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Modernização à brasileira
Luiz Felipe de Alencastro é professor titular da Escola de Economia da Fundação Getúlio Vargas e professor emérito da Universidade de Paris-Sorbonne. Possui graduação no Institut d’Etudes Politiques d´Aix-en-Provence e doutorado e pós-doutorado em Histoire Moderne et Contemporaine, pela Universidade de Paris.
Livre-docente em história econômica pela Unicamp, foi pesquisador sênior do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e professor de História do Brasil na Universidade de Paris-Sorbonne. É membro titular na mesma universidade do Institut de Recherche sur les Civilisations de l’Occident Moderne e do Centre Roland Mousnier. Professor titular da Escola de Economia de São Paulo, FGV.
Esta palestra de Alencastro, com o tema “30 Anos de Redemocratização”, foi realizada no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Fecomercio, Sesc e Senac de São Paulo, no dia 11 de junho de 2015.
Uma coisa que não é óbvia e que é muito subestimada no Brasil é o fato de que o Estado brasileiro é o único agregado colonial que não se fragmentou na independência. Os outros quatro da América espanhola se transformaram em 20 países, a América francesa se esfrangalhou, venderam a Louisiana para os Estados Unidos e Quebec já havia sido tomada pelos ingleses na Guerra dos Sete Anos. Ficaram com a Martinica e a Guiana. Na América inglesa houve a independência americana e o Canadá ficou nesse estatuto intermediário com as colônias do Caribe. Assim, dos grandes poderes coloniais, o Brasil foi a única colônia que não se fragmentou e que organizou um Estado nacional em torno da capital do vice-reino, que era o Rio de Janeiro desde 1763 e depois capital do país independente até 1960.
O Estado nacional era formado por duas camadas bem distintas, talvez as mais distintas entre as nações americanas. Uma era a classe dirigente, a burocracia luso-brasileira em torno da Coroa. José Bonifácio de Andrada e Silva já era ministro da Coroa em Portugal e chefe de polícia do Porto quando veio para cá liderar o movimento de independência. Havia então uma ascensão política de colonos do Brasil na própria metrópole. O movimento é feito por essa camada, que é relativamente experimentada em relações internacionais, muito mais que em muitos países latino-americanos. Não mais que os Estados Unidos, mas certamente mais até que o México. A Argentina era um pequeno país.
Então era uma situação bem específica. Havia uma classe dominante constituída de fazendeiros e da oligarquia regional, o país era administrado de maneira centralizada, não havia governadores, o presidente da província era nomeado pelo ministro do Império e ninguém discutia, vinha tudo do Rio de Janeiro. Nesse sentido a mudança da capital para Brasília foi um desastre, pois decapitou o país politicamente. São Paulo tem um peso importante, mas nunca teve hegemonia nacional do ponto de vista político. Nos 1960, havia poucos estudantes na Universidade de Brasília e o “Correio Braziliense” era um jornaleco sem expressão. Não havia DDD, a cidade tinha um aeroporto pequeno, com duas estradas, uma para Goiânia e a outra para Paracatu e Belo Horizonte. Esta era chamada de Estrada da Onça.
Não havia sociedade civil alguma, só funcionários públicos. Houve então um primeiro colapso com a renúncia de Jânio Quadros, que já foi resultado desse isolamento. Tenho para mim que o golpe de 1964 tem muito a ver com o isolamento de Brasília. Não se faz História na base do “se”, mas no Rio de Janeiro teria sido impossível trancar o país como foi trancado. Inclusive o Ato Institucional nº 5 (AI-5), de 1968, foi declarado no Palácio das Laranjeiras, não em Brasília.
