Sesc SP

Por: REGINA ABREU

Barbara Gancia, colunista da “Folha de S. Paulo”, uma das apresentadoras do programa “Saia Justa”, do GNT, e comentarista de esporte nos canais especializados da TV, é conhecida por não ter papas na língua. Nem para falar de si mesma: “Comecei a bebericar quando criança. Aos 16 anos já bebia pesado, principalmente coolers, cuba libre, drinques com refrigerante, ices, hi-fi. Adulta, bebia muito e rápido”. Mas o pior eram as mentiras, as estratégias que utilizava para disfarçar: mandava a empregada à padaria (onde comprava fiado, freguesa velha que era) adquirir uísque e cigarros com a desculpa de que estava recebendo visita. Ou chegava em casa com a garrafa embrulhada para o porteiro não perceber. Passava a vida se escondendo. Era o que Barbara chama de alcoólatra funcional, isto é, que consegue trabalhar, tentando equacionar a bebida e o trabalho, ingerindo grandes quantidades duas ou três vezes por semana e aprontando horrores. Como de uma vez, num rodeio em Barretos, em que quis, por toda força, montar um cavalo bravo e, felizmente, foi impedida por um fotógrafo amigo. Depois, vinha a ressaca moral, quando não lembrava o que acontecera no dia anterior, nem os problemas que havia causado. “As células do teu corpo imploram por álcool. A única sensação de prazer é a da bebida. O resto da tua vida é só angústia”, descreve Barbara.

Esse é o inferno a que têm descido cada vez mais brasileiros – com um aumento significativo de mulheres. É o que revela levantamento nacional sobre o álcool divulgado pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Foram entrevistadas 4.607 pessoas com idade acima de 14 anos, em 149 municípios brasileiros. Desse total, 1.157 eram adolescentes.

A pesquisa revelou que as mulheres estão bebendo mais e com mais frequência. Nos últimos seis anos, sua proporção entre os que consomem álcool de maneira excessiva aumentou 24%, passando de 15% para 18,5%. A explicação pode estar na mudança de costumes: hoje, é normal a happy hour depois do expediente, ou o chopinho com os amigos para relaxar. Talvez por conta disso tenha havido um aumento de 31% na forma de consumo chamada de binge – a ingestão de quatro unidades ou mais de bebida, para mulheres, e de cinco unidades ou mais, para homens, em apenas duas horas, considerando como unidade uma lata de cerveja, uma dose de destilado ou uma taça de vinho.

Os dados da pesquisa mostram que, em média, houve um incremento de 20% na proporção de bebedores frequentes (uma vez por semana ou mais). Um em cinco deles consome álcool de forma abusiva e tem um comportamento compatível com dependência. O levantamento também revela que 32% dos adultos que bebem afirmam não ter conseguido parar em alguma ocasião, 8% admitem que o álcool já teve efeito prejudicial em seu trabalho e 9% relataram prejuízo à família ou ao relacionamento.

Outra pesquisa, feita no Hospital Universitário da USP, indica que, de 2002 a 2012, adolescentes e jovens de 13 a 22 anos compuseram a faixa etária que mais procurou socorro médico com intoxicação aguda por ingestão de álcool – foram 35% dos 1.370 atendimentos. O contato com bebidas alcoólicas tem sido cada vez mais precoce: aumenta a dosagem ingerida e diminui a idade do uso. Assim como nem todos os que consomem açúcar adquirem diabetes, nem todos os que ingerem álcool se tornam dependentes, mas, quanto maior a oportunidade de beber, maiores, obviamente, são as chances de a doença se manifestar.

“Traste imprestável”

Hoje há consenso em classificar a dependência do álcool não como vício, mas como doença – incurável, progressiva e fatal. Ainda há muito preconceito com relação ao assunto, e também por isso tantos doentes deixam de procurar tratamento. Na opinião do médico psiquiatra Daniel Cruz Cordeiro, do Centro de Atenção Psicossocial (Caps) do bairro paulistano do Sacomã, o alcoolismo é semelhante ao diabetes porque exige, para seu controle, a mudança de comportamento, de hábitos de vida e de atitude, e esse é o segredo do tratamento. Como doença traiçoeira, não se faz notar de imediato, e, quando aparece, o caso já é bem sério. Além disso, tem mais uma característica cruel: acomete não só o dependente, mas a família inteira. E como o próprio alcoólatra, a família adoece aos poucos, sem perceber, criando um círculo neurótico de sofrimento que se retroalimenta.

