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A pensadora do impensável
por Cecilia Prada
Há 35 anos, no dia 9 de dezembro de 1977, na véspera de completar 57 anos, uma das mais poderosas personalidades de nossa história literária – a judia ucraniana, naturalizada brasileira, Clarice Lispector – deixava este mundo que marcara com o vigor de seu talento, sua beleza física e espiritual, a pertinácia de uma carreira difícil e o sentido de “missão”. Legava um rol impressionante de escritos – entre romances, livros infantis, volumes de contos e de crônicas e outros textos jornalísticos. Hoje, as publicações póstumas organizadas por várias editoras dobram essa produção, ao mesmo tempo em que se multiplicam, tanto no Brasil como no exterior, o número de biografias e de estudos sobre a originalidade, a importância permanente e a profundidade de sua obra.
Lançamento recente, da maior importância para esse aprofundamento, é o livro Clarice Lispector: Uma Literatura Pensante, da Civilização Brasileira, de autoria do filósofo Evando Nascimento, que, além de docente do programa de pós-graduação da Universidade Federal de Juiz de Fora, é autor de ficção ele próprio, não hesitando em se confessar “um apaixonado pela obra da autora”. Essa paixão, aliás, torna-se indispensável aos que mergulham no legado dessa original escritora. Foi assim também com Benjamin Moser, seu biógrafo americano. Ao apresentar ao mercado internacional sua alentada obra de pesquisa e crítica, em 2009 (Why this World, lançado no Brasil como Clarice, pela Cosac Naify), Moser tomou como missão divulgar a produção total da misteriosa Clarice, que até hoje, tantos anos após sua morte, esconde nos refolhos de sua expressividade literária aquele estranhamento do mundo, da vida, que é a marca da genialidade.
A paixão de Evando Nascimento nasceu, para permanecer, no momento de seu ingresso na universidade. “Em inúmeros momentos de formação e de vida profissional, detive-me no corpus dessa obra, em seu corpo digamos i-material, para dele extrair projetos, indagações e sobretudo ensaios, que constituem parte importante de minha produção escritural”, ele disse. Com a maturidade, o interesse concentrado no pluriforme texto clariciano permitiu-lhe, com firme base em sua formação filosófica, penetrar, destemido, pelo “cipoal” da complexa simplicidade de uma autora que vivia seu cotidiano fragilmente equilibrada no paradoxo, na dor da indagação existencial permanente.
O autor adverte que não tem seu livro veleidade de pertencer ao gênero da crítica literária. Seu interesse seria mais simples: deixar sua própria escrita “ser atravessada pelas múltiplas vozes que habitam os textos por ela assinados”. E que, pinçando o imenso material da “literatura pensante” de Clarice, não quer, absolutamente, que esse termo seja tomado como sinônimo de “literatura filosófica”. Clarice não é uma escritora, uma ficcionista que também seria uma filósofa – contaminação que, aliás, raramente deu certo no decurso da história literária... O “pensante” no texto acontece, na visão de Evando, quando, no “diferencial afetivo” clariciano, “a palavra ‘pensamento’ perde sua condição exclusivamente filosofante para se tornar um dado do sentimento-experiência”. Por meio da personagem de Angela Pralini (de Um Sopro de Vida), diz Clarice: “Só me interessa pensar o que não se pode pensar – o que se pode pensar é pouco demais para mim”. E Evando comenta: “...pensar o impensável [...] haveria tarefa mais alta para um ou uma vivente e para a literatura?”
Caldo folclórico
No minucioso levantamento que faz de toda a temática da escritora, examinando o contínuo carrossel de pessoas, bem como de bichos e de coisas, em que ela esteve mergulhada e ocupada a vida toda, o filósofo (avançando também como crítico literário, ainda que se renegue como tal) compreende melhor do que ninguém e explica o âmago do processo de criação – aquele momento inefável em que a escritora ultrapassa a racionalidade, o estilo, os gêneros literários e o seu próprio gênero sexual, humano, para atingir uma espécie de integração cósmica, que é, antes de mais nada, cultural. Não por nada concentrava Clarice em si a disparidade dos elementos judaicos, transmudados em autêntica integração com o caldo folclórico brasileiro (já multirracial, ele próprio) da infância vivida em Recife, em combinação ainda com a vasta assimilação de literaturas europeias e americanas na fase adulta, em suas viagens, na vivência do mundo diplomático.