Diretas Já
O grande fenômeno político durante o regime militar foi a emergência de São Paulo como liderança política do Brasil no quadro do bipartidarismo. As lideranças políticas paulistas antes eram de partidos regionais, com líderes populistas como Adhemar de Barros e Jânio Quadros. Embora Jânio tivesse ganho a eleição, ele praticamente não teve carreira política no Rio de Janeiro. Foi deputado federal por um período muito curto e em seguida foi para Brasília. São Paulo cresceu com o MDB [Movimento Democrático Brasileiro] e lideranças como as de Fernando Henrique Cardoso, Ulysses Guimarães e Mario Covas, sobretudo a partir de 1974, com a eleição para o Senado. As eleições para governador e prefeito das capitais haviam sido suprimidas e o voto para o Senado representava então o protesto no mais alto nível majoritário.
Em 1982, com as primeiras eleições diretas para governador, o PMDB [Partido do Movimento Democrático Brasileiro] ganhou na maioria dos estados, sobretudo em Minas Gerais, Paraná e São Paulo (no Rio de Janeiro foi eleito Leonel Brizola, do PDT). Em seguida houve ainda a campanha das Diretas Já, catapultada por esses governadores. Essas manifestações foram muito mais importantes numericamente do que as de junho de 2013. Foram as maiores manifestações em massa da América Latina. Nos palanques estavam governadores que tinham legitimidade político-eleitoral. E na presidência já existia um governo de influência declinante. Não houve efeito imediato, mas foi a derrota que se transformou em vitória mais adiante.
São Paulo apareceu então como centro econômico e político do país e, em certa medida, cultural também. Novamente se abre uma centralidade. Em seguida, com o multipartidarismo e a volta dos exilados e das lideranças políticas anistiadas (como Mario Covas, em São Paulo, Waldir Pires, na Bahia, Mauro Borges, em Goiás, Brizola, no Rio Grande do Sul e Miguel Arraes, em Pernambuco), as lideranças se fragmentaram, houve um choque de gerações. E ocorreu a emergência do PT [Partido dos Trabalhadores], com a liderança de Lula [Luiz Inácio Lula da Silva].
Em 1989 havia cinco candidatos paulistas para a presidência. A liderança política do estado não podia ser cristalizada em um candidato só, mesmo no sistema de dois turnos. Eles eram Lula, Mario Covas, Paulo Maluf, Guilherme Afif Domingos e Ulysses Guimarães. Conseguiram um somatório de 47% dos votos no primeiro turno. Em 1994 eram quatro candidatos de São Paulo: Fernando Henrique Cardoso, Lula, Enéas [Carneiro] e [Orestes] Quércia. No somatório foram 93% dos votos. Em 1998 foram Fernando Henrique, Lula e Enéas, atingindo 87% dos votos. Em seguida começa a haver um declínio. Em 2002 Lula e Serra têm 69% dos votos, porque a candidatura de Garotinho polarizou o Rio de Janeiro enquanto Ciro Gomes atraiu o voto do nordeste. Em 2006 aparecem sozinhos Lula e Geraldo Alckmin, chegando a 91% dos votos. Em 2010 não temos mais o Lula, mas Dilma Rousseff, criatura dele, José Serra e Plínio de Arruda Sampaio. Já em 2014 não há mais paulistas no páreo.
Se tomarmos em conta que o PT e o PSDB se enfrentam desde 1994 e que Lula foi três vezes candidato a presidente e uma a governador, perdendo todas elas, vemos que há um declínio da representação de São Paulo. Uma parte da crise política que ocorre hoje às vezes é sobreposta a uma rivalidade regional também.
Reeleição
Vale lembrar que o sistema político brasileiro é peculiar também no sentido de que as câmaras municipais nunca deixaram de funcionar. Foram elas que legitimaram o Império, porque depois da Independência reconheceram o imperador. Essa continuidade dura até hoje, há um poder municipal muito sólido. Quer dizer, não temos uma tradição democrática, mas uma tradição parlamentar. Isso nos distingue de vizinhos, como a Argentina, onde não há um enraizamento tão forte dos partidos.
