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O rival de Noel acabou esquecido
Autor de sambas célebres, Wilson Batista cantava a malandragem e a boemia
Por: HERBERT CARVALHO
Em 1933 ainda não havia no Brasil a feroz censura do Estado Novo, ditadura estabelecida por Getúlio Vargas entre 1937 e 1945. Mas já existia, como hoje, uma autocensura imposta pelos proprietários dos meios de comunicação para decidir o que podia ou não ser veiculado pelo rádio, o mais potente instrumento de comunicação de massas entre 1923, quando começaram suas transmissões regulares, e a popularização da televisão, nos anos 1960. A primeira vítima de uma comissão designada pela recém-criada Confederação Brasileira de Radiodifusão, com poderes para vetar qualquer música “em nome da moralidade e do respeito às autoridades constituídas”, foi o samba Lenço no Pescoço. Gravada por Sílvio Caldas com acompanhamento do conjunto Diabos do Céu, de Pixinguinha, a canção se tornaria a mais famosa apologia da malandragem. Após descrever o malandro que passa gingando com “chapéu de lado,/ tamanco arrastando,/ lenço no pescoço,/ navalha no bolso”, os versos proclamavam: “Provoco e desafio,/ eu tenho orgulho,/ em ser tão vadio”. Acrescentava, ainda, uma razão ideológica deste proceder: “Eu vejo quem trabalha/ andar no miserê”.
Autêntico retrato de seu autor, o compositor Wilson Batista (1913-1968), e do cotidiano do Rio de Janeiro – como a quase totalidade das 600 músicas deixadas por esse “gênio espontâneo da melhor geração de criadores populares do samba carioca”, no dizer do crítico José Ramos Tinhorão –, Lenço no Pescoço foi além de inaugurar o índex das canções de execução proibida no rádio brasileiro. Atraiu, também, para o jovem recém-chegado ao então Distrito Federal a atenção dos compositores Orestes Barbosa e Noel Rosa. O primeiro escreveu em sua coluna no jornal “A Hora”: “No momento em que se faz a higiene poética do samba, uma produção pregando o crime por música não tem perdão”. O segundo limitou-se a compor Rapaz Folgado, que desmontava verso a verso a ousadia, ao sugerir jocosamente: “Tira do pescoço o lenço branco,/ compra sapato e gravata,/ joga fora essa navalha, que te atrapalha”.
Começava aí a mais célebre polêmica da música popular brasileira, entre o já consagrado poeta de Vila Isabel e o novato Wilson, que acabaria por tornar este último refém de uma armadilha: embora criador de obras-primas como Acertei no Milhar, antológico samba de breque imortalizado por Moreira da Silva, ele ficaria mais conhecido como o perdedor de uma disputa construída posteriormente pela indústria cultural, mas que, na verdade, não passara de gozação entre boêmios.
O resultado foi que, morto prematuramente, aos 55 anos, não chegou a desfrutar do reconhecimento tardio conferido a contemporâneos e equivalentes em talento, como Cartola e Nelson Cavaquinho. Incluído na década de 1970 na “Nova História da Música Popular Brasileira”, da Editora Abril, com direito a retrato ilustrado por Elifas Andreato na capa do fascículo, foi olimpicamente ignorado neste início de século 21 pela coleção “Raízes da MPB”, do jornal “Folha de S. Paulo”, que optou por não colocá-lo entre os 25 compositores destacados. No centenário de seu nascimento, que ameaça passar quase sem registro, Problemas Brasileiros conta a história deste que Paulinho da Viola considera “o maior sambista brasileiro de todos os tempos”.
Lambido de vaca
Wilson Batista de Oliveira nasceu e passou a infância “numa casa às margens do rio Paraíba cercada por goiabeiras em flor”, em Campos dos Goytacazes, cidade do norte fluminense “com usinas de açúcar para adoçar o café do mundo inteiro”, segundo suas próprias lembranças. O pai, pedreiro, pintor de paredes e guarda civil, logo desistiu de fazer estudar ou trabalhar o filho único, que trocava as aulas no Instituto de Artes e Ofícios por pescarias e rinhas de galo. “Meu pai trabalhou tanto, que eu já nasci cansado”, ele diria num samba autobiográfico, como a maioria dos que compôs. O caminho artístico lhe seria indicado pelo maestro Ovídio Batista, seu tio, em cuja banda, Lira de Apolo, o sobrinho estreou como músico, batendo triângulo. No carnaval, desfilava no rancho Corbeille de Flores – organizado por uma avó materna amiga de Pixinguinha –, para o qual fez algumas paródias e primeiras tentativas de composição.
