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A procura por um novo sistema político
Por: MILU LEITE
A democracia liberal, incensada como a melhor e mais promissora forma de governo no mundo ocidental, enfrenta nos dias atuais desafios incontornáveis, confrontando economistas, filósofos, políticos e intelectuais das mais diferentes nações com uma pergunta que encontra cada vez mais eco: esse sistema ainda é viável? Assim como meio mundo, os autores de Governança Inteligente para o Século XXI (Editora Objetiva), o cientista político e editor americano Nicolas Berggruen e o investidor e filantropo alemão-americano Nathan Gardels também estão atrás de respostas. Mas soma-se aqui uma outra indagação: em que medida a lição ensinada pela China, um país comunista que pratica o capitalismo, pode servir aos países do Ocidente, sobretudo à União Europeia, mergulhada numa intrincada crise econômica, e aos Estados Unidos, o maior exemplo de democracia de consumidores que dá sinais inequívocos de desgaste?
Berggruen é presidente do Nicolas Berggruen Institute, uma organização dedicada à pesquisa e à análise das grandes questões culturais, políticas, filosóficas e sociais em âmbito mundial. Já Gardels é diretor do New Perspectives Quarterly e do Global Viewpoint Network do Los Angeles Times Institute. O instituto de Nicolas engloba três grandes projetos: Think Long Committee for California, Conselho para o Século XXI e Conselho sobre o Futuro da Europa, e foi graças a eles que os autores puderam se conectar com a nata da intelectualidade contemporânea e de pensadores oriundos de todas as partes do planeta, despontando entre eles George Yeo (ministro das Relações Exteriores de Cingapura), Francis Fukuyama (cientista político) e Robert Mundell (Nobel de Economia e pai do euro). Isso sem falar da lista de ex-presidentes (Fernando Henrique Cardoso assina um dos prefácios do livro) e de ex-primeiros-ministros (a exemplo do espanhol Felipe González, responsável pelo segundo prefácio).
Os problemas de ordem econômica enfrentados pela Europa, pelo Japão e pelos Estados Unidos; os movimentos sociais em países árabes; o crescimento da desigualdade e o aumento dos déficits públicos exigem um novo olhar sobre os modelos econômicos, políticos e sociais. As respostas que se têm dado a esses problemas estão ancoradas em modelos que não se enquadram mais à realidade da globalização estendida, com a interferência crescente das redes sociais. É preciso avaliar, por exemplo, em que medida os desequilíbrios resultam dos avanços tecnológicos e da própria globalização. É essencial considerar de modo menos “ocidentalizado” a experiência de nações como China e Cingapura. Como dizem Berggruen e Gardels, não há mais como negar, a globalização liderada pelos Estados Unidos difundiu a riqueza, mas o fez com o crescimento da desigualdade. E, se o surgimento de novas tecnologias de informação trouxe maior produtividade, a concentração de riquezas veio a reboque do esfacelamento da classe média.
Globalização 2.0
Paralelamente, o bom momento da economia chinesa desperta o interesse das nações do Ocidente. E se antes o gigante asiático era visto apenas como uma das maiores áreas rurais do planeta, hoje é impossível pensar assim ante os milhões de chineses que se deslocam cada vez em maior número para os centros urbanos. Ainda que não totalmente, a China se abre para o mundo, e sua pujança faz o tão temido vermelho de sua bandeira roubar a atenção do mundo ocidental. O Partido Comunista ainda dita as regras e as liberdades individuais se restringem ao que apregoam os seus ditames, a imprensa não é livre e a internet sofre censura. Contudo, não há como negar que ali as coisas estão dando mais certo do que em alguns outros lugares.
Com todo o cuidado, os autores enfatizam que não se trata da escolha de um modelo político-econômico em detrimento de outro, mas de levantar os pontos positivos de um e de outro a fim de encontrar uma nova via que possa ser praticada. Isso no caso do Ocidente. No do Oriente, mais especificamente no tocante aos chineses, cabe repensar a atual política que restringe as liberdades individuais e garantir espaço a uma classe média incipiente, que dá claros sinais de expansão e que, consequentemente, exigirá um novo posicionamento político e econômico dos governantes. A classe média do país de Xi Jinping logo estará clamando por maior participação nas decisões políticas, econômicas e culturais. Ou seja, tanto lá quanto aqui é necessário ponderar que “os desafios resultantes da atual mudança no poder global, aliados a um rápido avanço tecnológico, são avassaladores tanto para os poderes que ascendem quanto para os que descendem”. De acordo com os autores, todos os sistemas políticos estão de alguma forma experimentando desequilíbrios à proporção que procuram se ajustar aos sucessivos choques causados pela transição em curso entre o que eles chamam de “globalização 1.0” e “globalização 2.0”.