Quanto à reeleição, tanto Fernando Henrique, que foi quem tomou a iniciativa da emenda da reeleição, quanto Lula – os dois únicos presidentes que completaram os dois mandatos – são favoráveis a ela. Ela existe em vários países. Não existe no Chile, mas esse é um caso um pouco particular, pois muitos a apoiam. É complicado dirigir um país de proporções continentais e federativo com um mandato só. Um mandato só não garante uma boa administração. Em São Paulo, o governador Quércia teve um mandato só, como Luiz Antonio Fleury Filho, mas não deixaram boas lembranças como gestores. Há muitos casos assim em que o estado saiu pior do que quando começou. Mas nem Lula nem Fernando Henrique se acertam para articular, mesmo que discretamente, uma oposição à medida de acabar com a reeleição.
Não sou excessivamente pessimista quanto às mudanças, há coisas votadas que são muito importantes. Uma delas, em que me empenhei muito e segui de perto, foi a questão das cotas nas universidades, que foi julgada constitucional por unanimidade no Supremo. O ministro Dias Toffoli não votou porque tinha sido advogado geral da União na época e por isso se considerou impedido, mas houve dez votos a favor. Nesse Supremo, que é o STF [Supremo Tribunal Federal] mais conflitivo que tivemos, o relator foi Ricardo Lewandowski que até foi elogiado pelo ministro Joaquim Barbosa, com quem iria em seguida se antagonizar de forma pesada. Na Câmara dos Deputados o tema foi aprovado com a maioria de votos e no Senado com a maioria menos um, do senador por São Paulo Aloysio Nunes.
O governo de Fernando Henrique começou uma política de cotas também, inclusive criou um curso no Itamaraty com bolsas para candidatos negros. Às vezes a pressão vem de fora. O Brasil estava se abrindo diplomaticamente para a África e hoje tem mais embaixadas nos países africanos do que na América Latina (37 contra 35).
Outro fato que me impressiona muito é um certo fechamento mais autocentrado. Parece que o resto do mundo não existe. Na saudação de fim de ano de 2014, ano da eleição, a presidente Dilma, ao falar sobre política internacional, disse “lá fora”. Ora, nem no Senado do Império se dizia “lá fora”. Desde 2009 a China é o maior parceiro comercial do Brasil, mas não há um só professor da USP que fale mandarim. Dos 140 embaixadores e ministros (cargos imediatamente anteriores aos de embaixador) só meia dúzia arranham o mandarim e dois sabem bem. Uma situação absurda. Ninguém sabe nada do país ao qual estamos entregues em matéria de comércio exterior. Não falo em especialista em China do ponto de vista universitário, mas de alguém que chegue a Xangai, compre o jornal local, assista a um filme ou fique conversando com amigos chineses. Alguém que seja reconhecido como tal por outros especialistas, principalmente pelos chineses. Isso não há.
Transição demográfica
Fui aluno de Celso Furtado e ele dizia que o Censo Demográfico de 1940 foi o censo básico do Brasil. Foi um exilado italiano, Giorgio Mortara, quem sistematizou isso. Não havia aparelho estatístico normatizado no Brasil, era tudo meio caótico. Por aquele censo, tínhamos 40 milhões de habitantes. Éramos um país rural e pouco habitado. A mudança começou em 1960. Hoje a população rural é bem menor, houve uma inversão. A China não é assim, como a Índia. Dos Brics [Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul] somos o país que tem maior população urbanizada, o que é muito importante.
Paralelamente, assistimos a uma queda abrupta no número de filhos a partir de 1970 e isso foi extremamente rápido também. Alguns países demoraram 80 anos para fazer a transição demográfica, como Portugal, Irlanda e outros países católicos. Aqui também houve um fenômeno muito interessante de modernização da sociedade. Isso em um país católico, onde evidentemente se impedia qualquer política de controle de natalidade, como também um país onde os militares apoiavam o crescimento demográfico. Na Índia isso aconteceu durante o governo de Indira Gandhi, de maneira abusiva, e na China é feito de maneira autoritária.
