Postado em
Do sucesso à decadência
Por: HERBERT CARVALHO
Entre 1937 e 1945, durante o Estado Novo, a mídia controlada pelo todo-poderoso Departamento de Imprensa e Propaganda (o famigerado DIP) incensava dia e noite o ditador Getúlio Vargas. Este, porém, caso interrogasse o espelho mágico com a pergunta “Existe neste país alguém mais popular do que eu?”, amargaria uma resposta óbvia até para as paredes do Palácio do Catete, então sede do governo central, no Rio de Janeiro. Naqueles anos sombrios da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), apenas um nome se tornaria unanimidade nacional: Orlando Silva, o Cantor das Multidões, assim batizado pelo locutor Oduvaldo Cozzi quando, em 1937, o centro da cidade de São Paulo convertera-se num mar de gente para ver e ouvir aquele jovem carioca suburbano, mulato e aleijado que se convertera, graças às ondas do rádio, no primeiro ídolo de massas da música popular mundial de que se tem notícia.
O fenômeno, que provocava desmaios e exigia força policial para conter as fãs mais exaltadas, continha todos os ingredientes só reproduzidos décadas mais tarde, quando o cinema e a televisão projetaram ídolos como Elvis Presley, Frank Sinatra, Roberto Carlos e The Beatles. Roupas rasgadas, botões arrancados, ternos manchados de batom e mocinhas escondidas à sua espera, até nos guarda-roupas dos quartos de hotéis eram cenas tão comuns como o cerco a teatros e auditórios onde se apresentava. A solução do show a céu aberto, tantas vezes adotada, implicava na colocação de alto-falantes e em levar o cantor até às sacadas, para acalmar o ímpeto de quem não conseguia ingressos. O assédio incluía propostas de casamento ou mesmo de sexo puro e simples – espantosas num tempo em que a virgindade da mulher era tabu.
Esta estrela fulgurante, entretanto, brilhou apenas durante pouco mais de oito anos, para então fenecer não por causa de sua morte – que só ocorreria em 1978, aos 62 anos –, mas porque a voz cristalina e inigualável, capaz de transitar do grave ao agudo com inacreditável facilidade e completa limpeza, tornou-se um “pigarrão” (na definição de um radialista contemporâneo), em consequência do abuso de drogas injetáveis e do alcoolismo, entre outras causas nefastas. Foi um período suficiente, porém, para deixar gravadas 180 canções que plasmariam o modo brasileiro de cantar e influenciariam a geração de João Gilberto, Paulinho da Viola e Caetano Veloso, todos admiradores confessos daquele que foi, em sua época, o mais perfeito cantor popular do Brasil, e um dos mais perfeitos do planeta, de acordo com o escritor e biógrafo Ruy Castro.
Orlando Garcia da Silva nasceu no bairro do Engenho de Dentro, na zona norte carioca, em outubro de 1915, dois meses antes do cantor estadunidense Frank Sinatra. A trajetória de ambos gera comparações e guarda pontos em comum, embora o jornalista Jorge Aguiar, um dos biógrafos do brasileiro (Nada Além – A Vida de Orlando Silva, Editora Globo, 1995), assinale que “The Voice” (“A Voz”, como era chamado o gringo) foi um fenômeno produzido com “desmaios pagos à razão de US$ 10 cada um”.
Descendente de avó espanhola e avô português por parte da mãe Balbina Garcia, o menino que cantava para a vizinhança em cima das árvores chegou ao mundo numa roda de choro: o pai, José Celestino da Silva, era professor de violão, além de operário das oficinas da Estrada de Ferro Central do Brasil. Antes de morrer prematuramente, vítima da gripe espanhola (Orlando tinha apenas três anos), recebia em casa Alfredo da Rocha Vianna, o Pixinguinha, e demais chorões que, em 1919, formariam o lendário conjunto Os Oito Batutas.
