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Pré-sal, potencial em profundidade

O caminho é longo e há muitos prós e contras, mas o ouro negro está lá

CARLOS JULIANO BARROS

Quando a fabulosa descoberta veio à tona, em 2007, uma série de projeções foram traçadas. Já se sabia, porém, que o ouro negro escondido nas profundezas do oceano Atlântico tem tudo para transformar o país num dos principais produtores mundiais de petróleo e, de quebra, trazer riqueza suficiente para resolver os alarmantes problemas sociais do Brasil.

De fato, os números do pré-sal impressionam. Apesar de ainda não se conhecer com precisão o volume total das reservas, estima-se que na porção marítima compreendida entre Santa Catarina e Espírito Santo, uma faixa de 800 quilômetros de comprimento e 200 de largura, existam, intocados, em torno de 80 bilhões de barris de petróleo. A título de comparação, as reservas dos Estados Unidos – o maior consumidor mundial de combustíveis fósseis – não passam de 30 bilhões de barris.

Inegavelmente, as perspectivas são bastante alentadoras. “A indústria do petróleo é importante para o país por duas características: primeiro, porque os investimentos são muito altos, e, segundo, porque tem o dom de fomentar a capilaridade na cadeia produtiva”, observa Alfredo Renault, superintendente da Organização Nacional da Indústria do Petróleo (Onip) – entidade que reúne empresas privadas e órgãos do governo em torno da formulação de políticas públicas para o setor. De acordo com ele, ganham os setores metalomecânico, de eletroeletrônica e de bens de capital em geral, para citar apenas três exemplos. “Temos uma garantia de demanda muito forte para os próximos dez anos, não só em termos de equipamentos, serviços, como também de mão de obra”, acrescenta Renault. A Onip calcula que para arrancar o petróleo das camadas mais profundas do subsolo oceânico, ao longo da próxima década, serão feitos investimentos da ordem de US$ 400 bilhões e criados 420 mil novos empregos.

Por enquanto, o pré-sal ainda responde por apenas 5% da produção nacional de petróleo, segundo a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Até 2016, no entanto, o sonho do governo é ver essa participação saltar para 30%. Tanta euforia baseia-se em dados promissores: dos nove poços que já se encontram em atividade, sete figuram na lista dos 30 mais produtivos. Apesar disso, há quem duvide que a meta seja atingida em tão pouco tempo. “Acho que há aqui um pouco de otimismo”, pondera Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura (Cbie). “A própria Petrobras já tratou de reduzir a [previsão] de oferta de petróleo antes estimada até 2020”, diz.

O papel da estatal é primordial para o sucesso da empreitada. Ela vai ser a operadora de todos os campos do pré-sal que serão leiloados daqui para a frente – mesmo daqueles em que ela vier a formar consórcios com outras empresas. É consenso comum que antes da ascensão de Maria das Graças Foster ao comando da Petrobras, em fevereiro deste ano, a atuação da petroleira estava muito mais comprometida com interesses políticos partidários que com premissas de gestão e eficiência. Felizmente, as mudanças já são visíveis.

A redução das estimativas de produção, conforme depoimento de Adriano Pires, já é um dos pilares do “choque de realidade” que Maria das Graças vem implementando à frente da companhia. Se antes a Petrobras trabalhava com a expectativa de alcançar 2016 com a produção de 3 milhões de barris por dia, agora se fala em 2,5 milhões. Essa revisão no plano de negócios, contudo, não tirou do pré-sal a condição de prioridade absoluta. Nos próximos quatro anos, os projetos na área irão receber a metade do desembolso de US$ 43,7 bilhões programado pela petrolífera para a produção de gás e petróleo.

“No início, o pré-sal foi muito power point e pouco investimento”, comenta Jorge Ramos, presidente da sede sul-americana da Sociedade de Automação e Instrumentação de Sistemas (ISA, na sigla em inglês), entidade que congrega engenheiros de todo o mundo. Segundo ele, os recursos apareciam no discurso, mas não na efetivação dos projetos. “Isso acabou rendendo certa falta de credibilidade à Petrobras”, diz.