O Brasil ainda vai crescer em população até 2050 e depois declina. Por projeções da ONU vamos ter 194 milhões de habitantes em 2100, número que tínhamos em 1990. Como resolver isso? Duas coisas: adota-se uma política natalista como fizeram os franceses desde o fim da Primeira Guerra, pela qual paga menos imposto quem tem mais filhos; existe uma ajuda em dinheiro para a família desde que a gravidez é constatada pelo médico. Há visitas médicas gratuitas tanto para mulheres milionárias quanto para as pobres. Isso fez com que a natalidade francesa se aguentasse. Todos os outros países industriais vão afundar.
Quem pode aguentar? Os Estados Unidos, porque lá existe uma política generosa de assimilação de imigrantes. Há 5 milhões de imigrantes ilegais no país, mas seus filhos já não o são. Se o Brasil não adotar uma política de imigração, vamos ter problemas no médio prazo. Para dar uma ideia, em 2100 o Japão terá cem mil cidadãos com mais de 100 anos. E nesse mesmo ano um habitante sobre dois estará vivendo na África. Estamos então em uma situação de mudança demográfica muito importante, é preciso ver esse contexto.
A queda da inflação teve influência sobre Índice de Gini, com o Plano Real em 1995 e depois com o Bolsa Família, mas sobretudo pelo aumento do salário mínimo, a partir de 1990. O salário mínimo é mais importante que o Bolsa Família porque tem um efeito em cadeia sobre os outros salários, mesmo no trabalho informal. Isso sem falar nas aposentadorias, nos contratos e essa coisa toda. A média do nível educacional da população acima de 15 anos também melhorou consideravelmente desde 1980, mas ainda não apresenta um destaque muito grande.
Debate
HUGO NAPOLEÃO – Em relação à formação do território brasileiro, a meu ver muito contribuiu o fato de Portugal ter ficado sob o domínio da Espanha durante 60 anos, depois da morte do rei dom Sebastião. Muito pouca gente sabe que a expressão “a ver navios” advém do fato de que os lusitanos ficavam olhando os navios, aguardando a volta do rei. Foi quando desapareceu a linha do Tratado de Tordesilhas e começaram as entradas e bandeiras dos portugueses, responsáveis pela imensidão de nosso território único e não fracionado.
Quanto à China, onde meu pai foi o primeiro embaixador, há uma expressão citada por Alain Peyrefitte – “Quand la Chine s’éveillera, le monde tremblera” (Quando a China acordar, o mundo tremerá) –, que é atribuída a Napoleão Bonaparte. Foi ele mesmo quem primeiro visualizou o poder chinês?
LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO – A China sempre foi uma grande potência. Na história da humanidade dos últimos 2000 anos, o lugar onde a riqueza esteve acumulada em território próprio por mais tempo foi a China. Os outros não existiam. Japão, Estados Unidos e Inglaterra não existiam como tal. Um livro do Kenneth Pomeranz, The Great Divergence, de 2010, mostra como a China perdeu pé no começo da Revolução Industrial. Até ali foi uma potência, mas perdeu a chance e só voltou agora, porque não tinha carvão perto das zonas industriais. A China não possuía colônias, mas tinha um Estado e uma economia avançados.
NEY FIGUEIREDO – O senhor falou que o golpe de 1964 não seria possível se fosse no Rio de Janeiro, mas gostaria de lembrar que no curto período de 1930 a 1954 o Rio como capital passou pelo movimento de 1930, com Getúlio; depois o de 1932 (Revolução Paulista), o de 1937, em que o Getúlio não caiu quase que por acaso. Depois houve o golpe de 1945 e o de 1954. Aliás, foram três golpes seguidos: tiraram Café Filho e puseram Carlos Luz, deposto em seguida e substituído por Nereu Ramos. Juscelino Kubitscheck, o presidente seguinte, pensou em construir Brasília, porque, entre outras vantagens, haveria maior estabilidade política, pois o Rio de Janeiro era muito sujeito à imprensa e a pressões.
