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“Não senti o tempo passar”

Tomie Ohtake / Foto: Zanone Fraissat/Folhapress
Tomie Ohtake / Foto: Zanone Fraissat/Folhapress

Por: CECILIA PRADA

Às vésperas de comemorar o centenário de seu nascimento – no dia 21 de novembro próximo –, a artista nipo-brasileira Tomie Ohtake mostra-se tão animada e ativa como sempre, entregue a seus trabalhos de pintora e escultora. Mulher de poucas palavras, que soube transmitir em suas obras um temperamento rigoroso voltado à gestualidade essencial, ela conseguiu ocupar, ao longo de uma carreira de 60 anos, lugar dos mais destacados no cenário artístico brasileiro. Como diz um de seus principais críticos, Paulo Herkenhoff, “não há pintura brasileira sem Tomie Ohtake”.

Como exemplo de longevidade, Tomie ilustra uma vida que, segundo a classificação dos especialistas, foi baseada na mentalidade, em vez de ser apenas expressão da vitalidade – como acontece com a maioria das pessoas. Se nesta última categoria estão as que têm um número maior de restrições ao envelhecimento, pela dependência aos aspectos físicos e biológicos, o desenvolvimento da mentalidade das incluídas na primeira categoria as torna capazes de apresentar experiências de culminância de vida na idade mais avançada, atingindo uma otimização de sua capacidade criativa. Como aconteceu com Picasso, Elias Canetti, Goethe, Goya, Borges, Chaplin, Verdi, ou com grandes regentes como Toscanini e Paderewski; com artistas como Pablo Casals e Magda Tagliaferro, ou, mais recentemente e entre nós, com Niemeyer, Barbosa Lima Sobrinho, Roberto Marinho, Dercy Gonçalves e Dona Canô. “É engraçado”, costuma dizer a suave e sorridente Tomie Ohtake, “eu nunca senti os anos passarem.”

Em sua casa de concreto, construída pelo filho arquiteto Ruy Ohtake, no bairro do Campo Belo, em São Paulo, a artista mantém uma rotina saudável, muito zen, trabalhando e lendo muito, zelando pelo seu jardim, à la Burle Marx , e alimentando seus pássaros. Após uma cirurgia na coluna, aos 93 anos, Tomie se movimenta sobre uma cadeira de rodas e pouco sai de casa, mas continua ativa, sendo auxiliada na confecção de seus quadros maiores, há 14 anos, por Futoshi Yoshizawa, um pintor japonês.

O Instituto Tomie Ohtake, importante centro cultural paulistano inaugurado em 2001, está realizando ao longo deste ano exposições que destacam as várias fases da carreira da talentosa artista plástica – dos primeiros quadros figurativos do início dos anos de 1950 à opção abstracionista, em seus vários aspectos: pinturas, serigrafias, litografias, gravuras e esculturas. Em galerias particulares, como a de Nara Roesler, promovem-se também exposições de Tomie, que, naturalizada brasileira em 1968, soube harmonizar o legado das tradições pictóricas do Oriente com a exuberância de cores e energia da nova pátria. E que, nas duas últimas décadas, tem se tornado presença constante nos espaços públicos, tanto na capital paulista quanto em outras cidades brasileiras, por meio de seus enormes painéis coloridos e suas monumentais esculturas.

Nascida em Kyoto (Japão), em 21 de novembro de 1913, Tomie Nakakubo foi educada nos moldes estritamente nipônicos, sob um regime de submissão e inferioridade feminina, mas teve estudos da arte da caligrafia e do desenho nos cursos primário e secundário. Quando adolescente, já se interessava pela pintura, desenhava e colecionava catálogos de exposições – mas quando, filha caçula e única mulher, disse ao pai que gostaria de ser artista, recebeu um enérgico “não”. Deveria seguir apenas o destino obrigatório para as mulheres: casar, ter filhos, usar lindos quimonos e dedicar-se à cerimônia do chá. Tomie não tinha como prever que o futuro, felizmente, lhe reservara a glória de se tornar uma artista importante em um país para ela desconhecido, situado nos antípodas de sua pátria.