Aos 15 anos embarca clandestino num trem cargueiro rumo ao Rio de Janeiro, então a capital do país, aonde chega “todo lambido de vaca” – como dizia –, com o sonho de tornar-se um sapateador igual aos que vira em filmes ainda na cidade natal. Às vésperas da Revolução de 1930, o Rio já era uma metrópole dividida entre o brilho da Belle Époque e a herança colonial mestiça. Ali os malandros, sucessores dos capoeiristas do século 19, ainda gozavam de considerável liberdade para dar seus “rabos de arraia”. Jogado no turbilhão da cidade grande, sem eira nem beira, o mulatinho franzino de 1,65 metro de altura e cabelos ondulados comeu o pão que o diabo amassou: oscilou entre fazer alguns biscates – como a poética função de acender os lampiões a gás que iluminavam o Rio – e praticar a punga na Rua da Carioca, ao lado de batedores de carteiras experientes como os irmãos Meira, que o introduziram no bas-fond da Lapa boêmia. As prisões que amargou, em vez de má fama, granjearam-lhe o respeito dos pares. Morou algum tempo em um subúrbio distante na casa de um tio que era gari, mas logo preferiu bancos de jardins e albergues para estar mais próximo da Praça Tiradentes – que concentrava vários teatros – e do bar Esquina do Pecado, ponto de encontro de artistas e marginais.
Em 1929 o caminho para melhorar de vida surge ao empregar-se como eletricista e contrarregra no Teatro Recreio, porta de entrada para o mundo musical do qual não mais sairia. Madrinha melhor não poderia ter para lançar, aos 16 anos, seu primeiro samba, cantado no palco por Aracy Cortes, a grande estrela do teatro de revistas. Intitulado Na Estrada da Vida, era “tão triste que até parece espírita”, como ele confessaria. “Todo homem carrega sua cruz/ na estrada da vida,/ que é longa e sem luz...”, diziam os versos.
Para permanecer no meio artístico após a estreia, pega um pandeiro e se torna crooner de orquestra, defendendo cachês em bailes de subúrbio. E não deixa mais de compor. Ao contrário de Noel, bacharel e exímio violonista, o semianalfabeto Wilson Batista desconhecia qualquer noção musical prática ou teórica, mas tinha o dom da poesia e da melodia. Apelidado de Maestro Caixa de Fósforos pelos frequentadores do lendário Café Nice, era munido de uma “tese” e da caixinha (responsável também pela fama do cantor Cyro Monteiro) que ele compunha letra e música ao mesmo tempo, com extrema facilidade. “Imaginava a composição e saía cantando. Parecia que a música já nascia pronta”, testemunhou um de seus parceiros, Henrique de Almeida.
Duelo de boêmios
A boemia foi, por assim dizer, a sua escola de vida. Na monografia Wilson Batista e Sua Época, editada em 1985 pela Funarte, o autor Bruno Ferreira Gomes, também seu amigo e parceiro, conta: “Wilson lia bem, mas para assinar o nome travava uma verdadeira batalha com a caneta. Gostava de se cercar de gente inteligente e assimilava bem as conversas que tinha com pessoas mais cultas”. Era também um boêmio peculiar, totalmente abstêmio – raridade nesse meio –, que frequentava os cabarés e varava as madrugadas empunhando refrigerantes, sucos e até copos de leite. Apenas no final da vida passou a fumar “uma erva do norte”, conforme se referia à maconha nas letras dos sambas.
Quando ouviu Rapaz Folgado cantado por Noel no “Programa Casé”, Wilson deu o troco com Mocinho da Vila, que dizia: “Injusto é seu comentário,/ fala de malandro quem é otário”. De acordo com o pesquisador Rodrigo Alzuguir, idealizador do musical O Samba Carioca de Wilson Baptista (editado em CD pela gravadora Biscoito Fino) e autor de um texto sobre a famosa polêmica divulgado pelo blog do Instituto Moreira Salles, o cerne da disputa não era poético nem musical: “O verdadeiro desacato de Wilson foi conquistar o coração de uma dançarina de cabaré na Lapa, que Noel também andara assediando”.