Sobre a reeleição, o primeiro mandato de Fernando Henrique foi brilhante, teve uma série de acertos, como a Lei de Responsabilidade Fiscal e a luta contra a inflação, mas o segundo foi um desastre. Ele próprio reconhece isso. Uma das críticas que se faz à reeleição é que no Brasil o detentor do poder tem exposição na mídia porque é o presidente. E concorre com uma grande vantagem.
Quanto à China, realmente é um grande desconhecido para nós. Um embaixador que foi cônsul-geral em Xangai, durante dez anos, Marcos Caramuru, que fala muito bem o mandarim, tem publicado diversos livros e escreve semanalmente na “Folha de S. Paulo”.
LUIZ FELIPE – O que foi dito a respeito do Rio é verdade. Mas o candidato forte em 1964 era Juscelino. Aliás, isso açulou o golpe. Lacerda era o candidato da UDN [União Democrática Nacional], Juscelino era imbatível pelo PSD [Partido Social Democrático] e o PTB [Partido Trabalhista Brasileiro] de Jango não tinha candidato. No Rio, quem ganhou a eleição foi Negrão de Lima, em Minas, Israel Pinheiro, dois candidatos de Juscelino. A presença do PSD e de Juscelino somente desapareceu com a morte dele. O Ato Institucional no 2, de 1965, foi uma reação ao PSD, pois extinguiu os partidos políticos e eliminou a eleição para governador. Aí começou um fechamento progressivo do regime.
Sobre a China, o embaixador Clodoaldo Hugueney, falecido recentemente, era também um grande especialista em China. Os diplomatas estão muito atentos a essa especialidade. A carência começa na universidade. Estamos importando profissionais. Um lembrete: há 500 anos de documentação em português sobre a China, vinda de Macau, que era o único enclave ocidental na Ásia, e falando a língua portuguesa.
JOSEF BARAT – Em uma perspectiva de longo prazo, um país que teve 300 anos de inquisição, 350 anos de escravidão e 300 anos de absolutismo, ou seja, de ausência de cidadania, como pode se abrir para o mundo e tornar-se uma sociedade democrática? Outra questão, mais um comentário. Um viajante que estivesse em Londres em 1450 e viajasse para Pequim nesse mesmo ano apostaria na China. No entanto, a história mostrou exatamente o contrário, os fatores que levaram à Revolução Industrial e ao desenvolvimento científico da Europa, a China não teve, ficou estagnada.
LUIZ FELIPE – O livro de Kenneth Pomeranz traz elementos novos para essa discussão. Falei há pouco de Macau. São Paulo foi fundada por um jesuíta e três anos depois Portugal chegou a Macau, ou seja, em 1557. Nunca os portugueses ultrapassaram seis quilômetros além de Macau. Quando saíram de lá, em 1999, havia menos de 2% de pessoas que falavam português. Isto é, ficaram por 450 anos fazendo comércio como uma feitoria. O que fez o Brasil passar de feitoria para colônia foi o tráfico negreiro. Até 1850 chegaram aqui seis vezes e meia mais africanos que portugueses. Sabemos o número quase exato de africanos porque era um comércio. Os portugueses eram muitos, vinham até clandestinos, ou eram marinheiros que ficavam e se misturavam sem registro.
Além de ter escravidão, o Brasil foi o único país independente que fez tráfico negreiro em grande escala. Cuba também fazia, mas era uma colônia espanhola, não existia a responsabilidade do governo local. Por isso falo da questão das cotas, que é uma medida provisória. Não é uma política permanente, mas transitória, para dar um start a uma mobilidade social que vai enriquecer muito o Brasil sob todos os pontos de vista. Recentemente foi votada a PEC [Proposta de Emenda à Constituição] das domésticas, que viviam uma situação de não direito. Isso vai mudar o país. E às vezes é problemático para elas próprias porque provoca um desemprego agora, justamente quando está havendo um crescimento do setor de serviços. Mas significa um progresso para o país, pois hoje ninguém mais tem isso em lugar nenhum do mundo. Se tem, paga.