Ira xenófoba

A artista plástica centenária veio para o Brasil em 1936, aos 23 anos, acompanhada de um irmão, que, no entanto, logo foi recrutado para lutar na guerra contra a China e teve de voltar ao Japão, morrendo em batalha. Mas a jovem, que logo ao chegar se apaixonara pelo engenheiro agrônomo Ushio Ohtake, “que era muito boa pessoa e bonito”, como diz, tinha outro irmão trabalhando em São Paulo e, diante disso, preferiu permanecer no Brasil. Casou-se logo – um casamento de muito amor, que durou 41 anos, até a morte do marido, em 1977. Teve dois filhos, Ruy e Ricardo, aos quais foi sempre muito dedicada. Como diz Ricardo, que hoje é o diretor e organizador do Instituto Tomie Ohtake, “tudo o que ela fazia era bem feito. Cozinhava, costurava e fazia tricô como ninguém”.

Mas, se até os 39 anos Tomie levou a vida tranquila e rotineira de uma mera dona de casa, sua atitude não representou, certamente, apenas uma opção indivi­dual – é preciso não esquecer que, de todos os contingentes de imigrantes, o grupo japonês, que aqui chegou somente a partir de 1908, foi sempre o mais discriminado, justamente pelas grandes dificuldades de entrosamento de seus aspectos culturais inteiramente exóticos para o conjunto dos costumes brasileiros, já por essa época enriquecidos com a chegada dos imigrantes europeus. Donde o seu isolamento e a formação de “núcleos” de colonos que tentavam manter, no trópico, as características da educação, da língua e dos hábitos japoneses. Tais núcleos, mal aceitos pelas autoridades brasileiras desde a década de 1920, com o autoritarismo fascista da época de Vargas passaram a ser alvo de uma verdadeira ira xenófoba e vistos como “quistos” a serem exterminados – situação que atingiu um auge de exasperação durante os anos da Segunda Guerra Mundial, principalmente depois da entrada do Brasil no conflito, em 1942.

Trinta anos após a chegada da primeira leva de imigrantes, a colônia estava muito bem estabelecida, tanto no interior – os primeiros japoneses vieram para as fazendas de café – como nos centros urbanos, principalmente na cidade de São Paulo. Em pouco tempo a maioria deles havia formado pecúlio, adquirido terras e propriedades urbanas, e seus descendentes, já de cidadania brasileira, cursavam faculdades, exerciam ofícios vários, totalmente aculturados – em um esforço consciente de integração de um grande número de famílias, que inclusive os batizavam e registravam com prenomes brasileiros, como faria Tomie com seus filhos, que foram educados em escolas católicas.

Todavia, a política de nacionalização forçada do governo Vargas e de encorajamento ao racismo antinipônico acabou chegando à violência: já em 1942, por duas vezes, o bairro japonês da Liberdade (ironicamente), na capital paulista, foi invadido pela polícia e ocorreram expulsões em massa de residentes. Em julho de 1943, uma terceira operação contra os “inimigos” foi realizada no litoral paulista, e, em questão de dias, 4 mil japoneses embarcaram para a região noroeste do estado. Simultânea ao congelamento de todos os bens dos cidadãos provenientes dos países do Eixo (uma medida que durou cinco anos), foi decretada a proibição de falar línguas estrangeiras e até de conservar documentos ou livros escritos nos seus idiomas.

Desde a década de 1920, os elementos culturais de ambas as culturas já apresentavam um feliz entrosamento, principalmente no campo das artes plásticas. Uma corrente original, “nipo-brasileira”, desligada dos cânones do modernismo de primeira geração, começava a surgir com uma riqueza expressiva forte, um ímpeto que a faria chegar até nossos dias. Como diz o crítico Paulo Herkenhoff: “A imigração japonesa para o Brasil nas primeiras décadas do século 20 iria necessariamente ampliar a pauta formadora da arte do país. Já não mais por exotismo como influência europeia de japonaiserie surgida em consequência do período Meiji, mas pelo encontro fecundador do ambiente artístico local com esse novo aporte. Instaura-se uma nova etapa no processo de hibridização em que a cultura do Brasil se formula agora também por sua origem nipônica”.

Paisagens de rua

No decorrer da década de 1930 vieram para o Brasil e aqui se radicaram artistas que já haviam iniciado ou mesmo concluído sua formação no Japão, tais como Massao Okinaka, Hajime Higaki, Walter Shigeto Tanaka e Yuji Tamaki. Viam-se motivados a pintar pela riqueza paisagística do ambiente, pela exuberância da vida ao seu redor, pela vibração das cores tropicais, mas se ressentiam da falta de identificação com as vanguardas europeias, e se autodefiniam por uma expressão cunhada por Hajime Higaki como “os fora do comum” – isto é, desligados do enquadramento sumário do tipo “modernistas versus acadêmicos” que caracterizava o período.

