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Caruaru, o maior bazar do nordeste

Foto: José Paulo Borges
Foto: José Paulo Borges

Por: JOSÉ PAULO BORGES

Quem tem olhos atentos certamente conseguirá vislumbrar personagens de um passado já meio distante. Como Mestre Vitalino, vendendo a um preço bem baratinho suas “loiças de brincadeira” (boizinhos, cavalos e galinhas, por exemplo, que alegravam as brincadeiras das crianças) e os bonecos tirados por ele do barro, retratando o cotidiano do povo sertanejo – a procissão, a casa de farinha, a banda de pífanos. Perto dali outra cena amarelecida pelos anos. É “seu” Biu, o raizeiro, dando orientações sobre o uso de medicamentos caseiros extraídos de ervas. Formado em direito e história, nunca atuou profissionalmente nessas duas áreas, preferindo dedicar a vida às plantas medicinais e estudar tudo sobre elas. Autodidata, Biu acabou se tornando um respeitado e requisitado “doutor” em medicina popular.

Do baú do tempo emerge também a legendária figura das boleiras. “Siá” Claudina, Maria de Artur Quintão, Maria Leandro, Ana Preta e dona Maria Mata Escura são as mais famosas, mas havia outras mais. Elas começavam a preparar seus bolos de mandioca e de milho, as broas e os suspiros, na quinta-feira, em casa, para vender aos sábados.

Por sua vez, o escritor José Condé descreve: “Mal se pode andar nesta rua atravancada de gente, cavalos, balaios, toldos, barracas, monte de mercadorias. Das portas das lojas as peças de chita de todas as cores são bandeiras em dias de festa”. Os bonecos de Vitalino, as ervas de Biu, os bolos de Claudina, a festa de Condé. Retratos em preto e branco da maior feira ao ar livre do mundo, em Caruaru, a 130 quilômetros de Recife.

Hoje, a Feira de Caruaru, como é conhecida, se esparrama pelo Parque 18 de Maio, num emaranhado de 150 hectares próximo ao centro da cidade, uma imensidão que tem feito muitos nativos afirmarem que é a maior do mundo no gênero. Dia e noite, centenas de barracas e milhares de pessoas dão vida e colorido àquele comércio de rua, que já conta mais de 200 anos de história.

É quase impossível não se perder nesse labirinto de becos e ruelas estreitas. No ar, cheiro de couro cru e curtido, odor do sangue de animais abatidos, aroma da cozinha nordestina e o perfume de uma variedade quase sem fim de flores. Por toda parte, o som dos alto-falantes operados pela Rádio Parque 18 de Maio – emissora com transmissores instalados no próprio local –, que a toda hora orienta compradores, feirantes e turistas sobre serviços como policiamento e atendimento médico de urgência, ou chama a atenção para produtos que são vendidos ali. Frutas, verduras, ovos, cereais, ervas medicinais e diversos tipos de carnes. Panelas, móveis, instrumentos musicais, ferragens, brinquedos, redes, chapéus e o que se possa imaginar do vasto ramo de miudezas e quinquilharias em geral.

Na Feira de Caruaru há sandálias, calçados, jeans, bolsas e roupas com cortes e modelos em perfeita sintonia com o último grito ecoado do Rio de Janeiro e de São Paulo pelo chamado mundo fashion. Há também beiju fresquinho, bode assado, queijo coalho e manteiga de garrafa. Bolos, bolachas e biscoitos tradicionais, como o mata-fome e o tareco, hoje quase inexistentes nas prateleiras das padarias do Recife. Sem falar nos celulares, CDs, notebooks, tablets e o que se possa imaginar de bugigangas eletroeletrônicas made in China ou trazidas do Paraguai. E tudo negociado à base da pechincha: “Bote o preço” é a senha dos feirantes.

