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Memória amarga dos anos de chumbo

Vera Gertel / Foto: Daniel Marenco/Folhapress
Vera Gertel / Foto: Daniel Marenco/Folhapress

A vida da jornalista e atriz Vera Gertel no período cinzento da ditadura

 

Por: HERBERT CARVALHO

Filha de pais comunistas, Vera Gertel nasceu na clandestinidade. Em pleno Estado Novo, veio ao mundo em São Paulo, mas foi registrada no Rio de Janeiro, dois anos depois. Talvez por isso, e também por ter vivido em ambas as cidades, tenha dificuldade em responder se é carioca ou paulista. Você é judia? Outra pergunta que a faz hesitar. Sua mãe não era, apesar de se chamar Raquel. Mas o pai, como se infere do sobrenome, descendia de judeus asquenazes estabelecidos no bairro paulistano do Bom Retiro, emigrados do que no início do século 20 ainda se conhecia como Império Austro-Húngaro. Seu próprio nome, na infância, não era o que passou a constar nos documentos e sim Anéli (Nelinha, para os íntimos). O pai, procurado pela polícia, teve entretanto receio de dizer no cartório a palavra que, na verdade, correspondia à sigla da Aliança Nacional Libertadora, ANL ou Anéli, como muitos chamavam a frente de oposição a Getúlio Vargas nos anos 1930.

Já no final da década de 1950, quem assistiu a Eles Não Usam Black Tie – peça de Gianfrancesco Guarnieri que revolucionou o teatro brasileiro ao colocar operários no palco – talvez se lembre da atriz que percorreu o Brasil como a jovem favelada que, ao final do enredo, se recusa a casar com um fura-greve. Muitos outros foram os papéis de Vera Gertel, uma das fundadoras do Teatro Paulista do Estudante (ao lado do primeiro marido, Oduvaldo Vianna Filho, o Vianninha), participante do Teatro de Arena em sua fase áurea e diretora do Centro Popular de Cultura (CPC) até o golpe de 1964. Integrou ainda o elenco, juntamente com o saudoso Jardel Filho, da primeira telenovela de Janete Clair, O Acusador, levada ao ar em 1964 pela extinta TV Tupi, antes mesmo da existência da TV Globo.

Quando, porém, após a decretação do AI-5, em 1968, sua atividade de apoio a grupos da luta armada e a feroz censura a qualquer crítica à ditadura no texto das peças inviabilizam a permanência em cena, surge a jornalista Vera Gertel, que durante quase 20 anos trabalhou na revista feminina “Desfile”, da Bloch Editores.

Muitas são, assim, as faces dessa militante que desde muito jovem engajou-se nas lutas sociais, políticas e culturais que moldaram o Brasil na metade do século passado. Todas elas, porém, formam um retrato único da mulher que hoje, aos 75 anos, decidiu contar o muito que viveu no curto espaço de tempo entre 1937 e 1974, ou seja, de seu nascimento até o auge do extermínio dos presos políticos pela ditadura militar, inclusive de seu padrinho, Joaquim Câmara Ferreira.

Detalhes saborosos

O que significa a autobiografia de Vera Gertel, Um Gosto Amargo de Bala (Civilização Brasileira, 272 páginas), pode ser avaliado pelo que dizem em textos de apresentação da obra três ilustres jornalistas e escritores da atualidade. “Neste livro, além do testemunho sobre os anos cinzentos e a luta política, Vera Gertel faz um emocionado e emocionante relato de perdas e alegrias de uma vida decididamente longe do comum”, afirma Luis Fernando Verissimo. “Vera Gertel, com sua vivência de jornalista e atriz de sucesso, consegue editar com amplo conhecimento de causa o cenário, o clima, as lideranças (algumas heroicas) que atuavam no teatro, no jornalismo e na resistência contra a ditadura”, acrescenta Carlos Heitor Cony. “O índice de nomes deste livro é um who is who do Brasil dos anos 40 aos 70. Mas seu protagonista é uma mulher que nunca deixou de seguir em frente – mesmo agora, quando olha para trás para contar a história”, arremata Ruy Castro.