Caprichos do destino
Cedo, quando ainda mal aprendera a ler, escrever e contar, precisou largar os estudos para ajudar a mãe, lavadeira e duas vezes viúva, primeiro com três filhos, depois com mais quatro, do segundo casamento. Aos 12 anos entregava telegramas como estafeta da Western, seu primeiro emprego. Foi aprendiz de ceramista e sapateiro até se tornar entregador de encomendas da Casa Reunier. Trabalhava nessa loja da elegante Rua do Ouvidor quando, na manhã de 29 de agosto de 1932, desequilibrou-se ao tomar o bonde. “Chuviscava e eu estava de sapato novo, escorregadio”, justificou-se, décadas depois, em depoimento ao Museu da Imagem e do Som (MIS). Resultado: quatro dedos do pé esquerdo amputados e quatro meses de dores lancinantes, aliviadas apenas pela morfina. Os biógrafos coincidem, porém, que não foi ali o início de seu drama como viciado nesse narcótico, e sim mais tarde, já no auge da fama.
Isolado e traumatizado, de cama ou de muletas durante mais de um ano, tinha no rádio de cabeceira seu consolo e contato com o mundo. Ouvia e decorava os sucessos de Francisco Alves, o Rei da Voz, e de Sílvio Caldas, o Caboclinho Querido. Seu estilo seria, segundo sua própria definição, uma síntese do modo de cantar do primeiro – apoiado exclusivamente num vozeirão poderoso – com a escola baseada menos na voz e mais na interpretação, difundida pelo segundo. Quando, finalmente, pôde calçar uma alpercata e sair à rua, juntou-se ao irmão mais velho, que já trabalhava como cobrador de ônibus, função em que permaneceria o tempo todo sentado. “O que aconteceu depois tem um delicioso sabor de belle époque tropical: o jovem trocador da linha Méier-Praça Mauá cantando nos pontos finais do trajeto e sendo estimulado pelos passageiros a tentar a sorte no rádio”, relata Ruy Castro em perfil biográfico apropriadamente intitulado Caprichos do Destino, por sinal uma das canções de sucesso de Orlando Silva.
O Brasil da década de 1930 ainda era predominantemente rural, mas se urbanizava rapidamente, desenvolvendo um mercado cultural de massas a partir da chegada ao país da gravação eletromagnética dos discos e do cinema falado. Quando o governo provisório de Getúlio Vargas autorizou a veiculação de propaganda pelo rádio, o número de emissoras explodiu, consagrando cantores, compositores e músicos, responsáveis pela maior parte das programações. Um bem sucedido cantor do rádio obtinha bons rendimentos, trajava ternos vistosos e desfilava em carrões acessíveis apenas às elites mais abastadas. Penetrar nesse mundo, porém, não era fácil, ainda mais para um adolescente tímido, mirrado, coxo e de cabelo em escadinha, que já estava à beira da desistência, após algumas tentativas frustradas, quando, mais uma vez, o inesperado cruzou o seu caminho.
Ao ouvi-lo ensaiar, por acaso, nos corredores da rádio Cajuti, o compositor Bororó (Alberto de Castro Simões da Silva, autor de obras-primas como Curare e Da Cor do Pecado) arrastou-o imediatamente para o célebre Café Nice – espécie de escritório central da música popular brasileira em sua época de ouro, entre 1929 e 1945 – para apresentá-lo a Francisco Alves. Em busca de privacidade, foram para o automóvel Pontiac preto e grená do veterano, que lhe pediu para cantar músicas do repertório de Sílvio Caldas. Duas semanas depois, Orlando Silva estreava profissionalmente diante de um microfone no programa radiofônico do Rei da Voz. Fez jus a um cachê de 50 mil réis, equivalente a quase todo seu salário mensal como cobrador.
“Aos que sempre se perguntaram por que Chico Alves teria prestigiado um cantor que poderia ameaçá-lo, a resposta é a de que, além de sua conhecida generosidade para com os colegas, ele não temia ser desbancado do trono. Mas, por via das dúvidas, não custava lançar um cantor para enfrentar Sílvio Caldas, que já corria em segundo”, analisa Ruy Castro. Em matéria de popularidade, porém, em breve ambos seriam superados pelo novato. Levado também por Chico Alves à RCA Victor, foi no selo multinacional identificado pela figura do cachorrinho junto ao gramofone que Orlando Silva registrou, originalmente em discos de 78 rpm, entre 1934 e 1942, pérolas como Carinhoso, hino romântico do nosso cancioneiro que, posteriormente, teria mais de 200 gravações.
