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Lalá, o “rei do carnaval”
Por: HERBERT CARVALHO
No dia 13 de junho de 1963, quando se recuperava de um enfarte sofrido alguns meses antes, Lamartine Babo foi ao Golden Room do Hotel Copacabana Palace, no Rio de Janeiro, assistir ao ensaio de um musical de Carlos Machado inspirado em suas marchinhas de carnaval e que tinha por título a mais famosa delas: O Teu Cabelo Não Nega. Entrevistado para um telejornal, quis saber se a conversa iria ao ar no mesmo dia. “Hoje não, porque temos a entrevista de Tom Jobim, que chegou dos Estados Unidos”, respondeu o repórter. “Ah! Quer dizer que agora eu estou um tom abaixo?”
Foi o último de seus muitos e célebres trocadilhos. Três dias depois, sem ter chegado a ver a estreia do espetáculo, morria o humorista, radialista, ator, cantor e poeta que, de acordo com o musicólogo Ricardo Cravo Albin, foi o “mais completo e visceralmente carioca dos compositores populares que desabrocharam na Era de Ouro”. O período entre 1929 e 1945 a que se refere o autor de O Livro de Ouro da MPB (Ediouro, 2003) concentrou na mesma geração talentos da música popular brasileira como Noel Rosa, Ary Barroso e João de Barro (Braguinha), todos também parceiros de Lalá, como Lamartine Babo era chamado por seus pares no mítico Café Nice, onde se reuniam.
Músico autodidata e intuitivo, que não sabia tocar nenhum instrumento mas era capaz de reproduzir com a boca e com as mãos os acordes de uma orquestra inteira, Lamartine Babo dedicou-se durante seus quase 60 anos de vida principalmente a dois gêneros. Além das marchas – compostas não apenas para o carnaval, mas também para outras festas, como as juninas (Chegou a Hora da Fogueira e Isto É Lá com Santo Antônio, as principais, se incorporaram ao cancioneiro nacional) –, deixou inúmeros hinos, desde religiosos aos que exaltam os clubes cariocas de futebol. Perfeccionista, dizia ter deixado de fora os times paulistas por não ter encontrado uma rima adequada para Corinthians.
Dois sambas-canção de autoria de Lamartine, entretanto, são obrigatórios até hoje em rodas de seresta: No Rancho Fundo, parceria com Ary Barroso, e Serra da Boa Esperança, ambos de um lirismo associado a certa nostalgia rural, segundo o músico paulistano Luiz Tatit, que caracteriza a forma de compor do também chamado Rei do Carnaval como “simples e irreverente” e ao mesmo tempo “elaborada e imponente”. Cinco décadas após o desaparecimento do artista, Problemas Brasileiros resgata o legado daquele que “inovou todo o arcabouço literário da MPB com um nonsense insuperável”, nas palavras de Albin.
Em 1904, o prefeito Pereira Passos promoveu a demolição de 641 prédios de 21 ruas para dar lugar à Avenida Central (atual Rio Branco), com seus 33 metros de largura e 1,8 quilômetro de comprimento. Nesse mesmo ano veio ao mundo, em uma dessas vielas sombrias do Rio antigo, cujo nome original de Rua das Violas fora mudado para Teófilo Otoni, o décimo primeiro e penúltimo filho do casal de classe média Leopoldo de Azeredo Babo e Bernarda Preciosa Gonçalves de Azeredo Babo. Dono de um varejo de cigarros na Rua Uruguaiana, o patriarca não conseguiu poupar sua família das agruras da época: além de expulso do centro da cidade que ingressava na Belle Époque, nove de seus 12 filhos não atingiram a idade adulta, vitimados por doenças como a febre amarela.
Um dos três sobreviventes, Lamartine de Azeredo Babo teve a ventura extra de crescer num ambiente familiar com saraus musicais que contavam, às vezes, com a participação do compositor Ernesto Nazareth ou do poeta Catulo da Paixão Cearense. Aos 6 anos, acompanhava o pai à sala de espera dos cinemas – onde se tocava música ao vivo – e impressionava-se com as marchas entoadas nas ruas pelas bandas militares.
Foi quando começou a imitar com a boca instrumentos como o trombone e o trompete, apertando as narinas para extrair sons em surdina – talento que mais tarde impressionaria o maestro e arranjador Radamés Gnatalli: “Era um dos poucos compositores que sabiam exatamente o que queriam. Descrevia todo o arranjo, cantando a introdução, meio e fim, solfejava acordes e sugeria partes instrumentais. A gente só fazia escrever”.