Em 1935 foi fundado o Grupo Seibi (Seibi-kai), que logo se ligou aos artistas descendentes de outros grupos de imigrantes, como os do Grupo Santa Helena, constituído informalmente em meados dos anos 1930 por pintores como Mário Zanini, Fulvio Pennacchi, Alfredo Volpi e Francisco Rebolo. Participavam de sessões de desenho de modelo-vivo e organizavam excursões em conjunto para pintar paisagens da periferia de São Paulo e do interior. Partilhavam algumas escolhas temáticas (paisagens e naturezas-mortas, retratos) e algumas técnicas formais. Mas, como enfatiza a pesquisadora Cecília França Lourenço (Vida e Arte dos Japoneses no Brasil), enquanto a outros pintores ditos “acadêmicos” parecia “faltar coragem ante as variações luminosas, cromáticas e tonais”, artistas como Higaki, Handa, Takaoka, Tamaki buscavam uma comunhão cósmica, “com um resultado mais individualizado, solto e vivaz”.

Durante o período da guerra, porém, o Grupo Seibi foi obrigado a paralisar as suas atividades, embora alguns artistas ainda mantivessem contatos discretos entre si e procurassem expor seus quadros sempre que possível. Reativado em 1947, o Seibi-kai se fortaleceria e alcançaria expressão máxima durante os anos 1950/1960. Foi quando os abstracionistas Manabu Mabe e Tomie Ohtake se juntaram ao grupo, e logo se destacariam nas suas exposições.

No pós-guerra, a jovem que guardara dentro de si o interesse pelas artes começou a frequentar as exposições e poucos anos mais tarde, em 1952, já estava tomando aulas de pintura com Keisuke Sugano, que passou pouco tempo no Brasil. Tomie conta em seu português sincopado que ali acabou a sua timidez e ela se entregou de vez à arte, começando a trabalhar com temas figurativos e paisagens das ruas do bairro da Mooca, onde residia. Infelizmente quase todas as suas obras desse período se perderam em uma das grandes inundações sofridas pela capital paulista. Mais adiante, porém, estaria firmando seu estilo abstracionista, iniciando uma permanente busca pela conciliação formas/cores.

“Nasci em uma casa abstrata. O ambiente era bem limpo, bem simples, somente num canto um objeto e uma flor. Essa atmosfera estimulava o pensamento abstrato, a experiência profunda”, diz a artista da formação inconsciente que ia absorvendo ainda na sua cidade natal, na infância. Herkenhoff observa que “Tomie indica com clareza que seu inconsciente ótico é despojado, rigoroso e inde­pendente em sua relação com a forma”.

Mas ela também conta a revelação da cor que teve, há 76 anos, ao desembarcar do navio que a trouxera, após 40 dias de viagem, para a exuberante terra tropical que seria sua nova pátria. “O Brasil tem sol muito claro. Quando desci as escadas do navio, olhei para o céu e senti cheiro de amarelo. Ali, gostei do Brasil”, diz Tomie.

“A arte de Tomie nunca foi muito expansiva, excessivamente lírica”, sugere o crítico Frederico Morais. “É contida, nipônica. A pintura dela é como ela mesma: de poucas palavras.” E ela própria, nas raras vezes em que se manifestou sobre seu estilo de pintura, afirmou: “Eu nunca pintei com o emocional. Sempre pintei mais friamente. É sempre colocando camada, camada, camada. Colocando muitas cores, camada, camada até chegar onde eu quero. O gesto era bem mais calmo, caía sempre sobre a tela e seguia uma direção que era mais mental”. Em depoimento publicado no catálogo do 15o Salão de Campinas, de 1975, Tomie salienta que sua obra é ocidental, porém sofre grande influência japonesa. “É reflexo de minha formação. Essa influência se verifica na procura de síntese: poucos elementos devem dizer muita coisa. Na poesia haicai, por exemplo, fala-se do mundo em 17 sílabas. Sendo poucos os elementos, eles devem ser muito precisos, tanto na forma quanto nas cores e nas relações”, diz.

