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No meio do semiárido, um oásis

Vilmar e filhos: preferência pelas plantas nativas do sertão / Foto: Vladia Lima/Caatinga
Vilmar e filhos: preferência pelas plantas nativas do sertão / Foto: Vladia Lima/Caatinga

Por: JOSÉ PAULO BORGES

Volta e meia, as imagens estão nos noticiários da televisão: terra e pasto secos, açudes e poços vazios, gente com latas d’água na cabeça, gado morto ou mal podendo se manter em pé. A seca que começou em 2010 não dá trégua. A esperança é que não falhem as chuvas do próximo “inverno”, aguardadas com ansiedade pelo sertanejo para o período entre os meses de dezembro deste ano e abril de 2014. Até lá, na retina dos brasileiros de outras paragens, as cenas da grande estiagem vão perdurar.

Nem tudo, porém, é desolação e sofrimento na paisagem nordestina. Aqui e ali, quando menos se espera, surge uma horta que produz o ano inteiro, uma fonte de água limpinha. Na comunidade de Macambira, interior de Curaçá, cidadezinha sertaneja do norte da Bahia a 580 quilômetros de Salvador, dá gosto ver os cuidados que o agricultor Gilberto dos Santos dedica ao seu pedaço de terra. Numa região fustigada pela estiagem e onde a degradação avança caatinga adentro por causa, principalmente, do desmatamento, da erosão e das queimadas, a propriedade de Gilberto é uma ilha verde na secura do sertão. A casa, para se ter uma ideia, é cercada por pequenas hortas adubadas com o esterco de 30 cabras e bodes criados por ele. Nessas hortas, Gilberto, de 35 anos, cultiva coentro, cebolinha e beterraba. Perto da casa, o agricultor plantou alguns pés de acerola e de mamão. Quer dizer, da janela, quase ao alcance da mão, Gilberto tem o legume, o tempero e o suco para as refeições do dia a dia. Chamam a atenção também as pedras espalhadas caprichosamente em torno da casa. Elas são de diversos tamanhos, algumas bem pesadas, e o agricultor se deu o trabalho de trazê-las, numa bicicleta, de uma pedreira desativada localizada num pé de serra distante 3 quilômetros de onde mora.

Os principais cuidados de Gilberto, contudo, são com os 200 pés de umbuzeiro que ele mesmo plantou. “Em 2006, só havia por aqui aquele umbuzeiro”, aponta Gilberto na direção de uma dessas árvores nativas do sertão, cujo porte nobre e imponente se destaca a uns 200 metros da casa. “Os moradores mais antigos dizem que, quando chegaram, a árvore já estava ali. Deve ter mais de 100 anos”, afirma. “Árvore que dá de beber”, era assim que os indígenas que habitavam o semiárido chamavam o umbuzeiro, por causa de sua capacidade de armazenar até mais de mil litros de água nas raízes.

Gilberto protege os umbuzeiros ainda jovens com semicírculos de terra e pedra, em forma de meia lua, que servem tanto para reter a água no solo como para evitar a erosão. Ele sabe muito bem que toda a atenção com essas árvores é pouca. Afinal de contas, daqui a uns cinco anos, quando estiverem produzindo, serão sua principal fonte de renda. Mesmo nos períodos com pouca chuva e nas estiagens prolongadas, o umbuzeiro frutifica todos os anos. É renda garantida. Isso tanto na comercialização in natura, em feiras ou na beira da estrada, mas, principalmente, beneficiado em forma de doces, polpas, sucos e geleias em pequenas fábricas de agricultores associados em cooperativas. “Esses umbuzeiros são a minha poupança”, enfatiza, acrescentando que a água com a qual trata a plantação vem de um poço artesiano.

Ele não é um caso isolado de adaptação e convivência com a seca prolongada. Ali mesmo, em Curaçá, seus vizinhos da comunidade de Barriguda, embora não plantem quase nada há um bom tempo, por causa da estiagem, estão conseguindo tirar seu sustento criando cabras, porcos, ovelhas e galinhas. “Se a gente fosse viver só da roça estaria numa situação muito difícil, nossa sorte é a criação”, afirma o agricultor Givanildo da Silva Inácio. Segundo ele, esses pequenos animais são a principal fonte de renda das famílias da comunidade nessa época de estiagem, graças à alimentação que recebem, feita a partir de plantas nativas, como o mandacaru, a palma e o cabeça-de-frade, cactos presentes em toda a caatinga e que resistem bravamente às secas mais persistentes.