Ao longo dos 42 capítulos curtos em formato de flash, a autora contextualiza os tempos em que viveu evocando episódios históricos – incluindo o período da redemocratização no Brasil em 1945 até o governo João Goulart e sua derrubada pelos militares, a Guerra Fria e a Guerra do Vietnã, a Revolução Cubana, a invasão da Tchecoslováquia pela então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e a revolta de maio de 1968, em Paris. Tudo isso não passa, entretanto, de pano de fundo para destacar fatos presenciados fisicamente e que são narrados com detalhes saborosos. Após o famoso comício na Central do Brasil, em 13 de março de 1964, por exemplo, Vera Gertel conta que foi se encontrar com o segundo marido, o compositor da Bossa Nova Carlos Lyra, na casa do expoente maior desse movimento musical, Tom Jobim. “Cheguei excitada pelos acontecimentos e encontrei um Tom apreensivo, dizendo: ‘Cuidado... não sei, não...’ Era a opinião autêntica, severa e acertada, de quem assistia a tudo de fora.”

O jornalista Noé Gertel, pai de Vera, viveu até os 87 anos de idade e manteve sempre como características a fidelidade ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e uma “aparência excepcional”, que a filha descreve assim: “Bonito, charmoso, bossa de jornalista e uma timidez maldisfarçada. Mesmo o terno barato era trajado com elegância. Ia e voltava a pé do trabalho com porte ereto, um grande caminhante. Só fumava, não bebia. As mulheres não o deixavam em paz”.

O padrinho

Essa figura paterna, marcante para todos os que o conheceram, trespassa toda a obra, da primeira página ao epílogo. Estudante de direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, Noé casa-se com a operária tecelã Raquel da Silva em dupla clandestinidade: como vice-presidente do diretório regional da ANL e membro da Juventude Comunista precisa se esconder da polícia após a derrota da insurreição deflagrada em 1935 por Luís Carlos Prestes; por outro lado, não teve coragem de dizer à família que se casara com uma gói (ou seja, alguém que não era de origem judaica).

Dirigente nacional do PCB aos 23 anos de idade, Noé ficou preso na Ilha Grande (RJ) entre 1942 e 1944, junto com outros comunistas célebres, como Agildo Barata, Carlos Marighella, Gregório Bezerra, o escritor Jorge Amado, David Capistrano e Joaquim Câmara Ferreira. A filha pôde vê-lo apenas duas vezes nesse período, em companhia da mãe – a qual também seria presa por atos de rebeldia: durante o julgamento de Prestes, em 1940, quando no Tribunal de Segurança Nacional gritou: “Viva o Partido Comunista”, e um quarto de século depois, ao abrir um cartaz de “Abaixo a ditadura”, durante um desfile de 7 de setembro.

Com pais assim, não é de admirar que aos 15 anos Vera já fosse vice-presidente da União Paulista dos Estudantes Secundaristas (Upes). Foi nessa época que conheceu o filho do teatrólogo Oduvaldo Vianna e da também novelista de rádio Deocélia Vianna, ambos simpatizantes do PCB. Ela, Vianninha e Guarnieri, nascido na Itália e também filho de pais que além de comunistas eram músicos, fundariam o Teatro Paulista do Estudante, de curta existência por logo ter se fundido ao Teatro de Arena.

Em vários capítulos do livro – ao lado da saga de um teatro cujos atores se apresentavam com as próprias roupas, cumpriam tarefas diversas despidos de qualquer estrelismo e não titubeavam em se exibir em cima de caminhões para atingir grandes plateias – surge também o retrato de corpo inteiro da mulher que foi feminista, antes que isso virasse moda: casou com Vianninha quando já estava grávida, durante os ainda recatados anos 1950, e na década seguinte ingeria comprimidos diários de hormônio, antes do surgimento dos anticoncepcionais, para “garantir uma vida sexual menos preocupante”. Ao saber que o marido estava apaixonado pela atriz Miriam Mehler, foi procurá-la para anunciar: “Não quero mais o Vianna. Pode ficar com ele”. Além do criador de obras como a peça premiada Rasga Coração e o programa da TV Globo “A Grande Família”, Vera foi casada também com o jornalista Janio de Freitas, igualmente à esquerda no espectro político.

Ao final, a autora relata seus vínculos com Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira, que, rompidos com a linha pacífica do PCB, encabeçavam a Ação Libertadora Nacional (ALN), uma das organizações da resistência armada à ditadura. Foi pombo-correio do primeiro em viagens a Paris, Praga e Alemanha Oriental, e do segundo recebia a cada aniversário um livro de presente, assinado “O padrinho”. Quando ambos foram assassinados restou-lhe o gosto amargo de bala, experimentado por toda uma geração que sonhou mudar o mundo e acabou massacrada por isso.