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Charme na serra
Por: JOSÉ PAULO BORGES
Maria Aparecida de Oliveira, 47 anos, mineira de Piranguçu, a 458 quilômetros de Belo Horizonte, reside na paulista Campos do Jordão há 19 anos, mas nunca foi a um concerto no auditório Claudio Santoro, palco principal do maior acontecimento de música clássica da América Latina: o Festival de Inverno de Campos do Jordão. Este ano, durante o evento realizado nos meses de julho e agosto, Maria Aparecida aproveitou a ocasião para improvisar uma banca em uma esquina do badalado point turístico de Vila Capivari, onde vendeu pinhões – sementes de araucária, árvore típica da região – aos preços de R$ 3 e R$ 5 o pacote. “Deu para tirar um bom dinheiro”, ela festeja. Já o historiador e advogado Edmundo Ferreira da Rocha, 71 anos, pode muito bem ser chamado o “guardião” da memória do município. Em sua casa, na Vila Abernéssia, ele preserva no computador um acervo com centenas de histórias e mais de 45 mil fotos antigas da cidade. Ultimamente, Rocha tem estado às voltas com o livro que pretende publicar nos próximos meses. “Vai dar para contar apenas uma parte da memória de Campos”, antecipa. O que têm em comum os brasileiros Maria Aparecida e Rocha? Eles são personagens atuantes daquela agitada estância turística do estado de São Paulo, encravada na Serra da Mantiqueira, a uma altitude de 1.628 metros do nível do mar. Segundo estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Campos do Jordão, a cerca de 170 quilômetros de São Paulo, contava, em 2014, com 50.541 habitantes, população que mantém o lugar como um apêndice da Europa na terra dos bandeirantes.
Para milhares de turistas, principalmente de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, Campos do Jordão é sinônimo de inverno, montanha e ar puro. De acordo com pesquisa da rede Hotel Urbano, no primeiro semestre de 2015 o interesse de visitantes por Campos do Jordão aumentou 150% em relação ao mesmo período do ano anterior. Isso foi motivado, principalmente, segundo o operador turístico, pela escalada do dólar. “O cenário cambial é favorável ao turismo doméstico”, avalia Antônio Gomes, diretor comercial da rede hoteleira. Segundo ele, no primeiro semestre deste ano, Campos do Jordão foi o sexto principal destino interno de turistas brasileiros, atrás de Natal (RN), Gramado (RS), Porto Seguro (BA), Maceió (AL) e Balneário Camboriú (SC).
Basta a temperatura despencar, para os visitantes lotarem as estradas e congestionarem as ruas da cidade. Na alta temporada de inverno, por volta de 1,2 milhão de pessoas de outros lugares aportam em Campos do Jordão, a maior parte atraídos pelos acordes de dezenas de récitas e concertos de música clássica executados por artistas de renome internacional que se exercitam, lado a lado, com novatos talentosos revelados durante o festival. A cada final de semana do 46º Festival de Inverno de Campos do Jordão, por exemplo, que aconteceu entre os dias 4 de julho a 2 de agosto, 200 mil pessoas, segundo estimativas oficiais, afluíram à cidade.
Mesmo diante de um cenário de agruras econômicas, que obrigou a um enxugamento do orçamento de 2015 em cerca de 30% (de R$ 6,5 milhões para R$ 4,4 milhões), a programação do festival não foi prejudicada, garantem os organizadores. O corte afetou as atividades dos músicos bolsistas, que passaram três semanas estudando na capital e, pela primeira vez, em 46 anos, não estagiaram na cidade serrana durante a temporada, mas nem por isso deixaram de se apresentar. A última foi no auditório Claudio Santoro, durante o encerramento do evento. “O festival vai continuar sendo a principal vitrine de Campos do Jordão”, acredita o prefeito Frederico Guidoni Scaranello.
Pintores renomados
Os primeiros acordes do festival foram executados no interior do Palácio Boa Vista, uma sólida construção em estilo Maria Tudor, com 105 cômodos, concebido para ser sede do governo do estado de São Paulo durante o verão. As instalações abrigam obras de alguns dos mais celebrados nomes da pintura brasileira, como Aldo Bonadei, Francisco Rebolo, Clóvis Graciano, Walter Zanini, Fulvio Pennacchi e José Pancetti, bem como a maior coleção que se tem conhecimento no país de trabalhos de Tarsila do Amaral, além de antiguidades e mobiliários dos séculos 17 e 18. O palácio levou 26 anos para ficar pronto.