Em verdade, a Feira de Caruaru não é apenas uma, mas várias – cada uma com vocação e identidade comerciais próprias. Feira dos Importados (chamada popularmente de Feira do Paraguai); do Artesanato; da Sulanca; das Frutas e Verduras; de Raízes e Ervas Medicinais; do Troca-Troca; de Flores e Plantas Ornamentais; do Couro; de Confecções Populares; dos Bolos; de Artigos de Cama, Mesa e Banho; das Ferragens; do Fumo e a do Gado (a mais antiga, localizada no bairro do Cajá, fora do Parque 18 de Maio). A Feira da Sulanca, a maior delas, merece apresentação especial. Para tanto, é necessário recuar no tempo e voltar as atenções para o então vilarejo de Santa Cruz do Capibaribe, entre os anos 1940 e 1950. Com retalhos e tiras de helanca – malha fabricada no sul do país e trazida de São Paulo por caminhoneiros, os moradores produziam, na época, no fundo de quintais, colchas, tapetes e roupas rústicas de trabalho no campo. Eram peças mal-acabadas, verdadeiras sucatas, ou sulancas, palavra usada para designar a confecção de roupas baratas, mal ajambradas e de uso popular.

Logo os envolvidos naquele trabalho – gente da roça e de pequenas comunidades, em sua maioria – notaram que essas roupas eram uma alternativa de sobrevivência que não dependia da chuva nem do sol – afinal, estamos em pleno Polígono das Secas. E, com elas, comerciantes passaram a pequenos empreendedores, e os revendedores locais começaram a levar os produtos ao mercado, inclusive de outros estados, onde eram vendidos a preços acessíveis.

“Sulanqueiros”, com orgulho

O fato é que, a despeito da simplicidade, a sulanca adquiriu status e se transformou em sinônimo de qualidade. Hoje, Santa Cruz do Capibaribe, Toritama e Caruaru constituem o núcleo principal do Polo de Confecções do Agreste de Pernambuco, que engloba milhares de microempresários de mais de 30 municípios. O polo é o maior fabricante de jeans do norte-nordeste, com 15% da produção nacional. E é de lá que saem as roupas que movimentam a Feira da Sulanca.

O visitante de primeira viagem que for procurar essas confecções numa tarde qualquer no meio da semana vai encontrar apenas alguns gatos vadios dormitando nos cantos, entre barracas vazias. É que a Sulanca acontece só a altas horas da madrugada, na virada das noites de segunda para terça-feira.

Os primeiros sinais de vida da feira começam a surgir no final das tardes de segunda-feira, com a colocação dos produtos nas barracas. Logo o movimento fica intenso, com o vaivém de revendedores e sacoleiros que chegam de outras cidades pernambucanas e de estados vizinhos em ônibus fretados. Os artigos a ser vendidos normalmente ficam armazenados em áreas próximas. Quando são de outros municípios, sobretudo de Santa Cruz do Capibaribe e Toritama, boa parte das mercadorias são trazidas em jipes, alguns deles caindo aos pedaços e abarrotados até o teto. O sistema de iluminação é providenciado pela associação dos feirantes, em parceria com a municipalidade local. Se houver problemas, os comerciantes não se apertam: a gambiarra é uma prática comum por aqui. Mesmo assim, se a iluminação não for suficiente, lanternas dão um jeito.

Tudo pronto, às quatro horas da madrugada de terça-feira começa o espetáculo. O ritmo é frenético, intenso. Comerciantes, biscateiros, mascates, matutos, curiosos e até turistas de câmera na mão – há todo tipo de pessoas se acotovelando entre as barracas. Gente que viajou durante o dia, vindo de cidades pernambucanas como Garanhuns, Bezerros, Arcoverde e Serra Talhada, e também de Aracaju, Natal e Fortaleza.

Há também todo um mercado paralelo alimentado por aqueles que aproveitam a movimentação para ganhar alguns trocados, oferecendo bugigangas e produtos de qualidade suspeita. São os “eventuais”, desempregados ou pessoas sem qualificação profissional que encontram na feira seu sustento. Há espaço para todos. Segundo a Associação dos Feirantes de Artesanato, a Feira da Sulanca arrecada, em média, mais de R$ 25 milhões por semana. Mas que ninguém chame os comerciantes da Sulanca de barraqueiros. Eles são “sulanqueiros”, com muito orgulho. É o caso de Janete Clélia de Lima. Ela conta que chega por volta das 7 ou 8 da noite para montar a barraca com cerca de 500 peças, a maioria de barro, produzidas no Alto do Moura – bairro de Caruaru situado a 7 quilômetros do centro da cidade e povoado, predominantemente, por artesãos. “O dinheiro é pouco, mas é garantido. É melhor que trabalhar na roça”, sintetiza Janete. Ao lado dela, o cadeirante Isaías Alves da Silva concorda. Ele veio do Recife e trabalha há quatro anos na Sulanca. “Eu vendia CDs piratas na capital; agora, estou bem melhor aqui. Sou casado e o que ganho dá para sustentar a família. Não saio da Sulanca por nada deste mundo.”