“Pinturas cegas”

Esse “pensamento interior” da pintura, formado segundo a tradição reaberta por Kandinsky na modernidade, foi explicado por Merleau-Ponty: “A visão não é um certo modo do pensamento ou a presença em si: é um meio que me é dado de estar ausente de mim mesmo, de assistir de dentro à fissão do Ser, no fim da qual eu me fecho sobre mim”. E serviu para Tomie como princípio básico de uma de suas mais interessantes experiências: uma série de 40 quadros de “pinturas cegas” realizadas (com os olhos vendados) entre 1958 e 1962, que permaneceram desconhecidas do público até 2011, quando foram expostas no Instituto Tomie Ohtake.

Em livro de 2012, dedicado especialmente a essa série de pinturas, Herkenhoff diz que o pincel de Tomie “espalha olhar”. Porque o desafio que ela impôs à sua pintura foi o de “deslocar a questão fisiológica da cegueira e do punctum caecum para uma incursão para além daquilo que se entendia como limites da pintura”. Feita à escuras, sua pintura seria, então “a necessária entrada na caverna de Platão para experimentar a sombra, o obnubilamento mental e a luz”. O crítico cita também depoimentos de Mário Pedrosa, outro especialista famoso dos anos 1950/1960, orientador de Tomie para a leitura de Merleau-Ponty “que estabeleceria, no tempo das pinturas cegas, afinidades com a dimensão fenomenológica do objeto neoconcreto”.

Além disso, Pedrosa (1900-1981), que passara no Japão um longo período estudando a possibilidade de integração da cultura oriental com a ocidental, dedicou-se, após 1958, a divulgar no Brasil a filosofia zen, que se tornaria um dos elementos característicos da pintura de Tomie Ohtake. Ela valoriza, no gesto pictórico, o poder de eximi-lo de qualquer intenção que não seja a sua pura ocorrência. Em artigo para o “Jornal do Brasil”, em 1961, Pedrosa analisa em profundidade todos os aspectos da obra de Tomie e conclui dizendo que “ela atinge um nível de integração raro na pintura brasileira atual, pela elevação conceptiva, sutileza rítmica, retenção e economia de meios e o ímpeto, o arrebatamento dos espaços criados”.

Como trajetória integral, a artista tem pautado sua obra com o desafio de conciliar sabedoria tradicional e experiência constante, rebuscada, do sujeito moderno. Encaminhando-se para a abstração informal, foi passando por períodos diversamente constituídos, da pintura à serigrafia, à litografia e à gravura nos anos 1970, em trabalhos sóbrios, de sensível redução cromática, mas, como salienta Frederico Morais, “nunca chegou à secura minimalista, da mesma maneira como apenas tangenciou o informalismo de seus conterrâneos japoneses no Brasil, sem resvalar para o vale-tudo tachista”. No período seguinte, já com a mestria das formas elaboradas, Tomie envereda pela busca das cores fortes, à maneira do seu pintor predileto, o russo-americano Mark Rothko (1903-1970), grande nome do “expressionismo abstrato”. É toda a sua sensualidade que aflora, que se manifesta na matéria e na cor – a mocinha que se deslumbrara com o amarelo do Brasil, em 1936, espalha por painéis de mágica coloração, em tons fortes, laranja, manchas azuis e verdes vibrantes, magenta, sua vivência plena do trópico.

A partir dos anos 1970, ela passa a se dedicar, também, à escultura, que define simplesmente como “uma espécie de desenho no ar”. Cada vez mais ousada, trabalhando nas últimas décadas ardua­mente, pois chega a pintar dois ou três quadros ao mesmo tempo, Tomie ainda se vê envolvida com a criação de obras de integração arquitetônica, com grandes formas metálicas nas avenidas Paulista, Berrini e 23 de Maio, e que, como os grandes painéis de cores brilhantes presentes na estação de metrô Consolação e em outros pontos, enfeitam a capital paulista e também algumas outras cidades do interior e de outros estados. Entre 2009 e 2010, suas esculturas chegaram também ao Japão e podem ser vistas em Tóquio e em Okinawa.

Considerada hoje “a primeira-dama das artes plásticas brasileiras”, com suas imensas listagens de exposições nacionais e internacionais, prêmios e honrarias (como a Ordem de Rio Branco, recebida em 1988), Tomie vive sua culminância de vida operosa e iluminada. E nos lega, conforme diz Frederico Morais, “formas precisas e nítidas, que nos emocionam como certas manhãs de sol, muito claras, quando todas as coisas parecem adquirir o mais perfeito equilíbrio, como a luminosidade calma e macia de certas tardes outonais, como a inteireza da pedra, da onda, do silêncio”.