No final da década de 1960, o então governador Abreu Sodré resolveu abrir as portas do local ao público. A responsabilidade da tarefa foi entregue ao secretário de Estado da Cultura, Luís Arrobas Martins, que idealizou juntamente com os maestros Camargo Guarnieri e João de Souza Lima, um evento batizado de “Concertos de Inverno de Campos de Jordão”. Desde o início, a intenção era que o município abrigasse um evento artístico e cultural no mesmo nível dos melhores do mundo. A abertura aconteceu na noite de 24 de julho de 1970, com um recital da pianista Magda Tagliaferro. Em 1978, surgiu a denominação Festival de Inverno de Campos do Jordão. No dia 12 de julho de 1979, numa área cercada de muito verde, foi inaugurado o auditório Claudio Santoro, que a partir de então se tornou a sede oficial do festejado evento. Em 2012, por determinação da Secretaria da Cultura do Estado, a organização do festival passou a ser responsabilidade da Fundação Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Fundação Osesp).
O auditório homenageia o maestro, violinista e compositor amazonense Claudio Santoro (1919-1989), reconhecido internacionalmente, fundador e primeiro regente titular da Orquestra Sinfônica de Brasília, e autor de 14 sinfonias. Localizado no interior de uma área de 24 alqueires de mata nativa, o auditório tem capacidade para 814 pessoas na plateia e 48 nos camarotes. O palco, os camarins e a acústica apresentam todos os requisitos de uma sala de espetáculos de padrão internacional. O projeto do auditório foi elaborado pelo arquiteto Giancarlo Gasperini com a colaboração de Orfeu Zamboni, e a acústica traz a assinatura do também arquiteto Igor Srenevzky. Embora tenha sido concebido como local de concertos, pode receber, além do festival, espetáculos de dança, teatro, shows, congressos e seminários.
O auditório que enche de orgulho os jordanenses compartilha espaço, no alto da serra, com o Museu Felícia Leirner. Aberto ao público em 1979, ali estão expostas mais de 80 obras de diferentes fases da escultora de origem polonesa que lhe empresta o nome (nascida em 1904, em Varsóvia, ela adotou o Brasil como pátria em 1927). Trata-se de um dos raros museus ao ar livre no mundo inteiro com obras de um único autor. Felícia estudou com Victor Brecheret, participou de bienais e foi aclamada como um dos ícones da escultura brasileira contemporânea. As obras foram espalhadas por bosques, alamedas e jardins do museu pela própria artista. Ela morou em Campos do Jordão por vinte anos. Sobre sua arte, ela declarou um dia: “Arrumo, desarrumo, corto, emendo, arranjo, furo papel, pano, tudo que estiver ao meu alcance; arrumando, desarrumando, modificando. E daí, o que valeu? Valeu o que senti e modifiquei”. Felícia morreu em 1996, aos 92 anos de idade.
Nem só de sons eruditos e atividades culturais vive Campos do Jordão. Muita gente desembarca lá em busca do sossego, utilizando as mais de 200 pousadas e hotéis, alguns simples e despojados – escondidos na mata –, outros de alto luxo e quilate, que tornam a cidade bonita e hospitaleira. Passear de trenzinho ou de teleférico, e se deliciar com aproximadamente 300 tipos de chocolates de incontáveis formas e sabores são programas inevitáveis. Para os amantes da natureza, uma visita ao Pico do Imbiri não tem preço. Do alto de seus 1.862 metros, a montanha descortina ao visitante um cenário de prender a respiração. Quem pode dar-se a esses luxos, encerra o dia com um jantar à luz de velas, à beira da lareira, acompanhado de vinhos das mais finas cepas.