Qual é a melhor definição para a globalização 2.0? Berggruen e Gardels afirmam que “ela significa, acima de tudo, interdependência de identidades plurais em vez de um modelo único para todos”. Segundo eles, a complexidade da integração global intensificada, o incremento da produção e do consumo e a disseminação das mídias sociais exigem das nações novos posicionamentos. Um fracasso na busca por essas respostas levará todos para o buraco, não importa qual seja a forma de governo. É, portanto, fundamental que as respostas conduzam ao equilíbrio, mas para isso é necessário cooperação. “Tal equilíbrio pode ser chamado de ‘governança inteligente’, pela maneira como transfere poder aos cidadãos e os envolve em questões que lhes são pertinentes, enquanto procura legitimar e mesmo consentir que se delegue autoridade em níveis mais altos de complexidade”, avaliam.
Meritocracia
Mas, afinal, o que há de tão diferente na China que não seja digno de críticas negativas, já que se trata de um país dominado por um único partido político e, como se sabe, mergulhado na corrupção? O mandarinato chinês, respondem Berggruen e Gardels. E o renascimento do confucionismo. A doutrina confucionista está baseada em três preceitos: respeito aos mais velhos, regras morais rígidas e amor ao trabalho. De acordo com os autores, essa base fundamenta o modelo político-econômico da China, que prioriza a ascensão por merecimento (a meritocracia). Zhang Weiwei, um dos maiores especialistas no assunto, argumenta que “de diversas formas o sistema chinês tem maiores mecanismos de controle de responsabilidades que o sistema americano”, que é ancorado na ideia de “um indivíduo, um voto” e por isso impregnado de individualismo.
De modo simplificado, pode-se dizer que na democracia liberal (de consumo) os cidadãos fazem escolhas do ponto de vista individual (ou de classe) e por isso estão mais expostos a pressões de grupos e interesses particulares, ao passo que na meritocracia as escolhas são feitas por cidadãos preparados para pensar e agir em prol da coletividade. A alta liderança chinesa é selecionada por mérito, não por hereditariedade, e não ultrapassa dois mandatos. Pratica-se a liderança coletiva, ou seja, nenhum líder sozinho pode prevalecer se ele se desviar demais do consenso coletivo. “A seleção baseada na meritocracia é uma tradição consagrada e quem toma as decisões nos mais altos níveis são os membros da Comissão Permanente do Politburo, selecionados segundo critérios que normalmente requerem ter cumprido mandatos como governadores provinciais”, explanou Weiwei em palestra realizada em Xangai, em 2011, tendo como oponente Francis Fukuyama. Este, embora reconhecendo os pontos fortes do sistema chinês, questionou a sua sustentabilidade ao longo das próximas décadas devido à falta de “uma capacidade de prestar contas de cima para baixo”.
Os embates citados no livro de Berggruen e Gardels são muitos e, por isso mesmo, revelam ao leitor uma miríade de pontos de vista. Um dos grandes méritos dos autores é essa pluralidade culta, que, somada aos depoimentos de gente muito bem preparada, induz o leitor a reflexões profundas e urgentes sobre os caminhos escolhidos por governantes e povos. Aos brasileiros, talvez seja desestimulante a leitura do capítulo 6, todo calcado em análises de questões políticas e econômicas que interessam ao estado americano da Califórnia. Mas vale o esforço. Dali resultam avaliações que se prestam a outros centros urbanos. Em seus últimos capítulos, Governança Inteligente se dedica a expor soluções para os problemas e a sugerir modelos de governo. Não há dúvida de que qualquer abordagem universal que decorra das novas condições globais “deverá pragmaticamente acomodar diversidades e níveis variados de desenvolvimento”. A não rigidez de um modelo único é o caminho para uma colaboração harmoniosa. Pensemos no destino da Torre de Babel, lembremos do colapso da União Soviética. A história das civilizações tem demonstrado que a diversidade é inerente à natureza do homem. Respeitando essa condição, será possível encontrar uma nova via que não subestime os problemas que penalizam tanto a União Europeia quanto a Califórnia e aperfeiçoar sistemas que têm se mostrado eficazes em Cingapura e na China. A partir daí, a repercussão dessas experiências no mundo cumprirá seu papel.