fuel se converteu num sucesso de vendas: estima-se que em 2017, de cada quatro autos novos comercializados no Brasil, três serão dessa modalidade. Desde a criação do Proálcool até a safra 2014-2015, encerrada em março último, o etanol substituiu 2,5 bilhões de barris de gasolina, e, conforme a Unica, aquele volume equivale a US$ 190 bilhões, considerando a cotação do derivado de petróleo no início de agosto passado, quando a informação foi divulgada.
Usinas desativadas
Na safra 2015-2016, calcula-se, serão produzidos 28,52 bilhões de litros de álcool, uma pequena queda de 0,5% (o equivalente a 139,69 milhões de litros) em relação ao resultado da colheita anterior, mas um volume estratosférico ante os números do passado, quando a gasolina reinava soberana no acionamento dos motores de ciclo Otto (combustão interna). Como no caso do açúcar, aqui também a parte de baixo do país participa com a maior fatia da oferta: a região sudeste responde por 57,4% da produção, vindo, a seguir, o centro-oeste (28,8%), o nordeste (7,2%), o sul (5,8%) e o norte (0,9%). A Unica informa que os brasileiros dominam 30% da produção e 60% das exportações mundiais de etanol. O volume maior das vendas externas do país concentra-se na Europa, nos Estados Unidos e no Japão. Em 2014, o Brasil exportou 1,395 bilhões de litros de etanol, gerando divisas da ordem de US$ 898,1 milhões.
A nova realidade, é claro, deveria dar mais músculos para as empresas do ramo; todavia, não foram poucas as usinas que, descapitalizadas, desligaram as moendas. Sabe-se que das mais de 400 unidades de produção que davam vida ao setor, anos atrás, 80 já foram desativadas e 66 estão em recuperação judicial. Durante o Ethanol Summit, realizado entre os dias 6 e 7 de julho passado, a presidente da Unica, Elizabeth Farina, disse que as atribulações do setor tiveram origem, dentre outros fatores – recessão econômica, excesso de açúcar no mercado mundial e custo elevado de produção –, na política equivocada de preços dos combustíveis praticada pelo governo. Idealizado pela entidade, em 2007, e realizado a cada dois anos, o evento é um dos mais representativos em escala global direcionados para as energias renováveis, em especial o etanol e demais derivados da cana-de-açúcar. “Desde que a gasolina passou a ser subsidiada pela Petrobras, o etanol perdeu a competitividade e isso foi devastador. A demanda pelo álcool aumentou só no início do ano porque o governo voltou a cobrar a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) sobre a gasolina”. Elizabeth lembrou que a crise que aflige as usinas já tem cinco anos, e que essa situação de penúria “aprofundou o endividamento das empresas uma vez que elas passaram a não obter resultados positivos”. O reajuste dos combustíveis no início de outubro, justiça seja feita, deu um novo ânimo para as usinas, mas as empresas não podem viver apenas de alentos.
O setor canavieiro, a bem da verdade, não tem limitado seus passos ao açúcar e ao álcool. De uns tempos para cá passou a atuar com desenvoltura na geração de eletricidade a partir do bagaço e da palha da cana. Em 2013, para ter-se uma exata noção dessa investida, o negócio respondeu por 16% de toda a energia no país. Os especialistas dizem que o potencial de crescimento da promissora fonte é muito grande; entretanto, argumentam, é essencial que as usinas invistam na atualização dos equipamentos, em novos conhecimentos e na expansão do parque produtivo (maior volume de resíduos, maior quantidade de biomassa). Ensinam os entendidos que uma tonelada da matéria-prima (cana-de-açúcar) moída rende 250 quilos de bagaço e 200 quilos de folhas e palhas, em média. Se todas as empresas do setor revelassem interesse pela bioeletricidade, o quadro seria outro. Ocorre que, infelizmente, ao redor de 60% delas ainda não se engajaram na nova empreitada.
A paulista Raizen, que opera 24 unidades de produção e é responsável pela oferta anual de 4,1 milhões de toneladas de açúcar e 2,1 bilhões de litros de etanol, é a empresa do ramo com maior representatividade na produção de bioeletricidade. “Dispomos de 13 termoelétricas que operam associadas às nossas unidades produtoras”, informa a empresa em seu site. Ela destaca que suas usinas dispõem de uma capacidade total instalada de 940 megawatts, e que esse potencial “permite a comercialização anual de energia elétrica de aproximadamente 2,2 milhões de megawatts/hora”, o suficiente para suprir, por exemplo, as necessidades de uma cidade com 5 milhões de habitantes.