Cerejeira em flor
Nada chama tanto a atenção na paisagem de Campos do Jordão quanto a araucária, com seus 50 metros de altura e uma copa, imensa, que se abre em forma de taça. Além do porte imponente, outro atrativo da espécie é sua semente, o pinhão, que amadurece na chegada do outono e anuncia os dias claros e secos do inverno na Serra da Mantiqueira. Nascido de árvores fêmeas, essa parte comestível da imponente planta é ingrediente importante da cultura e da gastronomia locais. É comum no período de abril a junho, quando as sementes se soltam das pinhas maduras e se espalham pelo chão, famílias se reunirem para, como os jordanenses dizem, “catar pinhão”. A atividade consiste em ir até as regiões com grande número de pinheiros e retornar com sacos cheios de sementes, que mais tarde serão consumidas entre parentes e amigos. Para muitas famílias, o pinhão é sinônimo de renda. É comum ver vendedores da semente, como Maria Aparecida de Oliveira, circulando pelas ruas centrais da cidade.
Até mesmo um evento foi criado para celebrar a curiosa opção gastronômica. “A Festa do Pinhão, realizada anualmente, conta com apresentações culturais e muitas delícias feitas com a semente, como bolos, tortas, cozidos e assados que são oferecidos aos visitantes”, conta o historiador Edmundo Ferreira da Rocha. Com o sabor protegido por uma espessa casca, o pinhão tanto pode ser consumido como aperitivo, após ser cozido em panela de pressão, quanto em pratos acompanhado com carnes e legumes. Muitos usam as próprias folhagens do pinheiro para assar e deixar o pinhão no ponto exato para consumo.
Campos do Jordão ainda oferece, por volta dos meses de agosto e setembro, outro espetáculo, este inesquecível: nessa época do ano, a cidade se veste com o colorido de milhares de flores de cerejeiras. E isso é mais um motivo para outra celebração anual: a Festa da Cerejeira em Flor. As primeiras mudas da árvore vieram do Japão e foram plantadas em 1936. Flor símbolo daquele país, a cerejeira (sakura) logo se aclimatou e passou a apresentar belas florações. Porém, a maioria dos pés originais foi arrancada durante a Segunda Guerra Mundial, quando Brasil e Japão estiveram em lados opostos do conflito. Em 1967, o Palácio Boa Vista ganhou um jardim com 500 mudas de cerejeiras da variedade Some Yoshino, vindas da nação do sol nascente. A adaptação foi tanta, que na época da floração japoneses e descendentes de diversas regiões passaram a vir a Campos para presenciar o espetáculo das sakuras, muito parecido com o que acontece em sua terra de origem. Com o crescente número de turistas, surgiu a ideia de promover um evento que ressaltasse a beleza e a importância da planta para a colônia japonesa no Brasil. Assim, em 5 de outubro de 1968, o prefeito em exercício, Arakaki Masakasu, sancionou uma lei municipal instituindo a Festa da Cerejeira em Flor. A partir de 1976, ela passou a ser realizada no bosque São Francisco Xavier, num local conhecido como Parque das Cerejeiras, onde é grande a quantidade dessa árvore. A festa atrai milhares de pessoas, boa parte da colônia japonesa.
“Ambiente ornado de opulenta vegetação, abençoado pela fertilidade do solo e salubridade das águas, nas altitudes de um clima incomparável.” A frase é atribuída ao bandeirante Gaspar Vaz da Cunha – o “Oyaguara” (lobo bravo), como era chamado pelos índios –, e teria sido proferida por volta de 1720 depois que ele avistou as matas virgens da Serra da Mantiqueira. Anos mais tarde, aquela charmosa montanha verde atraiu Ignácio Caetano Vieira de Carvalho, que se instalou num local conhecido como “campos lindos”, fundando a Fazenda Bom Sucesso. Logo em seguida, Vieira de Carvalho requereu ao governador da capitania de São Paulo uma sesmaria de 269 quilômetros quadrados. Depois de sua morte, os herdeiros venderam a sesmaria para o brigadeiro Manoel Rodrigues do Jordão. Homem ligado ao poder, amigo de dom Pedro I, Jordão fazia parte da lista dos dez maiores proprietários de terras da então Província de São Paulo. O brigadeiro mudou o nome da nova propriedade para Fazenda Natal, mas não teve jeito: todo mundo chamava o lugar de “os campos do Jordão”. Isso foi em 1825, e Jordão morreu dois anos depois. Suas terras eram tantas, que o brigadeiro nem chegou a pisar na fazenda que adquirira, e onde hoje está instalada a cidade que homenageia seu nome.