O contencioso recrudesceu após Feitiço da Vila, lírica exaltação ao bairro “com nome de princesa”, que Wilson contestou verso a verso, como Noel havia feito em relação a Lenço no Pescoço. Mas se Conversa Fiada era um samba bem-feito, que questionava cada imagem das qualidades de Vila Isabel alinhadas por Noel, a resposta deste foi simplesmente arrasadora, com o clássico Palpite Infeliz, sucesso no carnaval de 1936 que deixava no ar uma pergunta: “Quem é você que não sabe o que diz?”
A partir daí Wilson, então pouco mais que um garoto, pareceu mesmo não saber o que dizer e apelou com Frankenstein da Vila – explorando a marca de nascença no queixo do oponente – e Terra de Cego, que dizia: “és o abafa da Vila, bem sei,/ mas em terra de cego/ que tem um olho é rei”. Esses sambas foram cantados em rádio, mas não chegaram a ser gravados na época, e Noel só não os ignorou por completo porque o último serviu para selar a paz entre os colegas, por meio de uma insólita parceria: aproveitando a melodia, Noel criou uma nova letra que mudava o nome de Terra de Cego para Deixa de Ser Convencida, recado para a morena causadora da desavença, a essa altura já uma carta fora do baralho para os dois.
Assim, acabava em samba uma briga logo esquecida, mas que seria recontada 20 anos depois com cores mais fortes, a partir do disco lançado pela gravadora Odeon, em 1956, intitulado Polêmica, com ilustração de capa a cargo do caricaturista Nássara, parceiro musical de ambos. Nas entrevistas sobre o assunto, dadas até o final da vida, Wilson assumiu – com “indevida humildade”, na opinião de Alzuguir – a carapuça de anti-Noel e de vilão arrependido por ter brincado com o defeito físico do rival.
Como consequência disso tudo, apesar de a disputa se resumir ao que Paulinho da Viola definiu como apenas “um detalhe” na vasta obra de Wilson Batista, esta acabou diminuída pelo estrondo armado em torno da controvérsia, que rendeu até especulações sociológicas contrapondo “branco x negro” e “civilização x malandragem”. Era no entanto genuína sua admiração pelo gênio de Noel, a quem citou em oito sambas, como o que fez sobre a morte do cantor Francisco Alves em um acidente de carro (“partiu, foi pro céu,/ foi fazer companhia a Noel”).
Cronista musical
Em 1936, ainda durante a polêmica, Wilson formou com o cantor Erasmo Silva a dupla Verde e Amarelo. Ficaram dois anos fora do Rio de Janeiro, emendando uma excursão à Argentina com uma temporada em São Paulo, onde souberam da morte de Noel, aos 26 anos de idade. A produção musical de Wilson Batista, entretanto, estava apenas começando.
As décadas seguintes concentram o auge de seus sucessos. O primeiro deles foi Oh, Seu Oscar, parceria com Ataulfo Alves, que venceu o concurso de marchas carnavalescas de 1940 promovido pelo temível Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Para contemporizar com a censura do Estado Novo, que não admitia mais navalhas e malandros nas letras das músicas, compõe no ano seguinte, em tom de autocrítica, O Bonde de São Januário, que “leva mais um operário,/ sou eu que vou trabalhar./ Antigamente eu não tinha juízo,/ mas resolvi garantir meu futuro”.
Os bondes seriam muitos em seu acervo de cronista musical que retratou o cotidiano do carioca, com suas frustrações e conflitos narrados em forma de minioperetas que podiam muito bem ser encenadas no palco, a exemplo do drama da Mãe Solteira, que “ateou fogo às vestes/ [...] Parecia uma tocha humana/ rolando pela ribanceira”. “Trabalhar”, porém, seria pura licença poética, pois o próprio Wilson logo deixou de cantar profissionalmente para viver apenas de suas composições.
Como Nelson Cavaquinho, não tinha o menor pudor em vender sambas e, quando precisava de dinheiro, ia direto ao ponto com os compradores habituais: “Vai um samba inteiro ou quer entrar só de parceiro?” Para receber os direitos autorais das composições que assinou tornou-se um dos fundadores da União Brasileira de Compositores (UBC). Porém, como gastava mais do que ganhava, recorria às “facadas” nos amigos, aos quais conferia patentes, reservando para si graduação modesta: “Como vai, major? Tem um dinheirinho aí para o cabo Wilson?”