Já Reginaldo Luís da Silva é um exemplo pronto e acabado de microempresário bem-sucedido moldado no local. As roupas, principalmente jeans, produzidas ali mesmo em Caruaru por Reginaldo e familiares até grife têm. É a Ozion Jeans. “Era Orion Jeans, mas descobri que essa marca já estava registrada e mudei para Ozion, por ser bem parecido”, conta. “Nossos produtos têm a mesma qualidade e seguem a moda do que é produzido no Rio e em São Paulo, mas custam 30% menos”, garante. O filho de Reginaldo, Thiago Luís, formado em processos gerenciais pela Universidade Castelo Branco, em Caruaru, está pronto para seguir os passos do pai na gestão da microempresa. “A transmissão do negócio de pai para filho é bastante comum na Sulanca”, observa Thiago. E Reginaldo acrescenta: “A seca prejudicou um pouco as vendas, mas se os compradores de áreas afetadas não vêm à feira, outros vêm. Hoje nossa região não depende tanto do clima para viver”.

Espaço de resistência

A Feira de Caruaru não ficou imune às mudanças nos hábitos de consumo impostas pelos shoppings e pelas gigantescas corporações atacadistas e varejistas. Apesar disso, a Feira do Troca-Troca se mantém como um espaço de resistência, conservando viva uma tradição. Realizada aos sábados pela manhã, ela é, pode-se dizer, uma reminiscência da antiga relação de escambo dos tempos coloniais, quando a circulação de moedas no meio rural era coisa escassa. Recostados pelos cantos, homens de aspecto soturno expõem suas mercadorias: bicicletas, rádios e televisores antigos; bolsas, relógios, sapatos e roupas fora de linha; peças de computador e aparelhos eletrônicos que há tempos deixaram de ser fabricados – alguns de procedência e aspecto altamente suspeitos e, na maior parte dos casos, de segunda mão. Por esses lados, todo cuidado é pouco. Afinal, o cliente ou a consumidora poderão ter uma surpresa ao chegar em casa e constatar, por exemplo, que a engenhoca adquirida não funciona. Nesse caso, não adianta reclamar aos serviços de proteção e defesa do consumidor.

O sonho de consumo dos turistas, porém, continua a ser a Feira do Artesanato. Peças de barro feitas por herdeiros, imitadores e seguidores do grande iniciador dessa arte em Caruaru, Mestre Vitalino, dão colorido às barracas. Bonecos representando diversas profissões, do médico ou dentista ao varredor de rua ou ainda ao eletricista trepado no poste de luz, enchem os olhos. Há também miniaturas de barro de trios de forró pé de serra, bandas marciais e grupos de folguedos populares, como o maracatu e o reisado. Tudo a preços acessíveis, se bem que peças produzidas por filhos e netos de Vitalino sejam mais valorizadas. Nada, no entanto, que uma boa pechincha não resolva.

Em sua barraca na Rua 2, logo na entrada da Feira do Artesanato, Maria do Socorro, de 60 anos, conta que chegou a ver Mestre Vitalino trabalhando na feira. “Ele não era muito famoso na época, mas já era respeitado”, recorda. Maria diz que às vezes aparecem em sua barraca turistas japoneses, alemães ou americanos. “Eles ficam encantados com o que veem.” Além das figuras de artesanato, vários tipos de bordados são vendidos ali. Há artigos de palha e vime, camisetas com imagens de Lampião e Luiz Gonzaga e imagens religiosas de barro, gesso, madeira e metal, entre muitas outras coisas. “Mas o movimento anda fraco, acho que é por causa da seca”, lastima a vendedora.

Quem não tem de que se queixar é a raizeira Maria Vieira, de 63 anos de idade. Católica devota de Padre Cícero, Maria Vieira não se “avexa” de vender em sua barraca, na Feira de Raízes e Ervas Medicinais, todo tipo de artigo para cultos de umbanda e candomblé. “O que cura é o espírito, com a ajuda de Deus”, ensina. Essa feira funciona todos os dias, menos aos domingos. É formada por 30 barracas em média, onde é possível encontrar uma diversidade muito grande de medicamentos, ervas e raízes, algumas plantadas pelos próprios feirantes, em casa ou em sítios. Nas barracas há uma mistura ecumênica de imagens de santos católicos e amuletos para afastar “mau-olhado”, defumadores e chás de raízes para banhos rituais ou de “descarrego”. Não muito distante, o perfume e as cores da Feira de Flores e Plantas Ornamentais são de tirar o fôlego. Muitas viajam milhares de quilômetros até chegar a Caruaru, pois uma grande variedade dos produtos expostos ali é originária de Holambra, na região de Campinas, em São Paulo. Boa parte, todavia, é cultivada nas terras altas de municípios vizinhos.