Para exemplificar, Cordeiro relata um caso real: um bom homem (o nome não importa aqui) tinha filhos e sua mulher estava grávida. Bebia de vez em quando, nos fins de semana. Um dia, perdeu o emprego e não conseguiu arrumar outro. Começou a beber todos os dias. A mulher, mal o bebê nasceu, tomou a frente e passou a sustentar a casa. Todos – família, vizinhos, amigos – elogiavam aquela mulher corajosa “que aguenta aquele traste que não presta para nada”. O marido foi se afundando na bebida e chegou, certa vez, a esquecer de buscar as crianças na escola. Foi a gota d’água: ele sentiu que havia chegado ao fundo do poço e resolveu abandonar a bebida. Procurou ajuda e foi melhorando. A mulher chegava em casa, o jantar estava pronto, as crianças já na cama, de banho tomado, o marido retomou a rotina de procurar trabalho. Parecia estar surgindo uma luz no fim do túnel, até o dia em que o rapaz abriu a geladeira e encontrou uma caixa de cervejas. Questionada, a mulher desabafou: “Eu quero meu marido bêbado de volta! Não aguento mais as crianças preferirem sua comida à minha, suas perguntas sobre por que cheguei tarde em casa, não suporto não ser mais tão necessária!”

Segundo Cordeiro, nesse caso, a mulher conseguiu, pelo menos, verbalizar seus sentimentos, o que não acontece com todo mundo que vive situação parecida. Assim, há a figura da ovelha negra, a do bonzinho, a do mártir, a do sádico e a do masoquista – e um precisa do outro para continuar a existir. É que nós, seres humanos, nos acostumamos – e nos viciamos – em qualquer coisa, até sofrimento. Por isso, “independentemente do outro, eu tenho de fazer minha mudança”, observa Cordeiro.

São muitas as histórias. Todos os dias, o jornalista Ruy Castro entornava dois litros de vodca pura, só em casa; o consumo na rua nem dava para calcular. Há 25 anos, essa era sua rotina. “Desde os 18 anos, quando comecei, sempre bebi muito. Mas percebi que a coisa estava ficando séria por volta de 1983, quando já bebia há pelo menos 15 anos”, recorda Ruy, hoje considerado também um dos maiores biógrafos brasileiros, autor de livros sobre Nelson Rodrigues, Garrincha e Carmen Miranda. No trabalho, a bebida não atrapalhava e também não ajudava. Porém, em 1986, 1987, os textos começaram a ficar sem sentido e Alice, sua mulher na época, também jornalista, precisava acertá-los. Naquele mesmo ano de 1987, Ruy havia vomitado sangue umas quatro vezes, sem deixar que Alice percebesse. Ela já tinha deixado o companheiro por causa da bebida, mas resolveu voltar para ajudá-lo a sair daquela escravidão. “Sozinho, nunca procuraria um médico. Tudo, menos ficar sem beber”, confessa ele.

Alice levou Ruy para uma clínica de recuperação, dizendo que ele deveria ficar só um mês e que depois poderia voltar a beber, se quisesse. Antes de partir, com as mãos tremendo muito, ele engoliu quatro copos de vodca pura.

Os primeiros dias internado foram de horror: tremores pelo corpo inteiro, agitação, insônia, diarreia, possibilidade de delírio, um verdadeiro pesadelo. Aos poucos, porém, os sintomas foram sendo substituídos por uma grande vontade de viver, lucidez e vigor físico, como Ruy nunca havia sentido antes. “Se, para continuar a ter aquela sensação boa, eu só precisava parar de beber, fui tentando parar a cada dia, sem nunca ter uma recaída. E estou tentando até hoje, 25 anos depois”, resume. Depois da recuperação, Alice foi embora, como é comum acontecer. Nem assim Ruy voltou aos antigos hábitos. E assume: “Bebi durante 20 anos com muito prazer, mas a vida melhorou bilhões de vezes depois que deixei o álcool”.

