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Sem as enchentes, quase um paraíso
Por: MILU LEITE
É uma cidade de extremos. Erguida num vale às margens do Itajaí-Açu, Blumenau pode ser devorada pelas caudalosas águas do rio ou castigada por um calor abrasador devido aos morros ao redor. Em contrapartida, é conhecida nacionalmente por sua bela arquitetura típica alemã e por concorridos eventos populares, com danças, música e comidas características da colônia germânica. E cerveja, claro. Muita cerveja.
Fundada em 1850 por um imigrante alemão, o doutor Hermann Bruno Otto Blumenau, a cidade já viveu dias de glória. Até a virada do século, era tida como referência no estado de Santa Catarina, com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) que a colocou na primeira posição em 1970 e na quinta, no ano 2000 (hoje, é a 19ª em termos nacionais). Porém, ainda que a crise econômica do final dos anos 1990, a globalização e as pirraças da natureza tenham obrigado a aprazível cidade a descer alguns degraus no IDH, Blumenau continua oferecendo atrativos a seus cerca de 300 mil habitantes. E recebendo migrantes que chegam em busca de qualidade de vida e oportunidades de trabalho em seu parque fabril.
De seu leito de águas barrentas, o rio Itajaí-Açu acompanha, taciturno, a chegada de novas moradias a suas margens e às encostas dos morros. A tranquilidade do lugar engana apenas aqueles que desconhecem as terríveis enchentes que, volta e meia, trazem a destruição, um triste fenômeno que desde novembro de 1852 (data do primeiro registro do evento na região) agride a bucólica paisagem rural e urbana do município. Em 2008 e 2011, por exemplo, a fúria das águas daquele rio se juntou a uma chuva impiedosa, e Blumenau virou um mar de lama devido aos deslizamentos. O país assistiu atônito na televisão às cenas que resultaram em dezenas de mortes e milhares de desabrigados. “As pessoas que tinham ido para os morros com a ideia de escapar da fúria do rio nos dias de chuva acabaram sendo pegas de surpresa pelos deslizamentos”, recorda Sônia Becker, guia de turismo que vive no município há 17 anos e teve sua casa destruída. “Ele é, ao mesmo tempo, parceiro e o pior dos inimigos”, diz a guia, referindo-se ao Itajaí-Açu. Ela conta que, embora tenha sofrido na pele os efeitos dos transbordamentos e deslizamentos de dois anos atrás, gosta da vida que leva em Blumenau.
Isso acontece porque, apesar das desgraças, a vida em Blumenau ainda mantém os elementos característicos do bem-estar. A cidade não é violenta, os serviços públicos funcionam (pioraram, mas ainda dão conta do recado) e as opções de lazer são diversificadas. Aliás, muitos dos eventos culturais e das festas que projetam o nome de Blumenau para longe de seus domínios foram criados em resposta ao clima de desconsolo causado pelas enchentes. Esse é o caso, por exemplo, da Oktoberfest, festival das tradições alemãs realizado anualmente em outubro, na Vila Germânica, no bairro da Velha, a dois quilômetros do centro. Maior centro de eventos de Santa Catarina, a Vila Germânica abriga, paralelamente à realização da Oktoberfest, lojas de artesanato, bares e restaurantes de estilo teutônico, com capacidade para receber milhares de visitantes. Alardeada como a maior festa alemã das Américas e uma das primeiras do gênero no mundo, a Oktober, como é chamada, existe desde 1984 e já recebeu em toda a sua história, segundo informação dos postos de turismo, “mais de 17 milhões de pessoas que consumiram 11 milhões de litros de chope nesse largo período”.
Pura catarse
A festa de outubro é, assim, um acontecimento que faz girar grandes somas em Blumenau, sem falar do incremento das vendas da cerveja fabricada na região do Vale Europeu (são mais de dez cervejarias, incluindo zonas produtoras dos municípios vizinhos de Brusque, Gaspar, Pomerode e Timbó, entre outras). Em linhas gerais, a Oktoberfest “é o nosso carnaval”, diz a francesa Marie Gerardin, professora da Universidade Regional de Blumenau (Furb), campus que reúne parte da intelectualidade da região e que, após consulta feita através de um plebiscito popular, está passando para a alçada federal. “São 18 dias de pura catarse”, acentua Marie. Há 13 anos na cidade, ela adiou o quanto pôde a ida à festa, até ser vencida pela curiosidade. “Fui para me sentir dentro do clã. A Oktoberfest está incorporada à vida de Blumenau. E me diverti”, comenta. De acordo com a professora da Furb, alemães de todas as partes comparecem ao evento, “pois acham tudo aquilo parecido com o que há na Alemanha, só que acrescido da loucura brasileira”.
Os demais dias do ano são de calmaria e austeridade. Os momentos dramáticos vividos pela cidade, porém, deixaram marcas. Em entrevista ao grupo RBS, em março de 2009, dom Angélico Sândalo Bernardino declarou, ao despedir-se da diocese local, depois de nove anos de trabalhos no município: “É um povo que se volta para Deus no meio de lágrimas, alegrias e contradições. Tenho preocupação em ver aqui no Vale tanta angústia. Nunca vi tanta gente dizendo que está com depressão. Blumenau tem uma estatística elevada de suicídios”.