A inquisição e o escravismo foram coisas pesadas no Brasil. A inquisição usava como prova fundamental a confissão sob tortura, que fazia parte da prática processual. O escravismo transformava a pena de prisão, do Código Penal de 1830, em açoite. Claro que ninguém queria o escravo na cadeia, porque perdia o trabalhador. Assim, a escravidão levou a legalidade da tortura no Brasil até 1888.
LUIZ GORNSTEIN – Gostaria de ouvir um comparativo entre os regimes autoritários do Chile e do Brasil. No Chile foi muito violento, suprimiram as liberdades, mas trouxeram economistas da escola de Chicago, modernizaram o país e seu IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] melhorou.
LUIZ FELIPE – A situação que vemos de boom na China ocorreu antes no Chile. As reservas de cobre, que sempre foi um minério estratégico, favoreceram os chilenos. É também um país com apenas 17 milhões de habitantes, menor que o estado de São Paulo. É outra escala de problemas e de pobreza. A saída daquela fase de radicalização era mais fácil lá do que aqui.
EDUARDO SILVA – Estive na China com Figueiredo Ferraz, no começo da década de 1970. Éramos de uma empresa que fazia projetos de barragens, pontes etc. Para minha surpresa, fomos recebidos por chineses falando português. Desde aquela época, ou seja, há mais de 40 anos, a China já estava se preparando. Não é surpresa que tenha crescido desse jeito.
LUIZ FELIPE – A respeito do português na China, eles têm um sistema muito dividido. O pessoal que vai para a África lusófona, especialmente para Angola, aprende em Macau, pois o substrato de chineses lusófonos lhes ensina, enquanto o pessoal que vem para o Brasil aprende nas universidades do continente mesmo. A língua portuguesa continua sendo tratada com cuidado.
ÁLVARO MORTARI – O senhor mencionou a diminuição populacional nos países do Primeiro Mundo, fora os Estados Unidos, e o aumento populacional das nações do Terceiro Mundo. Isso é a médio ou a longo prazo?
LUIZ FELIPE – É uma projeção da ONU que saiu em 2013.
MORTARI – Parece-me que somente nos países do Terceiro Mundo a população se sente protegida e segura por ter um grande pai. Getúlio foi um deles, como Juan Perón, e atualmente temos em alguns países aquela figura protetora, como Nicolás Maduro, na Venezuela etc. Isso é uma questão cultural latina difícil de ser alterada. No Brasil temos o Bolsa Família e uma série de opções para aquele que está satisfeito em ganhar pouco. O bolsista não pensa em melhorar de vida porque tem um grande pai, que está resolvendo seu problema.
LUIZ FELIPE – Quanto à questão cultural do Terceiro Mundo, isso a gente não sabe, porque os preconceitos sobre a cultura são muito pesados. Os japoneses compõem um povo que durante a guerra era comparado aos ratos nos desenhos em quadrinhos, havia a opinião de que o Japão era um país grotesco. Tornou-se uma grande potência e é um país pacífico. A Alemanha, que era o país mais civilizado da Europa, apresentou a coisa mais bárbara do século 20. E vejam que Hitler foi eleito. E a Alemanha nunca mais se recuperou culturalmente. Hoje é uma grande potência, mas o número de cientistas avançados que tinha desapareceu.
A África do Sul teve um presidente que evitou um banho de sangue, Nelson Mandela. Como um país desse se incendeia? Vejam como está o Oriente Médio porque, como na Síria ou na Líbia, houve uma transição de poder que não deu certo. Na África do Sul a situação foi controlada, de maneira democrática e progressiva. Muitos previam que quando os negros chegassem ao poder nos Estados Unidos seria uma desgraça. Os Estados Unidos viviam um regime muito pior que o brasileiro em matéria de discriminação racial, por exemplo, até 1950 a metade dos estados americanos não permitia casamento inter-racial. Há pouco tempo morreu uma senhora branca que estava com o marido no Alabama. O casal tinha se mudado para lá, mas a polícia prendeu os dois, porque o estado não permitia o casamento (o marido era negro). Eles tinham se casado em outro estado. No Brasil nunca existiu uma coisa tão boçal, pode-se dizer. No entanto eles avançaram muito depois disso. É por isso que vão continuar como grande potência, pois têm uma política generosa de imigração e formam uma sociedade aberta, com todos os equívocos existentes.