Médicos e psicólogos

Assim como as pessoas são diferentes, os efeitos da bebida sobre a saúde dependem do histórico médico e dos riscos individuais. E há as consequências sociais negativas, como violência, falta ao trabalho, desemprego, e os efeitos diretos sobre o indivíduo. De fato, o uso abusivo do álcool está associado a cerca de 60 tipos de doenças e lesões, separados em três categorias: causalidade direta (psicoses alcoólicas, abuso e dependência do álcool, síndrome alcoólica fetal, cirrose hepática etc.), fator contribuinte direto (câncer de boca, de orofaringe e de mama, e aborto espontâneo) e fator contribuinte indireto (acidentes automobilísticos, quedas, envenenamento, afogamento, homicídios e suicídios).

Os principais tipos de tratamento disponíveis para a dependência do álcool são médico e psicológico, por meio de grupos de autoajuda – como Alcoólicos Anônimos (AA) e Al-Anon, este destinado aos familiares – ou de comunidades terapêuticas. Alguns pacientes se beneficiam mais de determinado modelo de tratamento do que outros. A opção medicamentosa pode ser útil como coadjuvante para diminuir a vontade de beber em indivíduos que desejam vencer o problema e já estão inseridos no modelo de tratamento mais adequado a seu caso. No entanto, é preciso que haja avaliação médica para verificar a necessidade de prescrição. De qualquer maneira, o paciente, quando diagnosticado, deve contar com acompanhamento médico para assegurar o sucesso do tratamento, que varia de acordo com a progressão e a gravidade da doença.

No Brasil, o mais conhecido tratamento gratuito especializado de dependência química é oferecido pelos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps AD). Há ainda outros tipos de instituições que prestam atendimento especializado e gratuito, como os ambulatórios localizados em hospitais. Além disso, a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) disponibiliza uma central telefônica – a Viva Voz –, gratuita e aberta à população de todo o país, com orientações e informações sobre álcool e outras drogas (0800 510-0015).

Em 2012, mensalmente, perto de 2 mil pessoas, em média, procuraram os Caps AD do município de São Paulo a fim de buscar tratamento para a dependência do álcool. Em três anos, o total de atendimentos cresceu em torno de 37%. Foram 1.238 em 2010 e 1.542 em 2011. Em dezembro do ano passado, foram atendidos 1.596 dependentes de álcool nos 25 Caps existentes na capital paulista. Desse total, 18,5% eram mulheres. Na divisão por faixa etária, sete em cada dez pessoas atendidas tinham idade entre 40 e 59 anos. A psicóloga Teresa Cristina Endo, assessora da área de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas da Secretaria Municipal da Saúde, explica que o cidadão vai ao Caps diretamente, isto é, não precisa ser encaminhado. Lá, o dependente de substâncias psicoativas tem atendimento ambulatorial especializado e pode frequentar a unidade o dia todo, assistido por equipe multiprofissional, recebendo tratamento medicamentoso, psicoterapia, além de ter acesso a oficinas de artesanato.

“Ocorre um resgate da cidadania”, elucida Teresa Cristina, explicando que, a não ser em casos de intoxicação, o tratamento é preferencialmente ambulatorial, intensivo, semi-intensivo ou não intensivo, e utiliza a política de redução de danos. Doenças mentais, como a depressão ou o distúrbio bipolar, levam ao álcool. Por isso, o tratamento abrange a mente e também o físico, considerando as particularidades de cada paciente. Enfim, a ideia é tratá-lo como um todo. A psicóloga lembra que o álcool é uma droga e acompanha bem outras. O uso abusivo pode levar à dependência. Porém, não é a quantidade o mais importante, mas a relação da pessoa com o álcool: a dependência se caracteriza quando ela só pensa na substância e em como obtê-la. A pessoa necessita de motivação para superar o problema, precisa de perspectiva de vida.

Sociedade tolerante

Na visão da assessora da Secretaria da Saúde há três fatores que podem levar ao alcoolismo: problemas e contexto de vida, acesso à bebida e por fim a predisposição. A tolerância à droga aumenta com o uso e, importante, o alcoolismo atinge todas as classes sociais, homens, mulheres e pessoas de todas as idades. Para atender a todo esse público, a rede de atenção à saúde mental na cidade de São Paulo abrange também os hospitais municipais (hospitais gerais, prontos-socorros e prontos-socorros psiquiátricos) e o Centro de Convivência e Cooperativa. A prefeitura ainda estabelece convênios com hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas.

