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No ar, um sucesso de noventa anos

Foto: Diego Padgurschi/Folhapress
Foto: Diego Padgurschi/Folhapress

Em 1923 surgia, no Rio de Janeiro, a primeira emissora de rádio do Brasil

 

Por: CECILIA PRADA

No dia 7 de setembro de 1922, quando se comemorava o Centenário da Independência do Brasil, uma primeira transmissão radiofônica oficial rompeu o atraso tecnológico em que o país – muito secundário e quase desconhecido no concerto das nações de então – ainda se encontrava. Aparelhos receptores importados haviam sido distribuídos a 80 pessoas escolhidas entre autoridades civis e militares e personalidades do meio científico e cultural, visando um evento que se anunciava da maior importância: a comprovação de que seria possível também aqui estabelecer-se comunicações a distância – era o que afirmava a voz do presidente Epitácio Pessoa, vinda do recinto da Exposição Internacional da Independência, no Rio de Janeiro, em discurso em que inaugurava, dizia, “uma nova era de progresso tecnológico para a nação”.

O transmissor fora instalado no alto do Corcovado pela Westinghouse Electric Co. A companhia americana fabricara aparelhos de rádio para as tropas da Primeira Guerra Mundial e, com o término do conflito, ficara com um grande estoque parado. A solução para evitar o prejuízo tinha sido colocar uma antena no pátio da fábrica e transmitir música para os habitantes do bairro. Os aparelhos encalhados foram então comercializados. Iniciava-se assim, por volta de 1919 e informalmente, mas com capacidade de rápida expansão, a Era do Rádio – prelúdio e parte integrante da grande virada das comunicações que vivenciamos hoje em todo o seu esplendor.

Em 1922 já existiam estações de rádio com programações regulares por quase todo o mundo, incluindo países como Argentina, Canadá, União Soviética, Espanha e Dinamarca. Em outubro do mesmo ano nascia a British Broadcasting Company (BBC), em paralelo com as primeiras transmissoras em Xangai e em Cuba. Nos Estados Unidos, em 1921 já operavam quatro emissoras, mas no final de 1922 elas seriam 382.

Estávamos, como visto, um tanto atrasados. Somente um ano depois da demonstração de 1922 foi que a primeira emissora brasileira entrou em funcionamento. Há 90 anos, no dia 20 de abril de 1923, nascia assim a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, idealizada, organizada e dirigida por Edgard Roquette Pinto (1884-1954), médico, escritor, professor, antropólogo e etnólogo, membro da Academia Brasileira de Letras. Era um homem já antenado havia alguns anos no invento e que via nele grandes possibilidades: “Eis uma máquina importante para educar nosso povo”, disse, após a histórica transmissão de 1922, empenhando-se em seguida junto à administração federal para a compra dos equipamentos importados que a haviam tornado possível. Tinha razão: sua rádio continua viva e atuante até hoje, pois em 1936 ele a vendeu ao governo e ela assumiu o nome de Rádio do Ministério da Educação e Saúde, hoje Rádio MEC.

No entanto, as datas em que o mundo começou a falar e a ouvir a distância, permitindo que se começasse a pensar em “tempo acelerado” pela tecnologia, apresentam divergências enormes. É comum vermos filmes que retratam os anos 1930 e 1940 em que o rádio passa a ocupar o lugar de honra da sala de visitas. Ele é mostrado como o grande ícone que congregava as famílias, com suas músicas recheadas de estática e programas de auditório entremeados de toneladas de anúncios (A Era do Rádio, de Woody Allen), por meio do qual as pessoas recebiam, compungidas, a bênção do papa vinda diretamente do Vaticano ou pasmavam com os discursos de Mussolini (Amarcord, de Fellini).

Surpreende constatar, porém, como a inauguração dessa “era” foi dilatada em outros lugares – no documentário Roman PolanskiA Film Memoir (2011), o famoso diretor polonês fala de sua infância colhida nas terríveis peripécias da Segunda Guerra Mundial, no gueto de Varsóvia. Quando é interrogado sobre o impulso inicial de sua carreira artística, responde que ela começara quando pudera ouvir pela primeira vez, em 1946, uma transmissão: “Eu tinha 13 anos e com muito custo consegui montar um pequeno receptor de cristal de galena [já existente em 1913 em vários países]. Tive uma grande emoção quando pude ouvir a voz de um homem que chegava até mim. Corri para a casa de um vizinho, deslumbrado, dizendo para ele ouvir também, e ele dizia que não estava ouvindo nada... Soube depois que o homem era surdo”.

“Não sei ao certo”

Por essa época, o Brasil já se radiofonizara totalmente. Em virtude de sua capacidade de atingir mesmo populações analfabetas, o rádio tornou-se logo um veículo de massas e o governo autocrático de Getúlio Vargas fez dele seu principal instrumento para a propaganda e o controle político. O mesmo acontecia em outros países do mundo, como mostram os discursos transmitidos de Adolf Hitler, em uma época caracterizada pelos ditadores e logo envolvida pelas contingências da guerra.