Marco regulatório

A descoberta do pré-sal precipitou mudanças importantes na legislação que rege a exploração e a produção de gás e de petróleo no Brasil. Essa é uma das questões mais relevantes – senão a maior delas – em torno do debate sobre os benefícios que as gigantescas reservas depositadas quilômetros abaixo do oceano poderão trazer ao país.

Para compreender o que isso representa é preciso voltar a 1998. Naquele ano, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, então presidente da República, quebrou o monopólio da Petrobras e deu a oportunidade a outras empresas de também explorar o petróleo brasileiro, com a criação do chamado “regime de concessão”. As companhias interessadas passaram, então, a participar de leilões organizados pela ANP, fazendo lances pelo direito de vasculhar áreas (blocos) potencialmente ricas em petróleo e assumindo o risco pelo investimento. Em outras palavras, as empresas pagavam antecipadamente pela concessão, mas ficavam com toda a matéria-prima que por acaso viessem a encontrar.

Já em 2010, sob a euforia ufanista criada pelas novas descobertas e que prometia revolucionar o destino do país, o governo Lula instaurou o “regime de partilha”. O novo marco regulatório, todavia, não altera uma vírgula dos antigos contratos de concessão, que respondem por 28% de todo o pré-sal. O modelo de partilha prevê a realização de leilões e tem regras diferentes em que serão consideradas vencedoras não as empresas que desembolsem mais dinheiro no ato, mas aquelas que ofereçam ao governo a maior fatia do petróleo que vier a ser retirado das profundezas.

Desde 2008, porém, a ANP não organiza novos leilões. “Todos os investimentos feitos até agora estão vinculados aos contratos de concessão porque ainda não tivemos nenhum leilão sob os contratos de partilha”, explica Alfredo Renault, superintendente da Onip. Dessa maneira, tem restado às petroleiras estrangeiras desejosas de investir no pré-sal a compra de participações de empresas que já detêm concessões. A estatal chinesa Sinopec, por exemplo, adquiriu ativos da espanhola Repsol e neste ano planeja aplicar US$ 1 bilhão para explorar blocos na bacia de Campos.

O regime de partilha também alçou a Petrobras à condição de operadora por excelência no pré-sal. Em outras palavras, é ela que vai retirar o petróleo do fundo do mar. Além disso, a estatal deverá assumir, obrigatoriamente, pelo menos 30% de participação nos consórcios que vencerem os leilões. A legislação permite ainda que ela seja a única responsável pela exploração de alguns blocos considerados estratégicos pelo governo – uma forma de garantir a “soberania nacional”.

A verdade é que a criação do marco regulatório agradou a alguns e desagradou a outros. O novo regime colocou mais lenha na fogueira do debate entre os que criticam e os que defendem a ingerência estatal no setor de gás e de petróleo. Adriano Pires, diretor do Cbie, é um dos que torcem o nariz para o que chamam de “intervencionismo excessivo” do governo brasileiro nos negócios do ramo após a descoberta do pré-sal. Ele avalia que o ex-presidente Lula poderia, isso, sim, ter “aprimorado” o modelo de concessão criado no governo FHC.

“Um dos pontos favoráveis daquele regime é que todas as petroleiras eram tratadas igualmente. Agora, dá-se tratamento diferenciado à Petrobras, o que é um motivo para afugentar investimentos”, critica Pires. Ele cita os Estados Unidos como exemplo de que é possível trazer recursos volumosos para o país a partir do regime de concessão. “Em junho foi feito um leilão em que o governo de lá arrecadou US$ 1,7 trilhão de dólares”, conta o executivo da Cbie. “Ao intervir muito no setor, criar um modelo que não é atrativo para as empresas e demorar a fazer novos leilões, o Brasil corre o risco de não conseguir motivar tanta gente a colocar dinheiro aqui”, completa.