Uma abordagem para o tratamento do alcoolismo e de outras dependências é a chamada redução de danos (RD), que se contrapõe à abstinência, preconizada, por exemplo, pelos Alcoólicos Anônimos. “A RD consiste em um conjunto de estratégias destinadas a minimizar os problemas relacionados ao uso de substâncias”, explica o médico psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, professor livre-docente da Unifesp e diretor do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes da mesma escola. Se a pessoa não é dependente de álcool, mas de outra droga (cocaína, por exemplo), beber para ela não constitui problema. Por isso, a RD vai se dirigir basicamente à substância-problema (cocaína, no caso).

Segundo o psiquiatra, a política de RD não se opõe à abstinência, já que é apresentada a pessoas que não tiveram sucesso com esta última. Quer dizer: uma vez que elas não conseguem abandonar o uso da substância-problema, então vão tentar usá-la da forma menos prejudicial possível. Uma coisa, no entanto, não impede a outra: “Conheço muitos pacientes que começaram com redução de danos e, num segundo momento, optaram pela abstinência”, relata Silveira.

Ele ressalta que é preciso distinguir as diferentes modalidades de ingestão de álcool: o uso abusivo, por exemplo, se configura quando existe algum problema relacionado ao consumo, mas ainda não se instalou a dependência. Esta se caracteriza pela perda de controle do uso do álcool, quer em termos de frequência, quer de quantidade ou de contexto de uso. Por exemplo, tomar uma cerveja, ainda que seja apenas uma, durante uma aula, é considerado uma falta de controle, em razão do contexto inadequado. Já o uso recreacional é aquele em que o álcool é apenas um dos elementos de prazer para o indivíduo. Se ele faltar, a pessoa vai ficar bem. Para o dependente, por sua vez, o álcool é a principal (ou única) fonte de prazer.

Quanto ao recente aumento do consumo por jovens e mulheres, o médico e professor acredita que ele se dá muito em função de nossa sociedade ser excessivamente tolerante com relação ao álcool e excessivamente intolerante com relação às drogas ilícitas. Na visão de Dartiu Xavier, banaliza-se o consumo de álcool, estimulado pelas propagandas que enaltecem o ato de beber. Há algumas décadas, o álcool era associado à masculinidade. Hoje em dia está vinculado à ideia de emancipação, independência. É sabido que muitas mulheres acabam se tornando vítimas do alcoolismo devido a questões de estética. Elas adotam a bebida no lugar da comida, com a intenção de perder peso.

Barbara Gancia, a vibrante jornalista citada no início desta reportagem, garante que é possível dar a volta por cima. Ela cita um estudo da Marinha americana segundo o qual os ex-alcoólatras são os que mais obtêm promoções. Na opinião de Barbara, a explicação é simples: quem passou pelo alcoolismo enfrenta qualquer coisa. Ela própria, frequentadora dos AA desde 1986, vai às reuniões “para celebrar”. Ainda hoje, nas épocas piores, vai aos NA (Narcóticos Anônimos).

Um momento que ela não esquece foi quando, após ter bebido durante o almoço, apareceu no programa da Band “com o olhar caído”, como observou sua mãe. Barbara entrou em pânico. Paralelamente, Ruy Castro, seu colega na “Folha de S. Paulo”, provavelmente de caso pensado, pediu-lhe que o levasse de carro à clínica de recuperação, já que ele não dirige. Na sala de espera, foi oferecido a ela o questionário dos AA, que se preenche para saber se se é dependente ou não. Depois de responder “sim” a todas as perguntas, Barbara resolveu se internar.

“A gente bebe porque gosta. Eu achava impossível parar e que nunca mais conseguiria me divertir, sem a bebida”, recorda. Custou a sair da dependência porque pensava ser inviável ficar sem beber e acreditava que até poderia ficar sóbria, mas não serena. “Eu estava errada. Dá para levar uma vida normal e produtiva, viver muito bem – sou a prova disso”, diz. E dá um conselho para quem tem o problema: “Se você está num beco sem saída, saiba que há a possibilidade de sair, a custo zero, procurando um grupo de ajuda”.