“Fracos do peito”
Nos primeiros anos do século 20, o ar puro e o clima de montanha da pequena Campos do Jordão chamava a atenção das pessoas. Mas elas não iam fazer turismo. O que essa gente tinha em comum era a contaminação pelo bacilo de Koch, agente causador da “peste branca”, a temível tuberculose. No final da década de 1920 eram tantos os doentes que o lugar cultivava a fama de principal refúgio nacional dos “fracos do peito”. O médico Emílio Ribas foi decisivo para a consolidação de Campos do Jordão como lugar de cura. Após uma viagem à Europa, em 1908, para estudar a profilaxia da doença, ele recomendou a instalação no município de um sanatório especializado não apenas por causa do clima, mas para afastar os enfermos dos grandes centros urbanos e, assim, reduzir a propagação da doença. Na década de 1940 havia ali 14 sanatórios e dezenas de pensões exclusivas para doentes. Os mais pobres amontoavam-se em hospitais precários, enquanto os abonados desfrutavam do conforto de pensões elegantes. Naquele período, o número de vagas hospitalares para tuberculosos oferecidas em Campos do Jordão equivalia a quase a metade das disponíveis em todo o estado de São Paulo. Em 1927, perto de 30% da população de 5 mil habitantes era formada por convalescentes e acompanhantes.
A lista de personalidades ilustres que buscaram cura em Campos do Jordão é imensa. Alguns escritores chegaram a usar a doença como tema de seus enredos. Paulo Dantas (1922-2007) narrou sua saga em Cidade Enferma, e, 1950, Paulo Setúbal (1893-1937) contou sua dor em Confiteor (1937), livro de memórias inacabado. O romance Floradas na Serra, da escritora paulista Dinah Silveira de Queiroz (1911-1982), lançado em 1939 e que depois virou filme e história de telenovela, tem como pano de fundo a tuberculose. Para acompanhar de perto o tratamento de dois filhos enfermos, que acabaram morrendo, Monteiro Lobato morou em Campos do Jordão. O lugar encantava o autor de O Sítio do Picapau Amarelo. “Assim como o universo é um bailado de estrelas no espaço, Campos do Jordão é um paraíso pousado na terra dos homens. Em Campos do Jordão me restauro. Rompido o meu cinquentenário, percebo, mesmo com a altitude, que durmo bem, respiro bem. Começo a ficar inspirado, e isso é bom para começar o meu novo livro”, escreveu Lobato. Em 1935, um dos internos teve a ideia de encenar uma pequena peça teatral para distrair os pacientes. No dia da apresentação as gargalhadas provocaram acessos tão violentos de tosse, que a brincadeira teve de ser encerrada. O autor da bagunça? O jornalista e futuro autor teatral, então com 23 anos, Nelson Rodrigues.
A fama de Campos do Jordão como lugar de tratamento da tuberculose provocava temor de contágio entre as pessoas que buscavam apenas lazer. Foi então que, em 1940, um decreto dividiu a cidade em duas áreas assepticamente distintas: as vilas Jaguaribe e Capivari foram reservadas ao turismo, e a vila Abernéssia ao tratamento do mal. Na zona turística, os hotéis exigiam atestado de saúde e até ofereciam aparelhos de raios X aos hóspedes. A partir dos anos 1950, com os avanços da medicina e a descoberta de medicamentos mais eficazes contra a doença, o fantasma da tuberculose cessou de assombrar e os hospitais aos poucos foram ficando vazios, e o trenzinho, que antes trazia os doentes, passou a transportar alegres caravanas de turistas.
As pesquisadoras Celia Svevo e Sandra Nedopetalski, autoras de um livro que conta a história do Hotel Toriba, um dos mais tradicionais da cidade, resumem assim a travessia de Campos do Jordão de cidade de cura a estância turística: “Pessoas ilustres e famosas começaram a procurar casas de veraneio na região. O comércio se sofisticou, aumentou e muito a variedade e a oferta de produtos. No centro comercial, lojas com as mais famosas grifes do país passaram a disputar espaços com a tradicional malharia, queijos, doces e chocolates fabricados na região. Novos hotéis, centros de lazer, restaurantes e danceterias foram inaugurados”. Um paraíso na serra, e de fácil acesso.