Lábios que beijei
A escolha criteriosa de canções, aliás, foi outra característica de sua personalidade artística. Quando, em 1935, teve oportunidade de iniciar para valer sua carreira discográfica, após participar em coros e gravar a marcha carnavalesca promocional Chope da Brahma (de Ary Barroso e Bastos Tigre), procurou a viúva do compositor Cândido das Neves, recém-falecido vítima de tuberculose galopante, aos 35 anos. Conhecido como Índio, Cândido das Neves destacava-se pelas letras rebuscadas de suas músicas, até então gravadas, principalmente, por Vicente Celestino, a Voz Orgulho do Brasil.
Logo chegava às lojas o disco com a valsa Lágrimas e a canção A Última Estrofe, de versos apaixonados característicos do parnasianismo exacerbado do autor (“Lua, vinha perto a madrugada/quando em ânsias minha amada/nos meus braços desmaiou...”). Também de Índio gravou, em seguida, Apoteose do Amor, que fala em “seios alabastrinos”. Ainda de 1935 são as gravações de dois sambas clássicos, Chora, Cavaquinho, de Valdemar de Abreu, o Dunga, e Pela Primeira Vez, de Noel Rosa.
Orlando Silva continuava, entretanto, um ilustre desconhecido fora do Rio de Janeiro, quando dois fatores se conjugaram para projetá-lo nacionalmente. Primeiro, o lançamento, em setembro de 1936, da poderosa Rádio Nacional, do qual ele participara e se tornara, aos 21 anos, um dos primeiros contratados do elenco da emissora cujas ondas chegavam ao país inteiro – e também ao exterior. Depois, o estrondoso sucesso da valsa Lábios que Beijei, de J. Cascata e Leonel Azevedo, incialmente apresentada ao vivo pela rádio e depois gravada com o samba Juramento Falso, dos mesmos autores, no lado B. O disco bateu todos os recordes e introduziu a figura até então inédita do atacadista discográfico, que arrematava quantidades enormes de discos para revendê-los às pequenas lojas de todo o território nacional. Vendeu 30 mil cópias numa época em que um 78 rpm brasileiro de sucesso raramente passava de mil.
Lábios que Beijei teve acompanhamento de cordas, introduzido pelo maestro arranjador Radamés Gnattali. Este tipo de orquestração, com o qual Frank Sinatra só contaria a partir de 1941, tornou-se marca registrada do repertório romântico brasileiro, revelando a qualidade dos músicos que cercaram o cantor nessa fase da carreira: nas gravações da Victor, além de Gnattali, ele teve o acompanhamento de Pereira Filho e Luiz Bittencourt (violões), Lupércio Miranda (bandolim), do Grupo do Canhoto e dos Diabos do Céu, big band montada e dirigida por Pixinguinha.
O autor do choro Carinhoso e da valsa Rosa ficaria para sempre vinculado a Orlando Silva a partir de 1937, quando as duas obras-primas foram gravadas no mesmo disco, o que jamais teria ocorrido se a gravadora tivesse intuído a trajetória dessas canções: lançar dois sucessos simultâneos significava a metade do lucro que cada um teria dado em disco próprio, com algum lado B de menor expressão. Composições instrumentais de Pixinguinha datadas de 1917, apenas vinte anos depois receberam letra, de João de Barro, o Braguinha, para Carinhoso, e de Otávio de Souza, um mecânico carioca que morreu jovem, para Rosa.
Líder absoluto de todas as listas até hoje elaboradas das dez melhores músicas brasileiras de todos os tempos, Carinhoso foi adotada por Orlando Silva como prefixo de suas apresentações. “Valsa de breque” na definição de Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello (A Canção no Tempo, Editora 34, 1997), Rosa é um desafio para o intérprete porque “as pausas naturais são preenchidas por segmentos que restringem o espaço para o cantor tomar fôlego”. Segundo esses pesquisadores, o melhor resultado de regravação da valsa, após o registro do Cantor das Multidões teria sido o obtido por Marisa Monte, em 1990.
Quando a venda do disco com Carinhoso e Rosa superou os recordes de Lábios que Beijei, as multidões se avolumaram na perseguição do dono da voz que desbancara todas as outras no pódio do gosto popular. Uma única apresentação no Teatro Municipal de Campinas lhe rendeu 10 contos de réis, valor tão escandalosamente alto para a época, que foi parar nas manchetes dos jornais e não seria igualado por qualquer artista brasileiro nas décadas seguintes.