Tom Mix
A veia poética revelou-se também na infância, primeiro nas quadrinhas, que fazia para oferecer de bônus durante os festejos juninos a quem lhe comprasse fogos de artifício, depois por meio do poema “O Frade que Vendia Esmolas”, que lhe garantiu a vitória no concurso literário escolar do Colégio São Bento. Adulto, publicaria dois livros de poesias cômicas, Lamartiníadas (versão épica, modernista e carnavalesca de Os Lusíadas, de Camões) e Pindaíba, que tem, entre outros, estes versos típicos de seu humor: “Economias para o carnaval,/ Calotes nas pensões, roupas fiadas,/ Cautelas de penhores às camadas/ E... destarte aparece o capital”.
No mesmo São Bento onde Noel Rosa também estudaria, arriscou a primeira composição, para provar aos colegas ser capaz de fazer uma música apenas com três notas, sol, dó e mi. Com a marca da influência dos ritmos estrangeiros, que se difundiam nas primeiras décadas do século passado pelos discos da famosa Casa Edison, o resultado foi um foxtrote intitulado Pindorama, do qual se tem apenas notícia, assim como de Torturas de Amor, valsa igualmente composta nessa época.
Aos 15 anos, compôs uma Ave Maria destinada a ser “exclusivamente” para o seu casamento. Não foi nem uma coisa nem outra: Lamartine só se casaria aos 47 anos e apenas no civil, mas os versos pedindo “Ó Maria,/ Vossos filhos protegei” teriam vida longa, incorporados ao ritual da primeira comunhão.
Outra característica de seu cosmopolitismo, além da mistura de ritmos brasileiros a levadas americanas, surgiu ainda em tenra idade por meio do time que escolheu para torcer, o América do Rio. Famoso seria seu desfile em traje de diabo quando o clube, hoje decadente, sagrou-se campeão estadual, em 1960.
No início da década de 1920 – quando sopravam os ventos transformadores da Semana de Arte Moderna e das revoltas do ciclo tenentista –, Lamartine Babo foi obrigado, diante da morte do pai, a abandonar os estudos e empregar-se como office boy da Light, empresa do setor elétrico, para ajudar no sustento da família. À noite, porém, frequentava rodas boêmias e não perdia as operetas vienenses então em voga nos teatros líricos. Durante o carnaval juntava-se a colegas de serviço no Papa Tudo, bloco de repartição que logo trocou por outro, mais organizado, o Tatu Subiu no Pau, do amigo Eduardo Souto, compositor de marchinhas e proprietário da Casa Carlos Gomes, editora de partituras. Não hesitou em sair fantasiado de bailarina, exibindo o espírito galhofeiro que já então se manifestava também nos textos humorísticos que escrevia para publicações como “Dom Quixote”, usando os pseudônimos de Frei Caneca e Tom Mix, este o ídolo do cinema mudo que atuava preferencialmente em filmes de faroeste.
Nesse meio e a partir dessas influências sua obra começa a fluir. Depois de Cibele, uma opereta que a exemplo de duas outras (Viva o Amor e Lola) jamais seria encenada, consegue emplacar uma canção na revista Aguenta, Felipe, pontapé inicial de carreira no teatro musicado, onde teria êxito paralelo àquele alcançado no carnaval. Somando essas duas vertentes na revista Os Calças-Largas, é de sua autoria a marcha-título da peça, que ridiculariza a moda boca de sino lançada na Inglaterra. Primeira composição gravada de Lalá, cai no gosto dos foliões em 1928, inaugurando a extensa galeria de suas marchinhas carnavalescas consagradas.
O teu cabelo não nega
A essa altura, Lamartine Babo já não trabalhava mais na Light, nem na companhia de seguros, segundo emprego do qual fora demitido por ter sido flagrado batucando na mesa e mordendo a língua, cacoete que se manifestava quando compunha. Consegue, no entanto, viver de suas músicas e textos, atividades a que agrega a de professor de danças de salão, favorecido por uma proverbial magreza que ele próprio ironizava com suas tiradas: “Me achava um colosso, mas não tinha colo, só osso”, “meu pijama tinha uma única listra” e “passava incólume entre os pingos de chuva”. Só perde a característica que lhe rendera tantas piadas após os 40 anos, quando engorda ao parar de fumar.