Caruaru é filha da feira, e o início de tudo vem do século 18. Havia por aquelas bandas uma fazenda chamada Caruru, referência, dizem, aos sapos “carurus” (cururus) que infestavam um poço do lugar. A fazenda ficava na encruzilhada do caminho de boiadas que rumavam do agreste ao sertão. Era lá que tropeiros e mascates se encontravam para passar a noite. Mais tarde, em 1781, o dono daquelas terras, José Rodrigues de Jesus, ergueu no local uma pequena capela em louvor a Nossa Senhora da Conceição, onde as pessoas dos arredores cumpriam suas obrigações religiosas: assistiam missas, casavam, batizavam os filhos e entregavam o corpo dos entes queridos a Deus.

Patrimônio imaterial

Aos domingos, por ser grande o movimento de pessoas, na frente da capela aos poucos foi se formando uma pequena feira. Frutas e hortaliças, carne de boi e de bode, rapadura e utensílios domésticos, roupas e bijuterias. Tudo era motivo de barganha, já que dinheiro mesmo era difícil de encontrar no agreste pernambucano. A feira se expandiu e logo estava ocupando a primeira rua do povoado que foi se formando e ganhou o nome de Caruaru. Juntos, o vilarejo e a feira não pararam de crescer. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o município conta com 325 mil habitantes, sem considerar a população flutuante de mais de 40 mil pessoas que acorrem semanalmente à cidade atraídas pelas feiras. Nos feriados de fim de ano, por exemplo, o número de visitantes que circulam pelas centenas de barracas passa dos 100 mil.

Feiras famosas no mundo há muitas. Só a de Caruaru, contudo, pode dar-se ao luxo de ostentar uma trilha sonora: “A Feira de Caruaru/ faz gosto a gente ver./ De tudo que há no mundo,/ nela tem pra vender.../ Na Feira de Caruaru”. Em fins de 1955, quando o compositor caruaruense Onildo Almeida levou sua música A Feira de Caruaru para um locutor da rádio difusora local escutar, não imaginava o sucesso que ela faria. Foi, porém, na voz de Luiz Gonzaga que esses versos ganharam o mundo. A Feira de Caruaru – pouca gente sabe – é um dos temas brasileiros mais recorrentes no exterior. A música já recebeu mais de 30 versões internacionais. “Uma vez, a Orquestra Sinfônica de Berlim incluiu A Feira de Caruaru em seu repertório”, relatou um orgulhoso Almeida ao pesquisador Gustavo Miranda, autor de uma monografia sobre a feira.

Por essas e outras é que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), órgão do Ministério da Cultura, em 2006 outorgou à Feira de Caruaru o título de Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro. “O valor cultural da Feira de Caruaru é inquestionável, assim como é inegável sua importância econômica”, justificou o Iphan. De acordo com a entidade, há mais de dois séculos a feira se mantém não apenas como “testemunho vivo da criatividade do povo nordestino em sua permanente luta pela sobrevivência”, mas também como um empreendimento de valor econômico assentado na cultura e na tradição. “O fato de ter permanecido como um espaço onde o consumidor, independentemente de sua faixa de renda, encontra diversidade e tem escolha, está também no centro desse sucesso. O peso econômico da Feira de Caruaru, em suma, vem de sua capacidade de resistência e, ao mesmo tempo, de adaptação às transformações urbanas, ao turismo, aos avanços tecnológicos e às mudanças e injunções do sistema capitalista de produção e consumo”, ressalta o dossiê elaborado pelo Iphan.

A Feira de Caruaru não está tombada, como ocorre com imóveis históricos. Porém, como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro, pode receber reformas e concorrer a linhas de financiamento destinadas a projetos de preservação de setores, como o de ervas e produtos medicinais – que a cada ano encolhe um pouco –, e assim garantir sua continuidade. Pelo menos, para os próximos 200 anos.