Por outro lado, a radiodifusão representou uma abertura sem limites para fins estratégicos, sociais, educacionais e culturais, para assistência em caso de desastres e grandes catástrofes. O antecessor do rádio havia sido o telégrafo através de fios e do código Morse, o primeiro sistema de comunicação a distância, estabelecido em 1844. Nos 50 anos seguintes tinham sido resolvidos aos poucos outros problemas: em 1850 o alemão Daniel Ruhmkorff inventou o primeiro transmissor de ondas eletromagnéticas; em 1867, seu conterrâneo Siemens criou o dínamo; em 1875 Alexander Graham Bell concebeu o microfone, aperfeiçoado depois por Emil Berliner. Thomas A. Edison, enquanto trabalhava na invenção da lâmpada elétrica, começou a registrar sons em cilindros, em 1878... e assim chegamos aos anos 1890 – com a disputa, por cientistas de várias nacionalidades, pela glória de “inventor do rádio”.

Uma pequena enquete feita entre conhecidos, de formação universitária, sobre quem inventou o rádio obteve como grande maioria de respostas “não sei ao certo”, e os palpites foram para Marconi, Edison... Essa desinformação, mantida atualmente apesar de todas as provas históricas, é uma injustiça enorme cometida contra o brasileiro Roberto Landell de Moura (1861-1928), um gaúcho de gênio, que era padre e cientista. Segundo vários historiadores, suas experiências de transmissão da voz – realizadas em 1892 e 1893 nas cidades de São Paulo e de Campinas –, antecedem de pelo menos três anos as de transmissão de sinais Morse a distância (e não de transmissão de voz, como habitualmente se pensa) do italiano Guglielmo Marconi, feitas na Inglaterra, em 1895/96. Comparando-se as carreiras dos dois cientistas, o europeu e o brasileiro – como faz Magaly Prado em seu livro História do Rádio no Brasil (Editora Da Boa Prosa, 2012) –, vemos que Marconi teve a seu favor o interesse e o apoio total de governos, imprensa, financiadores e instituições científicas, o que facilitou suas descobertas e o encaminhou para a riqueza e a glória: em 1909, já recebia o Prêmio Nobel de Física, junto com o alemão Karl Ferdinand Braun, por sua contribuição às comunicações sem fio. Morreu muito rico, reconhecido, com grande trânsito e honrarias até no circuito do Vaticano, e recebeu o título de marquês.

Enquanto isso, no Brasil, o anônimo padre Landell lutava em vão pelo reconhecimento de seus inventos, amargurado e perseguido – foi desestimulado e proibido, por seus superiores eclesiásticos, de prosseguir em seus estudos, e visto pela população, dois dias depois da experiência pioneira que realizara em São Paulo, como “herege”, “louco”, “feiticeiro perigoso com parte com o diabo”, “padre renegado”. Em Campinas, onde foi pároco, encontrou um dia a porta da casa paroquial arrebentada e seu laboratório completamente destruído.

E não se tratava, absolutamente, de um amador, pois formara-se em física e química pela Universidade Gregoriana, em Roma. O mais espantoso, em seu caso, é que não foi um descuidado, como Santos-Dumont, que por falta de registro de patentes em tempo teve de deixar aos irmãos Wright a glória de “inventores da aviação”. Landell obteve três patentes por seus inventos – telefone sem fio, telégrafo sem fio, transmissor de ondas sonoras – entre 1901 e 1904, no Brasil e nos Estados Unidos, onde também residiu, nessa época. E era bastante reconhecido no exterior, devido a reportagens publicadas sobre ele em jornais americanos e europeus, e a seus artigos científicos, divulgados em órgãos especializados. Apesar disso, morreu pobre, tuberculoso, anônimo e amargurado, em Porto Alegre.

“Ave Maria”

Seja como for, o fato é que as décadas de 1930 e 1940 representaram a Era de Ouro do rádio – uma época em que “rádio” era sinônimo de comunicação, de vizinhança, de participação. Nas casas, o aparelho, em geral Telefunken, de fabricação alemã, grande e vistoso, substituía o oratório de santos em torno do qual antes se reunia a família. Entronizado na sala principal, era o elemento de ligação entre a domesticidade e o mundo lá fora, com suas notícias, boas e más, suas histórias pitorescas, os artistas consagrados, e logo mais as novelas encharcadas de lágrimas e de sangue, pingando pelo tapete da sala de jantar... Cada membro da família queria assistir a um programa diferente, às vezes havia conflitos. As avós não perdiam a voz empostada de Manoel Victor, compungido católico da “Ave Maria” vespertina, na Excelsior; os homens, o noticiário; as donas de casa e as empregadas domésticas, os xaroposos amores, as músicas sentimentais nos vozeirões de Francisco Alves, Nelson Gonçalves, Orlando Silva, ou no soprano muito alto de Dalva de Oliveira, Linda e Dircinha Batista – “nós somos as cantoras do rádio,/ levamos a vida a cantar./ De noite embalamos teu sono,/ de manhã nós vamos te acordar”.