Em 1929, a partir do prestígio conseguido no meio musical e jornalístico, estreia no veículo de comunicação que dominaria com programas líderes de audiência, como “Horas Lamartinescas” e “Trem da Alegria”. “Senhor Lamartine, vá cantar no rádio que o parta”, foi a reação de um ouvinte da emissora, de acordo com o trocadilhista irremediável. Acompanhado por ninguém menos que Ary Barroso ao piano, Lalá cantava na Rádio Educadora com sua voz de falsete, contava piadas e fazia esquetes.
No ano seguinte, a Revolução de 1930 provoca profundas transformações num país que começa a deixar de ser agrário e rural para se urbanizar e industrializar. Ao espalhar tenentes pelos governos estaduais de forma a mitigar o poder das oligarquias locais, Getúlio Vargas cria as condições para o desenvolvimento de um mercado interno de dimensões nacionais, inclusive no que diz respeito à indústria cultural. Impulsionado pelo rádio, pelos discos de gravação elétrica e pelo cinema falado, o carnaval se transforma na grande festa nacional e em símbolo de brasilidade, ao lado do futebol. Tudo isso fará da década que começa o período mais fértil da carreira de Lamartine Babo, que logo coloca a mais famosa de suas marchas como instrumento de fixação da sensual mulata como o protótipo de uma sociedade mestiça, em contraposição às ideias eugenistas que enxergavam a miscigenação como um perigo.
Enquanto Pedro Ernesto, interventor no Distrito Federal, oficializa o carnaval carioca estabelecendo os formatos de blocos, ranchos, cordões, corso e bailes de sociedades, a profusão de ritmos presente nos primórdios dessa festa popular se afunila para dois gêneros principais: o samba e a marcha. Esta evoluíra no Brasil, segundo Mário de Andrade em seu Dicionário Musical Brasileiro, de simples acompanhamento de passos militares a dança, subdividindo-se em marcha-rancho e marcha de salão.
Embora já existisse na década anterior com características definidas pela fórmula introdução instrumental/estrofe/refrão, a marchinha carnavalesca se consolida em 1932, a partir do lançamento de O Teu Cabelo Não Nega, composição que tem uma história intrincada. Em sua origem, tratava-se de um frevo de autoria dos irmãos pernambucanos Raul e João Valença, que a gravadora Victor considerou excessivamente regional. Contratado do selo para melhorar canções dos outros, uma de suas especialidades, Lamartine mexeu no ritmo, acrescentou a contagiante introdução, trocou o título (que era Mulata) e boa parte da letra. Versos pobres (“Tu nunca morre de fome,/ que os home/ te dá sapato de sarto/ bem arto/ pra tu abalança o gererê”) viraram esta maravilha criativa que até hoje se canta nos salões: “Quem te inventou,/ meu pancadão,/ teve uma consagração./ A Lua te invejando fez careta/ porque, mulata, tu não és deste planeta”. Outras partes da letra certamente atrairiam a ira das atuais patrulhas do politicamente correto: “És mulata na cor,/ Mas como a cor não pega, mulata,/ Mulata, eu quero o teu amor” seria acoimada de racista e certamente de machista o anúncio de que “fui nomeado teu tenente interventor”.
Na época, porém, a polêmica foi outra: a gravação de Castro Barbosa omitia, por culpa da gravadora, a coautoria dos irmãos Valença, o que só foi corrigido por ação judicial de grande repercussão na imprensa. Não tão famosas como essa, são da mesma fase outras marchinhas célebres de Lalá: Linda Morena, Moleque Indigesto e A.E.I.O.U, esta em parceria com Noel Rosa. Com Braguinha – o outro grande bamba do gênero – compôs Cantores do Rádio, que Carlos Diegues incluiu na trilha sonora de seu filme Quando o Carnaval Chegar, de 1972. Na visão de Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, autores de A Canção no Tempo – 85 Anos de Músicas Brasileiras (Editora 34), a partir do sucesso de O Teu Cabelo Não Nega a marchinha obteve “certa supremacia sobre o samba no repertório carnavalesco, que durou até o início dos 1940”.
Duas outras composições dos anos 1930 atestam o pioneirismo de Lamartine, antecipando tendências e movimentos que eclodiriam muito depois. Em Canção para Inglês Ver ele satiriza pela primeira vez a eterna mania de usar entre nós palavras e expressões estrangeiras, construindo rimas hilárias do tipo “I love you” com “Itapiru” e “Independence day” com “me estrepei”. A blague poliglota lamartinesca teria seguidores no passado distante – Assis Valente e seu Good-Bye, por exemplo – e no recente, como João Nogueira e Zeca Baleiro, autores, respectivamente, de Eu Não Falo Gringo e Samba do Approach.