A professora Inês Pelizzaro, da Furb, vê com interesse a tese de que o alemão – o melhor seria dizer “o modo de vida alemão” – tem dificuldade para suportar o fracasso. Conselheira municipal na área de saúde, ela explica também que o atendimento em saúde mental ainda sofre limitações. Segundo ela, as enchentes de 2008 e 2011 provocaram muitos traumas. Ela conta que as queixas são frequentes e que os moradores relatam que não dormem direito, sentem medo e estão sempre às voltas com dificuldades oriundas das catástrofes, já que muitos deles perderam suas casas e ainda não tiveram uma solução definitiva para o problema de habitação. O programa Minha Casa, Minha Vida, do governo federal, tem sido, até o momento, a única alternativa para muitas famílias. No âmbito estadual e no municipal, as medidas são paliativas e não conseguem chegar ao âmago do problema. Cortada pelo Itajaí-Açu, por ribeirões e córregos, Blumenau necessita não só de uma política habitacional que aponte soluções para as centenas de pessoas que se instalaram nas encostas dos morros, mas também que as áreas desmatadas sejam reflorestadas e haja grandes investimentos na rede de esgotos. Isso porque erguer muros e barragens é o mesmo que querer tapar o sol com a peneira.
Casas sem cercas
Pinceladas tão cinzentas, contudo, não conseguem empanar o brilho das tonalidades vibrantes da paisagem do lugar. Afinal, como lembram Marie e Inês, “trata-se de uma cidade agradável, a maior parte das casas não tem cercas e os jardins são floridos”. O clima geral é, portanto, de paz. “Eu nunca fecho o vidro do carro porque não tenho medo de voltar e não encontrá-lo”, afirma Inês, acrescentando, porém, que a criminalidade começa a incomodar. Fatos comprovam a má notícia. Segundo o jornal “Diário Catarinense”, em reportagem de fevereiro passado, um grupo de 102 policiais civis de todo o estado realizou uma operação em alguns conjuntos habitacionais da cidade a pedido da população, preocupada com a escalada da violência. Batizada de “Lei e Ordem 2”, a batida policial teve por objetivo coibir o tráfico de crack e de maconha, além de prender ladrões que agem nas redondezas.
Esses eventos, é preciso ressalvar, ainda são pouco expressivos. Fiquemos, assim, com as palavras de otimismo de Inês e Marie, pois elas encontram respaldo na realidade. “Para trabalhar, é ainda uma cidade boa. Além do mais, é limpa, tem bons cafés, restaurantes, e o custo de vida é mais baixo, por exemplo, do que em Florianópolis”, compara Marie. Um passeio pelas ruas do centro certamente levará o visitante a concordar com a professora da Furb. Entrar num dos vários estabelecimentos que oferecem o típico café colonial (um convite à gula e a todos os desregramentos gastronômicos) ou em uma das muitas igrejas evangélicas luteranas (e, em menor número, das católicas romanas), espalhadas por bairros como Vila Itoupava, Fortaleza e Velha, faz qualquer um imaginar que, num passe de mágica, foi transportado para a Alemanha, tal a similaridade com as construções de lá. As visitas a museus (de Hábitos e Costumes, da Cerveja, da Família Colonial, Fritz Muller, entre outros) se encarregam de sedimentar a impressão inicial. Porém, tanto num caso quanto no outro, é importante frisar que foi a Alemanha que coube no Brasil, não o contrário.
De acordo com a professora Jacqueline Samagaia, do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Extensão sobre Movimentos Sociais (Nepemos), da Furb, cuja tese de doutorado aborda os impactos da globalização sobre Blumenau, o processo de favelização tão comum às grandes cidades brasileiras “não encontra eco em Blumenau, município com perfil industrial que lhe garantia, no passado, certa projeção em termos de melhor qualidade de vida. Todavia, os efeitos da implementação, nas últimas décadas, de medidas que focam essencialmente a reestruturação produtiva vêm cobrando um preço elevado da comunidade”. Jacqueline conclui que os custos sociais dessas “inovações” foram igualando a cidade e a região a outras partes do país. Em outras palavras: para resolver por exemplo o problema de falta de habitação, as autoridades têm se pautado por projetos que atendam às necessidades de produção, deixando o cidadão em segundo plano. É isso o que explica o fato de condomínios recentemente erguidos pelo governo serem abandonados por seus moradores, que preferem voltar a áreas com risco de deslizamento a permanecer em apartamentos de 40 metros quadrados, longe de escolas, unidades de saúde e demais serviços urbanos.
As razões da queda da qualidade de vida da população local vão no entanto além da política habitacional e dos caprichos da natureza. As transformações nas relações de produção causadas pela globalização tiveram forte impacto sobre a vida do trabalhador e do empresariado. A indústria têxtil – motor da economia da região desde o início do século 20, e que se manteve assim basicamente graças a uma competente administração do tipo familiar – sofreu com as novas regras do neoliberalismo, abrindo espaço para o surgimento de empresas de médio e pequeno porte, criadas para atender às necessidades do setor primário. “Houve uma drástica redução das possibilidades de ascensão social pelos trabalhadores locais após os anos 1990”, informa Jacqueline em seu trabalho. Vale lembrar que, de acordo com dados do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), ocorreu uma queda de 53% no nível de emprego na indústria têxtil nacional entre 1989 e 1994.
“Tendo a cidade se desenvolvido por meio de um processo de industrialização intensa e bem-sucedida, num país em que a mão de obra foi sempre pouco valorizada, não se podia esperar outra coisa”, avalia Jacqueline. Seja como for, ao mesmo tempo em que uns caem outros se erguem. De acordo com dados divulgados pela prefeitura, novos segmentos encontraram em Blumenau terreno fértil para se expandir, caso das mais de 500 empresas dedicadas ao desenvolvimento de software. A prefeitura local contabilizou em setembro de 2012, por exemplo, 124 novos empreendimentos sendo implantados na cidade. E, de acordo com a Praça do Cidadão – espaço público onde se concentram praticamente todos os serviços da municipalidade com o propósito de facilitar a vida dos blumenauenses –, nesse mesmo período houve 267 movimentações relacionadas à emissão de alvarás para abertura de empresas.