E não é só isso. Pires afirma que o regime de partilha é normalmente adotado em países em que o sistema tributário é precário. “Geralmente é assim que se procede em algumas nações africanas, porque lá não existe um sistema cuidadoso de cobrança de impostos. Já a arrecadação de royalties (tributos que incidem sobre a produção de petróleo) é muito bem gerida no Brasil”, pondera.

O professor da Universidade de São Paulo (USP) Ildo Sauer é outro que não economiza nas críticas, mas por motivos diametralmente opostos aos levantados por Adriano Pires. Quando era diretor de Gás e Energia da Petrobras, entre 2003 e 2007, ele participou da decisão que levou as sondas da Petrobras a perfurar a camada pré-sal do poço de Tupi (hoje, rebatizado de “Lula”) – uma aventura orçada em US$ 264 milhões.

“Em nome da seriedade o governo deveria, antes, concluir o processo de exploração (levantamento das características precisas das reservas, providência que antecede a fase de produção), a fim de se informar sobre a definitiva quantidade de petróleo existente em todo o pré-sal”, enfatiza. Isso, porém, não foi feito. “Mal comparando, imagino que nenhum particular que, porventura, venha a encontrar um recurso natural valioso em sua propriedade faça o repasse dessa riqueza a terceiros sem primeiro auditar a real extensão da descoberta”, ilustra.

Sauer sustenta que o modelo de partilha pode acabar trazendo sérios prejuízos financeiros ao país. “Vamos supor que um consórcio de empresas vença um leilão, comprometendo-se a entregar ao governo apenas 20% do petróleo. O Estado aceita, mas depois descobre que se trata de um campo altamente produtivo. Esse é o tipo de informação que se podia levantar com antecedência”, acrescenta.

Na realidade, o professor da USP defende uma via alternativa aos modelos de partilha e de concessão. A seu ver, o governo deveria fazer um mapeamento exato das reservas do pré-sal e, a partir dele – tendo em vista o inquestionável know-how acumulado pela Petrobras, que a levou, inclusive, a descobri-las –, contratar a estatal como prestadora de serviços. “A petroleira seria remunerada por barril de petróleo produzido, de maneira que, com os ganhos decorrentes, pudesse investir em sua modernização”, afirma.

Um dos principais temores de Sauer é ver o Brasil repetir o caminho trilhado pelos países produtores da antiga União Soviética, que na década de 1990 inundaram o planeta de petróleo para levantar os dólares de que careciam para bancar suas importações – processo que levou a uma queda vertiginosa no preço do barril. “O melhor investimento do mundo nos próximos anos será o controle das reservas de petróleo. E nós vamos arrancar todas as que temos?”, questiona. Por essa razão, Sauer defende que o Estado brasileiro conceba um plano de desenvolvimento econômico e social e produza apenas o volume de petróleo necessário para levar adiante os investimentos previstos, “até para manter alto o preço do barril”.

Política industrial

As mudanças implementadas pelo novo marco regulatório do pré-sal também trouxeram a promessa de recobrar o fôlego da indústria nacional que dá suporte à exploração e à produção de gás e petróleo no país, e isso por conta da chamada política de conteúdo local. Por lei, a maior parte dos serviços e equipamentos necessários à extração desses dois energéticos deverá ser made in Brazil. “O desafio consistirá em oferecer um conteúdo nacional cada vez maior e, simultaneamente, dar apoio ao desenvolvimento de uma indústria competitiva”, afirma Renault, da Onip. “Ninguém pode ser contra a política de conteúdo local”, comenta Pires, do Cbie, ressaltando porém que “ela tem de ser muito bem feita e conduzida para não se transformar em reserva de mercado, dando margem ao surgimento de uma indústria cara e ineficiente”.