Pai de três filhos, cantou as muitas mulheres que amou (Hilda, Jane, Emília e Rosalina, entre outras) e também suas duas grandes paixões, a Mangueira e o Flamengo. Para a Estação Primeira compôs Mundo de Zinco, quase um testamento: “Mangueira fica pertinho do céu/ Mangueira vai assistir o meu fim/ Mas deixo um nome na história/ O samba foi minha glória/ E sei que muita cabrocha/ Vai chorar por mim”. Os sambas E o Juiz Apitou, Memórias de Torcedor e Samba Rubro-Negro homenagearam o time do qual era torcedor fanático, em mais uma identificação com Cyro Monteiro.
Mais politizado compositor de uma época em que, com o fim da Segunda Guerra Mundial, o comunismo e a União Soviética exibiam grande prestígio, transmitiu sua mensagem social por meio de dois personagens, o pedreiro Waldemar e o cabo Laurindo. O primeiro é uma autêntica ilustração do princípio marxista sobre a exploração do trabalhador e sua alienação em relação ao resultado do próprio trabalho: “Você conhece o pedreiro Waldemar?/ Não conhece,/ mas eu vou lhe apresentar./ De madrugada toma o trem da Circular,/ faz tanta casa e não tem casa pra morar./ Leva a marmita embrulhada no jornal./ Se tem almoço, nem sempre tem jantar./ O Waldemar, que é mestre no ofício,/ constrói o edifício/ e depois não pode entrar”.
Já Laurindo é um pracinha da Força Expedicionária Brasileira (FEB) que volta da Europa promovido a cabo, “trazendo garboso no peito a Cruz da Vitória”, segundo os versos de Wilson, que advertem: “Conheço os princípios/ que Laurindo sempre defendeu/ Amigo da verdade,/ defensor da igualdade./ Dizem que lá no morro/ vai haver transformação/ Camarada Laurindo,/ estamos à sua disposição”.
Redondos e quadrados
Nessa mesma época uma curiosa marchinha, parceria entre Wilson e Nássara, incendiou o carnaval carioca de 1950 e tornou-se uma das mais cantadas de todos os tempos: Balzaquiana. A letra, que chegou a ter uma versão em francês divulgada em Paris, pegava carona nas comemorações mundiais pelo centenário de Honoré de Balzac (1799-1850) e terminava afirmando que “mulher só depois dos 30”, em referência a uma das obras mais famosas do escritor.
Na década de 1960, amargando um ostracismo nos meios de comunicação monopolizados inicialmente pela Bossa Nova e depois pela Jovem Guarda, Wilson Batista reagia chamando de “redondos” aqueles que atribuíam aos de sua geração o epíteto de “quadrados”. Em suas memórias inacabadas, escreveu: “Batizo de redondos esse exército de medíocres que, na tentativa de tomar conta da música popular brasileira, tacham de quadrados os compositores que, com talento, luta e sacrifício, quebraram suas cabeças para enriquecer nossa cultura”.
Em 1968, semanas antes de sua morte, tentou participar da I Bienal do Samba com o patético Transplante de Coração, alusivo à operação, então ainda experimental, que seria a única solução para seus problemas cardíacos. O samba, que não foi aceito, pedia aos médicos um coração para um bamba, que “andou por Vila Isabel,/ com o violão no braço,/ enfrentou até Noel”, e concluía: “O sambista quando é grande demais/ não deve desaparecer”.
No Hospital Souza Aguiar, ao ser informado da gravidade de seu quadro clínico, comentou: “Se eu soubesse que ia morrer teria vendido todo o meu repertório e ia me acabar em Paris na companhia de mulheres bonitas”. Os parentes e amigos que compareceram ao Cemitério do Catumbi prestaram-lhe uma homenagem singela, que atendia a um desejo seu: esperaram o crepúsculo para sepultar aquele que amara e vivera na noite.
Entre os sambas inéditos que deixou estava Meu Mundo É Hoje, mais tarde gravado por Paulinho da Viola. A letra contundente resume a postura que manteve diante da vida: “Eu sou assim, quem quiser gostar de mim, eu sou assim./ Meu mundo é hoje, não existe amanhã pra mim./ Eu sou assim, assim morrerei um dia./ Não levarei arrependimentos, nem o peso da hipocrisia./ Tenho pena daqueles que se agacham até o chão,/ enganando a si mesmos, por dinheiro ou posição./ Nunca tomei parte nesse enorme batalhão,/ porque sei que, além de flores, nada mais vai no caixão”.