“É a nossa fartura”

Quem vê a mata seca, rasteira e cinzenta que se espalha por quilômetros e quilômetros ao redor de Barriguda, não imagina o tesouro que existe escondido no subsolo. Uma fonte d’água. É ela que faz a diferença na vida dos moradores da região. A fonte não tem dono, pertence a todos. A vazão é de mais de 700 litros por hora e a água – extraída por meio de um equipamento denominado bomba-d’água popular, que não requer o uso de energia elétrica – é utilizada tanto pelos moradores do lugar como das comunidades vizinhas. Givanildo conta que antes da bomba a água era puxada por uma corda improvisada e mal dava para matar a sede das pessoas, muito menos da criação. Mesmo um cata-vento instalado depois não resolveu o problema, porque volta e meia quebrava e vivia precisando de manutenção. A bomba chegou em 2010, por meio de um programa de abastecimento do governo da Bahia, e representou um alívio para os moradores. Afinal, além de satisfazer as necessidades da comunidade, é água suficiente para um rebanho de mais de 4 mil cabeças de cabras e bodes. “Bem ou mal temos renda, além de carne e leite para as nossas famílias. É a nossa fartura”, comemora Givanildo.

No município pernambucano de Ouricuri, a 620 quilômetros de Recife, desponta outro exemplo de que a seca não é o fim do mundo. Na Agrovila Nova Esperança, a alguns quilômetros do centro da cidade, o agricultor Adão de Jesus Oliveira, de 36 anos, sua esposa, Fabiana, e os filhos do casal, Fernando e Fernanda, provam que é possível tirar alimento e sustento da caatinga, por mais difíceis que sejam as condições do clima e sem agredir o meio ambiente. “Não existe solo improdutivo, mas a terra maltratada pelo homem”, ensina. O verbo é esse mesmo, ensinar. A experiência desenvolvida pelo agricultor e sua família nos 6,5 hectares da terra em que trabalham, perto da agrovila, e no quintal da casa em que vivem, dentro da comunidade, é referência na região. Eles recebem visitas de agricultores, de estudantes e de representantes de entidades e movimentos sociais, inclusive de outros estados. “Para sobreviver durante as secas, que são longas e quando falta tudo, é preciso estocar durante as chuvas, que são curtas, mas quando não há escassez de água, forragem nem alimentos.” Este é o “mantra” que Adão costuma entoar aos visitantes.

Cuidados com a terra e com a vegetação da caatinga; plantio em roçados que consorciam milho, feijão, sorgo, melancia e algodão; criação de caprinos, suínos, galinhas e abelhas. E o principal, nada de queimadas nem adubos químicos no solo. É assim que Adão e a família preservam a propriedade e tiram dela o sustento. O princípio de tudo foi a observação do comportamento das plantas e dos animais, e como eles reagem às diferentes estações – que no sertão são apenas duas: a das secas e a das chuvas. Resultado: não faltam árvores frutíferas como o umbu, a seriguela e o cajá, entre outras. Também há plantas forrageiras para os animais, como o sorgo e o feijão guandu. As vantagens dessa opção ecológica não demoraram. “Cerca de 90% da nossa alimentação nós mesmos produzimos. Quase não vamos ao mercado”, destaca o agricultor.

Como todos os pequenos produtores do semiárido, Adão também sente os efeitos da seca. Mas está conseguindo passar por esse período graças a técnicas que desenvolveu há alguns anos e a outras que aprendeu em treinamentos em associações e entidades, como a Caatinga, ONG de Ouricuri. Para garantir a alimentação do rebanho de ovelhas e cabras de leite, por exemplo, adota a estratégia de estocagem de forragem em dois silos: um na roça, perto de onde as ovelhas pastam, e outro no quintal da casa em que mora. Assim, consegue guardar bastante milho, sorgo em grãos e outras plantas, que são triturados e fornecidos aos animais durante a estiagem. “A silagem é a melhor forma de armazenar a forragem que alimenta a criação na seca”, diz o sertanejo.

Casa de farinha

Adão fez mais. Para aproveitar cada gota da água da barragem que serve à comunidade – que não é muita – usou a imaginação: “bolou” canteiros cercados por pneus de caminhão e colocou lona embaixo. “Isso favorece o plantio, pois a água fica só nos canteiros e não se perde na terra embaixo da lona”, explica. Nos canteiros, o agricultor só usa adubo de resíduos orgânicos, que ele mesmo prepara. Assim, durante o ano – mesmo que não chova – na mesa da família não falta pimenta, coentro, salsa, cebolinha, beterraba, alface, tudo fresquinho. “A produção é tão boa que a sobra a gente vende na feira da cidade.”