Logo, porém, uma cornetinha sonora anunciava o “Repórter Esso”, “o primeiro a anunciar as últimas”... E para estragar a vida dos que cantavam e se divertiam, lá vinham outras notícias, algumas muito sombrias. A Era de Ouro do rádio foi também a época da Segunda Guerra Mundial, das ditaduras, do Estado Novo e do sinistro Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão criado expressamente para reprimir e censurar a cultura popular brasileira – em uma época em que ela ainda não era fagocitada obrigatoriamente pela música americana, e em que predominavam formas musicais como o choro, o samba de várias espécies, o maxixe, a marchinha, todas classificadas pelo DIP como “ritmos selvagens” que só valorizavam o “ímpeto bárbaro, o sensualismo das gentes dos morros”, deixando transparecer, para grande desgosto de uma parte da sociedade, a influência inegável dos negros.

O DIP, solícito, queria inclusive dar um status, “uma orientação severa e bem controlada” aos programas de calouros, de tanto sucesso sempre – já que não podia eliminá-los. E através deles foram surgindo, ano após ano, cantores importantes, como Elza Soares, personagem ousada: quando apareceu no programa de Ary Barroso (“Calouros em Desfile”), magérrima, malvestida e desgrenhada, ele a interpelou: “Mas de que planeta você veio, minha filha?”, e recebeu, rápido, o troco: “Do planeta Fome, seu Ary”.

Tendo como núcleo a agitada vida das estações de rádio, desenvolveu-se imediatamente uma grande rede comercial com moto próprio, formada por empresários, publicitários, artistas, roteiristas, inaugurando um ritmo absolutamente novo, formas inéditas de relacionamento e de trabalho. O ambiente foi retratado à perfeição, com incomparável humor e conhecimento “de dentro”, pelo grande escritor paulista Marcos Rey (1925-1999) em sua obra adulta, infelizmente pouquíssimo lembrada, obnubilada pelo sucesso mercadológico de seus títulos para o público juvenil. No início da carreira, pobre e com dificuldade para arranjar emprego, ele tinha de escrever diariamente uma quantidade imensa de material, de publicidade a roteiros completos de novelas e espetáculos especiais, criava programas, ao mesmo tempo em que mergulhava como repórter nos “desvarios” do submundo, destrinchando personagens pitorescos, de prostitutas e cafetões a ladrões, viciados, boêmios românticos – uma galeria memorável que povoa seus romances e livros de contos.

Durante toda a década de 1930 a rede radiofônica brasileira amplia-se e começa a interligar-se, desaguando nos macrocomplexos de comunicação que permanecem até hoje. A Rádio Nacional do Rio de Janeiro, fundada em 1936, tornou-se a líder de audiência entre o final dos anos 1930 e a primeira metade dos 1950, fazendo história com seus programas de auditório, comédias e radionovelas. A Rádio Bandeirantes, criada em 1937 em São Paulo, seria a primeira emissora a divulgar notícias durante toda a sua programação. Já a Rádio Globo, nascida em 1944, ganharia mais tarde a corrida pela popularidade. A partir de 1950, com o surgimento do primeiro canal de televisão, a TV Tupi de São Paulo, o velho rádio, como ícone da aglutinação familiar, desaparece do lugar nobre da sala e vai para o museu, substituído pelo televisor – mas subdividindo-se e multiplicando-se desde então em aparelhos de todo tipo, radinhos de cabeceira, transistores, radiorrelógios, onipresente no carro, na casa, nos bolsos, nos fones de ouvido... A variedade da programação migrou para as redes televisivas, e foi acrescida de efeitos nunca sonhados, que a cada dia, na febre das inovações tecnológicas, se ampliam.

Em plena era digital, avançando pelo século 21, apesar da fulguração das novas redes comunicativas, da expansão do acesso à internet, o rádio continua a ser, segundo estatísticas, o principal veículo de informação dos brasileiros. Em 1990 houve um marco importante para esse acesso: a criação da Rede Bandeirantes de Rádio, a primeira do Brasil a operar via satélite, com 70 emissoras FM e 60 AM em mais de 80 regiões do país. Hoje, o número de aparelhos de rádio convencionais passa de 200 milhões, além de 23,9 milhões de receptores em automóveis e do acesso por aparelhos celulares – que somam cerca de 90 milhões. Em termos percentuais, o rádio está presente em 88% das residências brasileiras, e o número das emissoras dobrou, nos últimos dez anos.

Poderíamos dizer que é um velhinho saudável esse que está completando 90 anos de existência em nosso país neste ano, com um passado glorioso em que, dentre as várias funções que executou no campo do entretenimento, do noticiário, da publicidade, da difusão da arte e da educação – apesar de outros usos impuros que dele fizeram os ditadores, os empulhadores, os sempiternos manipuladores imorais da humanidade –, cumpriu e cumpre sem dúvida, ainda hoje, o papel que dele requeria Roquette Pinto, como uma “máquina importante para educar nosso povo”.