Os êxitos se sobrepunham uns aos outros na meteórica ascensão de Orlando Silva. Se no início procurava os compositores, passou a ser assediado por eles. Ainda em 1937 foi convidado por Custódio Mesquita e Mário Lago para assistir à uma revista no Teatro Recreio, que tinha números musicais de autoria de ambos. Ao ouvir o fox Nada Além e a valsa Enquanto Houver Saudade, entoadas pomposamente no espetáculo pelo tenor Armando Nascimento, ele teria dito, de acordo com o biógrafo Jonas Vieira (Orlando Silva, O Cantor das Multidões, 1a edição, Funarte, 1985): “Essas músicas não se cantam assim. Falta sentimento”. Maior sucesso do cantor em São Paulo, onde bateu as marcas anteriores de venda, a gravação de Nada Além traz uma vocalização inédita, a bocca chiusa, na qual o canto é sussurrado na forma de murmúrios onomatopaicos. No outro lado, na valsa Enquanto Houver Saudade, ele declama parte da letra, além de cantá-la.
O declínio
Não só de romantismo, mas também de plena alegria carnavalesca é composto o legado do cantor que, quando exibiu seus dotes vocais perante o tenor italiano Tito Schipa, ouviu o conselho: “Não estude canto, para não perder essa beleza, toda essa naturalidade que você tem”. Em matéria de folia, no carnaval de 1938, ele abafou com o samba Abre a Janela (Arlindo Marques Júnior e Roberto Roberti). Mas nada nem ninguém superou, até hoje, a marcha A Jardineira (de Benedito Lacerda e Humberto Porto), lançada no ano seguinte e, desde então, entronizada como símbolo absoluto do carnaval brasileiro.
Cortejado por três presidentes da República no período pré-64, Orlando tinha que cantar a preferida de cada um, quando o avistavam. Getúlio Vargas lhe pedia “aquela da camélia que caiu do galho”. Juscelino Kubitschek, seresteiro de Diamantina, preferia Sertaneja (canção de René Bittencourt), enquanto Jango Goulart gostava de Número Um (valsa de Benedito Lacerda e Mário Lago).
No auge, ao entrar na década de 1940 com um giro pelas capitais do nordeste, onde se reproduziu a mesma histeria coletiva que causara em Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo, começou a enfrentar os primeiros sinais do declínio. Primeiro, houve o problema com os dentes, acerca do qual biógrafos divergem. Seja por razões estéticas, para melhorar a aparência, ou por causa de uma infecção das fibras que ligam os dentes ao osso – mais conhecida como piorreia –, o fato é que extraiu todos os dentes naturais e passou a usar dentaduras, o que não poderia deixar de ter consequências para sua emissão vocal requintada.
Depois, o uso de morfina. Para se livrar das dores de dentes terríveis, de acordo com uma versão, ou porque teria se viciado por influência de grã-finos paulistas, segundo outra, os relatos coincidem em que se injetava em reservados de emissoras e restaurantes, até mesmo por cima da calça. Na falta da droga, ficava prostrado durante dias, em síndrome de abstinência. Tentou substituir a morfina por álcool, mas só adquiriu mais um vício, sem se livrar do outro. É nesse cenário, agravado pelo fim da relação mantida por dois anos com a rádio-atriz Zezé Fonseca – mulher culta, de grande beleza e sensualidade – que Orlando Silva chega ao rompimento de seu contrato com a RCA Victor, em 1942. Quando reaparece na gravadora Odeon, algum tempo depois, sua voz já não é a mesma. E segue piorando até que, em 1945, a Rádio Nacional rescinde seu contrato.
Dos píncaros da glória, em três anos estava no fundo do poço. E o que acontece depois, pode ser resumido em tópicos. Em 1947 casou-se com Maria de Lourdes, jovem de classe média que o acompanharia até o fim de seus dias. Conseguiu abandonar a morfina, mas não o alcoolismo. Transformado em caricatura de si mesmo, regrava na década de 1960 seus sucessos, para o constrangimento e repúdio dos “orlandófilos”, que se aferram às gravações originais, para repetir até hoje, em pleno século 21, o que os argentinos dizem de Carlos Gardel: “A cada dia canta melhor”. Em 8 de agosto de 1978 os jornais do país noticiam sua morte, ocorrida na véspera. São unânimes em consagrá-lo como o maior cantor brasileiro de todos os tempos.