Caso emblemático é o da indústria naval, uma das prioridades na agenda da presidente Dilma Rousseff. Em maio deste ano, a Petrobras suspendeu a encomenda de 16 novos navios feita a um estaleiro pernambucano. Os problemas começaram quando a primeira embarcação adquirida foi entregue com dois anos de atraso. Além disso, a sul-coreana Samsung, parceira desse estaleiro e que, de fato, detinha o conhecimento tecnológico, deixou a sociedade, levando a Petrobras a colocar as barbas de molho. Um mês após a suspensão dos contratos, o estaleiro até fechou uma nova parceria com um grupo japonês na tentativa de recuperar os contratos suspensos pela Petrobras, mas eles seguem sob reavaliação.

Por sinal, o setor naval é um dos segmentos que, pode-se dizer, ressuscitaram com as perspectivas abertas pelo pré-sal. “Era uma indústria literalmente falida no Brasil. Os estaleiros estavam obsoletos ou fechados”, afirma Jorge Ramos, da ISA. Grupos empresariais de peso, como EBX e Odebrecht, vêm montando estaleiros no litoral do país atraídos pelos bons ventos que passaram a soprar sobre o setor. Só a Petrobras, estima-se, terá até 2020 um portfólio com 810 embarcações – como sondas, plataformas e barcos de apoio offshore –, o dobro do que possuía até dezembro de 2010.

Contudo, há motivos para refrear tamanho apetite. Em vez de desencadear um desejável efeito multiplicador, a gigantesca demanda gerada pela extração do petróleo sobre as indústrias de bens de capital – a de aço, por exemplo – pode até asfixiar outros segmentos da indústria nacional. O alerta é de Alexandre Szklo, professor de planejamento energético da Coordenação dos Programas de Pós-Graduação de Engenharia (Coppe) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “É uma questão de como pisar no acelerador. É bom ir rápido, mas se for demais você pode acabar se dando mal”, adverte.

Apesar das críticas ao marco regulatório e das ressalvas à política industrial, o fato é que o pré-sal vem despertando o interesse das empresas, inclusive estrangeiras. “Elas estão chegando, construindo fábricas, investindo milhões de dólares”, conta o presidente da ISA na América do Sul. A britânica Rolls-Royce, por exemplo, está erguendo uma fábrica em São Paulo para montar geradores de energia para as plataformas de extração de petróleo. “Antes, nem manutenção se fazia aqui”, brinca Ramos. Ele até concorda com a avaliação de que, na ponta do lápis, os equipamentos produzidos pelas indústrias instaladas no Brasil poderão custar mais que os similares estrangeiros, mas, diz, “é o preço a ser pago para desenvolver a tecnologia no país”.

Aliás, estimular a área de pesquisa & desenvolvimento (P&D) é um dos principais objetivos da política de conteúdo local. E a capital fluminense, através do Parque Tecnológico do Rio, criado pela UFRJ na ilha do Fundão, é o epicentro desse processo – até pela proximidade com as reservas do pré-sal. “A petroleira britânica BG (líder mundial na produção de gás) está montando na cidade do Rio de Janeiro o seu maior centro de pesquisa”, exemplifica Szklo, da Coppe. Fabricantes de componentes eletrônicos mundialmente conhecidos, como a americana General Electric (GE) e a alemã Siemens, também já se instalaram no Parque do Rio.

Além de trazer indústrias de equipamentos, o polo da UFRJ vem atraindo as empresas que prestam os chamados “serviços petrolíferos”, as companhias mais intensivas em tecnologia e conhecimento de ponta, na explicação de Szklo. A Schlumberger, maior prestadora desses serviços no mundo, responsável por um terço de um mercado mundial estimado em US$ 15 bilhões, também aportou no Parque do Rio. Sediada em Houston, no estado americano do Texas, ela desenvolve softwares e modelos computacionais que simulam virtualmente o comportamento dos reservatórios de petróleo escondidos no subsolo dos oceanos. Iniciativas como essa da UFRJ são importantes, porque fortalecem a indústria nacional e qualificam a mão de obra que o setor de petróleo e gás vai passar a exigir daqui para a frente.