PAULO LUDMER – O grande sucesso da Alemanha na Comunidade Europeia se deveu a uma redução de salários há 10 ou 15 anos, com a anuência da sociedade. O senhor falou do crescimento de nosso salário mínimo. Aparentemente alguns economistas e vários teóricos consideram esse crescimento um dos fatores de perda da competitividade da economia brasileira e uma das causas da desindustrialização. Olhando para a frente, por que o Brasil não forma ideólogos, pensadores?
ZEVI GHIVELDER – A questão não é de não ter pensadores. Quando assumiu, o presidente Kennedy foi buscar alguns dos melhores acadêmicos dos Estados Unidos para comporem o governo dele. No Brasil existem excelentes acadêmicos que poderiam prestar um grande serviço ao governo, mas não são convocados.
LUIZ FELIPE – No tempo todo em que vivi na França percebi como Celso Furtado era uma pessoa respeitada lá, assim como Fernando Henrique, que independentemente do papel como presidente é um intelectual. Eles criaram um debate sobre regime autoritário que se iniciou no Cebrap [Centro Brasileiro de Análise e Planejamento], nem foi na universidade. Estavam lá José Arthur Giannotti, Elza Berquó, Fernando Henrique, Alessandro Octaviani, Ruth Cardoso, que desenvolveram o pensamento original que marcou a época. Josué de Castro, de quem hoje se fala pouco, foi fundamental na fundação da FAO [Food and Agriculture Organization], hoje dirigida por um brasileiro [José Graziano da Silva]. Gilberto Freyre foi tão importante que virou teórico do colonialismo português. Até hoje seu livro é traduzido no planeta inteiro, e foi escrito em 1933, no ano em que Hitler foi eleito, para dizer que a mestiçagem é uma vantagem.
Há outros pensadores, como Manuel Bonfim, que escreveu sobre a América Latina, Joaquim Nabuco, sobre o abolicionismo, que é o maior texto político sobre o Brasil. Mas a universidade hoje tem um pensamento muito fragmentado, a especialidade acadêmica desarticulou os debates. A USP não tem mais o peso de antes.
Houve massificação do ensino universitário, a maioria em universidade privada, sendo que de dez estudantes das particulares três têm o sistema de bolsa do FIES [Fundo de Financiamento Estudantil] ou do Prouni [Programa Universidade para Todos]. Mas acho que essas lideranças e esses pensadores vão surgir. Temos economistas muito bem preparados aqui.
JOÃO TOMAS DO AMARAL – O senhor falou que tivemos a participação de alguns brasileiros no governo português. Penso que não ocorreu o contrário, depois da Independência. A citação foi de José Bonifácio de Andrada e Silva, que foi estudar em Coimbra, ficou por lá e também atuou aqui. Em certos momentos há aproximação ou distanciamento entre Brasil e Portugal. Há, por exemplo, uma aproximação cultural, pois vêm de Portugal para cá vários professores e intelectuais.
Como o senhor vê essa aproximação e esse distanciamento, inclusive recente, entre os dois países?
LUIZ FELIPE – O que mudou radicalmente é que hoje Portugal é um pequeno país europeu. E só. Desde 1415, com a tomada de Celta, ele está virado para o ultramar. Aliás, o padre Antonio Vieira dizia: “Precisamos de colônias não para sermos ricos, mas para sermos livres”. As colônias serviam de barganha na aliança com a Inglaterra e para se proteger da Espanha. O receio português foi sempre o de ser engolido pela Espanha. Mas Madri era uma cidade pequena até 1950, menor que Lisboa. Agora isso mudou, pois Madri é uma grande metrópole, os dois países estão na União Europeia e na Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte]. Ambos se reprogramaram para se reposicionar como europeus.