Já História do Brasil é citada por Cravo Albin como “verdadeiro painel surrealista e premonitoriamente tropicalista”. Após perguntar “quem foi que inventou o Brasil” e responder que “foi seu Cabral, dois meses depois do carnaval”, ele bagunça a historiografia pátria para resumir os séculos posteriores: “Ceci amou Peri,/ Peri beijou Ceci,/ Ao som do Guarani./ Do Guarani ao Guaraná,/ Surgiu a feijoada/ E depois o Parati”. Estava aberto o caminho poético/popular do absurdo que Stanislaw Ponte Preta trilhou mais tarde com o Samba do Crioulo Doido.
Fla-Flu
Tão rica quanto a vertente carnavalesca, embora menos conhecida, é sua veia lírica, que tem como ponto de partida No Rancho Fundo, música que originalmente exibia, no lugar dos versos imortalizados no panteão de nosso cancioneiro, estes outros: “Na Grota Funda,/ na virada da montanha,/ só se conta uma façanha/ do mulato da Raimunda”. Com a concordância do autor, Ary Barroso, também aqui Lalá meteu sua colher para criar não apenas uma, mas duas obras-primas. A grota virou o rancho fundo nostálgico lá do fim do mundo e Na Virada da Montanha outro sucesso com a assinatura de ambos.
De sua exclusiva lavra é Serra da Boa Esperança, samba-canção gravado originalmente por Francisco Alves e que, na década de 1980, recebeu interpretações renovadoras em versão instrumental – de Cesar Camargo Mariano e Wagner Tiso – e vocal, de Eduardo Dusek. Outro enredo curioso explica como a música surgiu: certa ocasião o compositor recebeu carta de uma fã da pequena cidade mineira de Dores da Boa Esperança. Alentada correspondência foi trocada entre ambos até que, em visita à missivista, descobriu que as mensagens, na verdade, eram escritas por um dentista. Para não perder a viagem, decidiu homenagear a bela paisagem local.
A obra musical de Lalá se completa com os hinos, que produziu para finalidades diversas. Incentivado pelos frades beneditinos, idealizou a princípio peças religiosas, como o Hino do Jubileu Episcopal. Ainda nos anos 1930, após a consagração com as marchinhas, concebeu um projeto ambicioso, de criar um hino para todos os carnavais do futuro. O Hino do Carnaval Brasileiro, entretanto, sobreviveu em gravações bem mais que na memória popular.
Destino oposto estava reservado aos hinos futebolísticos, surgidos na década de 1940 no programa radiofônico “O Trem da Alegria”, comandado pelo Trio de Osso, assim chamado por causa da magreza de seus integrantes, Iara Salles e Héber de Boscoli, além de Lamartine. Desafiado a compor os hinos dos clubes, começou pelo seu América: “Hei de torcer até morrer,/ Pois a torcida americana é toda assim,/ A começar por mim”. Para os dois grandes rivais do futebol carioca compôs a trilha sonora dos embates conhecidos resumidamente como Fla-Flu: o brado “uma vez Flamengo, sempre Flamengo” é rebatido pelos torcedores do Fluminense com “Sou tricolor de coração, sou do clube tantas vezes campeão”.
Solitário até 1951, casa-se nesse ano com Maria José Barroso, que conhecera num hospital de Petrópolis quando animava doentes cantando e contando piadas, em trabalho voluntário. Deixa, assim, o comando do Clube dos Solteirões, que acumulava com a presidência da União Brasileira dos Compositores.
Recordista de caricaturas, que lhe dedicaram Nássara, J. Carlos e Lan, entre outros, tornou-se imortal da Academia Brasileira de Letras de Músicas, o que não escapou de sua verve, pois dizia pertencer à Academia de Letras Promissórias. Suas últimas composições foram Os Rouxinóis, de 1958, e Ressurreição dos Velhos Carnavais, de 1961.
Homenageado nos anos 1980 pela escola de samba Imperatriz Leopoldinense com o enredo “Só dá Lalá”, virou espetáculo teatral no século 21: de autoria do diretor Antunes Filho, a peça Lamartine Babo permitiu ao público do Sesc de São Paulo matar a saudade de suas marchinhas.