Os povoados de São João, Poço do Juá, Bonsucesso, Traíras e outros, na zona rural de Sobradinho, cidade do sertão da Bahia a 465 quilômetros de Salvador, são habitados por famílias boas de briga. Literalmente. Muitas delas foram recolocadas na área depois de expulsas violentamente de suas terras para a construção da Barragem de Sobradinho, nos anos 1970. Entregues à própria sorte, elas se ergueram num movimento que eclodiu nos municípios atingidos pelas obras da represa e com muita luta aos poucos foram readquirindo direitos e obtendo conquistas.

José Neto Silva e sua mulher, Lélia Lúcia dos Santos, orgulham-se dessas origens. Há mais de 20 anos, o casal e os filhos moram em São João, onde cultivam pequenos roçados de milho, feijão e abóbora. Mas a base de sustento da família é mesmo a criação de cabras e ovelhas em áreas coletivas da caatinga, denominadas fundo de pasto. A família não esconde que o segredo para ter um rebanho sempre produtivo está na qualidade e na quantidade da alimentação dos animais. Na forragem, José Neto usa plantas nativas resistentes às estiagens, cultivadas em sua propriedade. Bem alimentados, os animais respondem com uma boa quantidade de leite, que é transformado principalmente em queijos que são vendidos na cidade. Com a seca, a quantidade caiu bastante, mas no período de chuva Lélia e José não dão conta de vender na feira a produção, que chega a 80 quilos mensais de queijo. Por mais que o rendimento com a venda do queijo e do leite tenha variado, Lélia garante que esse pequeno negócio tem melhorado a vida da família.

Em São João, é bom lembrar, foi a luta organizada pela associação de agricultores que ajudou a comunidade a obter benefícios como cisternas e uma barragem comunitária que serve aos animais. Agora, José Neto, Lélia Lúcia e os demais moradores se empenham em conseguir a construção de uma casa de farinha comunitária para aproveitar o cultivo da mandioca na produção de alimentos sertanejos, como a goma e o beiju. “Nossa terra é boa, quando as chuvas voltarem isso aqui vai ficar uma beleza”, anima-se “Zé” Neto.

Em Serra dos Paus Doias, em Exu, cidade do legendário Luiz Gonzaga, no sertão pernambucano do Araripe, a 630 quilômetros de Recife, também há gente lutando contra a seca e obtendo alguns bons resultados. Numa pequena propriedade de 12 hectares, entre pés de macaubeiras, cambuís, murtas, goiabeiras e bananeiras, vivem Silvanete Lermen, seu marido, Vilmar, e os três filhos do casal. Há menos de dez anos, eles viram nas árvores nativas do sertão uma promessa de renda e de alimento. Hoje, com o beneficiamento da murta e do cambuí, a família praticamente vive dos frutos que a natureza oferece.

Silvanete é quem transforma tudo isso em geleia, doce e licor. Ela conta que começou a experimentar o beneficiamento a partir de experiências feitas com outras plantas frutíferas. “Quando comecei a fazer a geleia de cambuí me baseei na receita da geleia de jamelão, que tem um sabor bem parecido. Só fui dosando o açúcar para não ficar muito doce.”

Os licores, geleias e doces feitos de cambuí, murta e maracujá são comercializados em feiras, exposições e em reuniões de que o casal participa. Na hora da colheita, eles contam com o auxílio dos filhos, que ainda são pequenos, mas já sabem reconhecer o valor do cuidado com o meio ambiente. Não faz muito, a família começou a fazer o beneficiamento de uma fruta chamada calazã, apelidada por ela de “cereja do Araripe”, por causa da semelhança dos dois frutos. Geleias e doces de calazã já estão sendo produzidos. “Aqui no sertão do Araripe, graças a Deus, dá para viver mesmo com a seca”, conclui Silvanete.

Animal valioso

Um animal que se alimenta de qualquer espécie de vegetação nativa, exige pouca água, multiplica-se com facilidade e não liga para o clima. Ainda por cima, garante renda e alimentação. Numa época de escassez, como a de agora, representa uma verdadeira cultura de resistência no sertão. Estamos falando do bode. Os moradores da comunidade de Cacimba do Silva, distrito de Itamotinga, em Juazeiro no estado da Bahia, sabem muito bem o que esse animal pode dar, principalmente nestes tempos de estiagem braba. Por isso, no último final de semana de junho deste ano realizaram a II Feira de Caprinos e Ovinos. Organizado pela Associação dos Pequenos Produtores Rurais de Cacimba do Silva, o evento contou com a parceria da prefeitura de Juazeiro. Aconteceu muita coisa na ocasião: exposição de animais, palestras, apresentações culturais, degustação de carne de caprinos e ovinos e mesa redonda com o tema “A Importância da Caprinocultura Leiteira para os Pequenos Produtores no Semiárido Brasileiro”.