E nós, seus fascinados leitores, jovens, velhos, cultos ou nem tanto – que conhecemos aquela sua galinha serelepe lutando pela vida e levantando tão alto, literariamente, o troféu do seu ovo... ou que experimentamos a perturbação daquela personagem que no seu dia perfeito é defrontada, imoralmente, com o cadáver de um rato na avenida... ou aquela escultora de lúcida loucura que se perde de vez na contemplação do olho de uma famosa barata no quarto da empregada, a barata que ela terá de devorar para acabar (com a metafísica do Outro, ou com o livro...) –, enfim, todos nós podemos assim entender o que Evando quer dizer com o “cruzamento perfeito humano/animal” atingido por Clarice, “poeta-vidente” cujos textos, revolucionários ao extremo, abolem todas as distinções, as relações de submissão entre humanos e animais, em um plano, e entre gêneros sexuais, de outro. O ser masculino/feminino do escritor (Clarice) assume plenamente a indignação contra qualquer enclausuramento da personagem que escreve – o que importa, diz sempre, é a escrita, e o que está além desta, o constante “estranhamento do mundo”, aquele “sentimiento de no-estar-de todo” já reconhecido como imprescindível por outro grande escritor, o argentino Julio Cortázar.
E quando, de sua humanidade exacerbada em ferida aberta pelas próprias circunstâncias de seu cotidiano, é obrigada a reconhecer-se “coisa”, não se deixa arrastar, debate-se, grita: “O que sou neste instante? Sou uma máquina de escrever fazendo soar as teclas secas na úmida e escura madrugada... Sou um objeto. Objeto sujo de sangue... mas se tenho de ser um objeto, que seja um objeto que grita” (em Água Viva, de 1973 – livro que justamente teria, como primeiro título escolhido, o de Objeto Gritante). Como tal, como “coisa”, pode ainda afirmar sua superioridade: “Eu sou matéria-prima não trabalhada. Eu também sou um objeto. [...] Eu sou um objeto que vê outros objetos. Uns são meus irmãos e outros inimigos. Há também objeto que não diz nada. Eu sou um objeto que me sirvo de outros objetos, que os usufrui ou os rejeita” (em Um Sopro de Vida, de 1978).
A autora assume, inclusive, posição de franca insubmissão diante das exigências formais da própria literatura: em Água Viva diz que “gênero não me pega mais” e responde à sua constante autoindagação sobre a identidade literária: “Escrever é. Mas estilo não é”. Essa obsessão é minuciosamente estudada por Evando, que vai buscar confirmação já em um dos primeiros livros de Clarice, A Cidade Sitiada (de 1948), quando a personagem Lucrécia perguntava se não seria, afinal, “a coisa vista pelos objetos”. Donde o pensamento do impensável, desencadeado no interstício entre materialidade e abstração, aquele segundo de uma “epifania” joyciana que é o “quase”, descoberto pelo professor como “a marca da ficção clariciana, entre filosofia e literatura”, que para ele seria antes uma escrita “ bio-gráfica, a escrita sutil de uma vida de ponta a ponta reinventada. Bioficção, portanto”.
Para complementar seu belo trabalho, o professor/autor tece considerações circunstanciais sobre o processo criador de Clarice. Conta-nos, por exemplo, as dificuldades práticas da escritora, que, apesar de ficcionista, jornalista, advogada e tradutora, considerava-se ela própria “uma mulher sem profissão”, vencida, como acontece ainda a muitas mulheres, pelos percalços de uma “carreira” doméstica como esposa, depois desquitada, que criou com dificuldade seus filhos. E atacada muitas vezes, no meio literário, justamente pela subversão dos gêneros tradicionais – tornou-se famosa a crítica negativa de Álvaro Lins, no início de sua carreira (1944), por ela não escrever verdadeiros “romances”. Sequaz das “belas-letras”, ele dizia que a jovem escritora “estaria entre os chamados, mas não escolhidos, no panteão das letras”.
Trinta anos mais tarde, quando não pairava dúvida sobre o valor da escritora, Hélio Pólvora desclassificava Água Viva de um possível subsídio para edição pelo Instituto Nacional do Livro, por fugir a qualquer categorização de gênero – e não hesitava em dizer que o livro era mais uma “das muitas coisas que Clarice Lispector tem perpetrado sob o rótulo de romance”.