Você estava falando de cultura, a Holanda é o maior desastre em matéria de cultura de ponta, ao se transformar em um país mínimo. Era a segunda potência planetária no século 17 e a mais avançada nas artes, ciências e política, com filósofos, pintores etc. Os ingleses mandavam seus filhos aprender a fazer comércio lá. Hoje é um “paiseco” e ninguém fala holandês no resto do mundo. Também existe esse tipo de paradoxo na história.
MANUEL HENRIQUE FARIAS RAMOS – O que me preocupa em grande parte é a formação das câmaras. Uma leitura de Alexis de Tocqueville chama a atenção porque dá uma ideia bem diferente da formação das câmaras nos municípios, por exemplo, nos Estados Unidos e no Brasil. Ele diz que o navio Mayflower levou famílias que depois formaram núcleos e, mais tarde, municípios, o que obviamente resultou em uma república federalista. Nossos primeiros patrícios vieram para explorar, não eram famílias. Não se criaram núcleos. Aí ficamos com câmaras elitistas, que não foram formadas de maneira democrática como nos Estados Unidos. Isso permanece até hoje.
Temos um Estado que formalmente garante o direito a todos, mas na realidade favorece a desigualdade social, um antagonismo. Como resolver isso? Não seria o caso de discutirmos uma reforma de Estado, colocando mais representação direta? Jean-Jacques Rousseau diz o seguinte: quando cedo meu direito a um representante, ele não me pertence mais. É o que se vê com os políticos que ficam quatro anos lá e não são satisfatórios. Diante disso, fico com muitas dúvidas quando alguém fala que nossas instituições são fortes.
O problema da escravidão não foi resolvido pelos ingleses por uma questão moral, mas econômica, quando pressionaram o Brasil também porque queriam nosso mercado.
LUIZ FELIPE – Quanto ao argumento econômico que combateu a escravatura, há um livro de Seymour Drescher, Econocide, em que o autor defende que não foi o fator econômico. Diz que o tráfico estava rendendo muito dinheiro, sim, que os comerciantes de Liverpool estavam ganhando muito, e que foi o movimento da opinião pública, das igrejas protestantes que mudou isso. Essa também é a diferença com relação a Portugal e Brasil, pois até o fim a Igreja Católica era proprietária de escravos e o papa nunca condenou a escravidão. Aliás, condenou em outubro de 1888, quando ela já tinha acabado havia cinco meses. Na Inglaterra e nos Estados Unidos existia um polo antiescravista dos quakers, que nunca aceitaram isso, o que foi um fator decisivo para o abolicionismo.
Em relação à questão das câmaras municipais, eu não disse que havia uma tradição democrática, mas uma tradição parlamentar. Quando se tem uma câmara elitista, quer dizer o quê? Que é porta-voz da região, mesmo sendo elitista, e não pode ser oprimida por um governo central. Tanto que somos o único país da América Latina que não tem a figura do ditador na literatura. Em toda parte no entorno do país há romances sobre ditadores. Isso até a Segunda Guerra Mundial, como no caso do romance fundador da Argentina, escrito por Domingo Faustino Sarmiento, Facundo, que é sobre o caudilhismo, como também El Otoño del Patriarca, de Gabriel García Márquez. Em toda a América Central e no México também não há essa figura.
Quanto à representação política, uma democracia mais direta, isso é difícil em um país continental, é bom para a Suíça. Rousseau estava pensando na Suíça, ele morava lá. Ele referia-se a um país em que cada aldeia tinha sua própria fábrica com parentes que faziam relógios, vindo daí também as ideias do socialismo utópico, de se poder organizar o trabalho. Em um país continental isso é muito complicado.