“A renda da comunidade está na caprinovinocultura, principalmente na área de leite, e na criação de pequenos animais no quintal”, comentou Márcio Irivan Passos, criador de caprinos e ovinos e membro da comissão de organização da feira. “A gente sabe que a seca faz parte da vida, e não adianta esconder. A comunidade de Cacimba do Silva deu um exemplo ao apresentar o que produz de melhor”, declarou, entusiasmada, a criadora Maí­ra Oliveira, que mora na comunidade de Craibeira. Foram expostas diversas raças de caprinos e ovinos criados na Bahia e também nos estados de Goiás e São Paulo. “Para ter animais produtivos, mesmo na estiagem, a escolha da raça é muito importante. Mas eu não abro mão da raça mestiça”, completou Maíra.

Em 2007, o agricultor Abelmanto Carneiro de Oliveira viajou ao Ceará, onde participou de um encontro de agricultores. Foi lá que ouviu especialistas dizerem que os anos de 2011, 2012 e mesmo o de 2013 seriam de estiagem braba, difíceis para as populações que habitam o semiárido. O recado soou como um alerta vital para o agricultor. De volta para casa, na comunidade de Mucambo, município de Riachão do Jacuípe, na Bahia, Abelmanto foi logo se preparando para garantir água e alimentos para sua família e a criação. Hoje, ele tem na propriedade de 10 hectares vários sistemas de aproveitamento da água, como cisterna calçadão (para a criação), cisterna de consumo humano, barragem subterrânea e barreiro trincheira. “Consigo armazenar quase 2 milhões de litros de água. Isso é suficiente para manter por oito meses o consumo de 55 cabeças de animais (caprinos e ovinos) e a produção das hortas, e por quatro meses o consumo da família”, relata.

Abelmanto não parou por aí. O agricultor também criou um sistema de produção de biogás, o chamado biodigestor. Aproveitando o esterco dos animais e o bagaço da cana, passou a produzir biofertilizante e também a transformar os insumos em gás. Há quase um ano, não precisa mais se preocupar com gás para cozinhar os alimentos que vão para a mesa da família.

O coordenador-geral do Instituto Regional da Pequena Agricultura Apropriada (Irpaa), José Moacir dos Santos, perdeu a conta dos milhares de quilômetros que percorreu desde 2009, no interior dos municípios de Juazeiro, Sobradinho, Sento Sé, Casa Nova, Uauá, Curaçá e Canudos, região conhecida como Território Sertão do São Francisco, no estado da Bahia. Ele está à frente do Projeto Recaatingamento, uma iniciativa da ONG Irpaa – que há mais de 20 anos atua nessa região do vale do São Francisco – com apoio do Programa Petrobras Ambiental, que está sendo implantado em comunidades desses sete municípios. Suas andanças se destinam a avaliar como está se desenvolvendo o projeto concebido, segundo ele, “com o objetivo de reverter a desertificação da caatinga, por meio de manejo sustentável dos recursos naturais e de reposição florestal”.

Quando o Projeto Recaatingamento foi lançado, há quase 4 anos, a seca ainda não havia se instalado, mas a degradação da caatinga já se espalhava por toda a região. “Essa seca é fruto dessa situação, aliada a ações humanas, como desmatamentos e queimadas desordenadas. Os estragos maiores, porém, são provocados pelos grandes projetos de irrigação, por madeireiras e pelas mineradoras, que destroem a vegetação, exterminam os animais nativos, contaminam as águas e expulsam as famílias de suas terras”, afirma Moacir.

No interior do município de Trindade, no sertão pernambucano, a 660 quilômetros de Recife, o agricultor João Batista Dias de Oliveira enxuga o suor da testa com o dorso da mão e exclama: “A quentura do sol parece que está pior!” Não é só João Batista que se queixa de mudanças no clima do sertão. Há uma percepção entre os habitantes da região de que os dias estão ficando cada vez mais quentes. No sertão do Araripe, onde João Batista vive, a derrubada da caatinga para abastecer os fornos das fábricas de gesso é uma prática comum. O gesso movimenta a economia local. As queimadas também são constantes. Elas servem para preparar o solo onde são plantadas grandes pastagens para o rebanho bovino. Sabe-se, ainda, que 30% da matriz de energia do nordeste vem da lenha, e que cerca de 90% dessa matéria-prima é obtida de forma ilegal e extraída de modo inadequado. “O homem está mexendo demais com a natureza. De 2000 para cá, as chuvas estão descontroladas. Acho que essa seca tem muito a ver com isso”, matuta João Batista.