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A ajuda que tira projetos do papel
por Felipe Obrer
Termo consagrado em inglês, crowdfunding designa um mecanismo bastante amplo que serve para viabilizar economicamente projetos – crowd quer dizer multidão, e funding, financiamento. Na internet há várias plataformas dedicadas ao financiamento colaborativo, um outro jeito de se referir ao crowdfunding, e no exterior o Kickstarter.com é a principal delas. Há outras, como o Goteo.org, que abriga projetos bastante variados, ou o Unbound.co.uk, voltado especificamente à publicação de livros. No Brasil, o Catarse.me vem sendo considerado a mais consistente delas no que respeita ao financiamento de projetos criativos, reconhecidos como tal por meio de critérios de curadoria próprios. Para entrar no ar, uma proposta deve atender a certos requisitos e, preferencialmente, incluir alguma contrapartida social perceptível pelo público, além de ter arte no espírito.
Entre o originário estrangeiro Kickstarter e o nacional Catarse, uma miríade de outros sites dedica infraestrutura na web a acolher campanhas de arrecadação. Dentre os brasileiros podem ser citados desde o informal (e sem critérios muito delimitados de seleção) Vakinha.com.br – que pode servir para financiar, por exemplo, uma festinha infantil, um presente para o próprio proponente, o orçamento necessário para custear parte do tratamento de uma criança com síndrome de Asperger ou outras necessidades pessoais – até o Cultivo.cc, plataforma em fase inicial e destinada à captação de recursos para projetos (milionários, alguns) aprovados em leis de incentivo fiscal, oferecendo dedução tributária aos apoiadores.
Podemos citar, também, a Zarpante.com, plataforma ainda em versão “beta” (ou experimental) que se pretende internacional, destinada ao público lusófono, fundada por um brasileiro e uma franco-portuguesa que se encontraram em Paris. Henrique Moretzsohn de Andrade vinha trabalhando com música, apresentando-se em bares, cafés e festas na capital francesa, enfim, convivendo com o cenário artístico daquela cidade. Anne-Charlotte Louis embarcou como sócia no projeto, com a experiência acumulada no trabalho em instituições financeiras e afins.
Moretzsohn, que morou a maior parte da vida no exterior por ser filho de diplomata, explica que a plataforma existe há cerca de 8 meses e que, por enquanto, conta com um grupo de voluntários que ajuda na gestão e na seleção de projetos. O intuito, mais adiante, é remunerar os colaboradores. A Zarpante já abrigou dois projetos bem-sucedidos e estava com campanhas de outros três em andamento quando esta reportagem foi realizada. A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), diz ele, demonstrou interesse em dar seu apoio. Além de exemplos sacramentados de parcerias no Rio de Janeiro (na área de turismo) e em São Paulo (um estúdio), o titular da plataforma informa que há outras em vista. Enfim, conclui ele, são vários os projetos no forno, em fase de elaboração para ir ao ar.
Além do braço de financiamento coletivo, a Zarpante oferece diferentes formatos, dedicados à criação colaborativa (crowdsourcing), abrangendo trabalho voluntário ou remunerado. Moretzsohn conta que sua intenção é criar uma ponte para que trabalhos de artistas brasileiros e de outros países de língua portuguesa de fora da Europa cheguem a esse continente. Ele acredita que a crise econômica que castiga o Velho Mundo é um fator favorável ao início da navegação, já que os criadores e produtores ficariam mais propensos a buscar outras formas de financiamento, dada a quantidade limitada de verbas estatais para a cultura no contexto de constrição. O volume de projetos financiados pela Zarpante ainda está muito aquém da iniciativa brasileira Catarse, cujo nome remete ao mundo do teatro.
Longa-metragem
Não faria muito sentido contrapor iniciativas e compará-las apenas, já que uma das características do universo crowdfunding, pelo menos no Brasil, é a generosidade. E não só dos apoiadores dos projetos, mas também dos que administram e fazem o sistema que abriga as campanhas. O código do Catarse é compartilhado, aberto. Tanto que ele já foi utilizado por inúmeros outros grupos de pessoas interessadas em criar vias para fazer coisas interessantes acontecerem. Entre os derivados está o Nós.vc, um representante do coirmão do crowdfunding, o crowdlearning, em que podem ser propostos cursos, oficinas e outros eventos para compartilhar conhecimento. O crowdsourcing é outra variante próxima.
Enfim, falamos de financiamento colaborativo, aprendizagem participativa, ideias e conceitos com formulação coletiva. No mundo como ele é, sem dinheiro, mesmo contando com apoios de outras ordens, concretizar um projeto não é uma coisa fácil. É justo o pagamento aos realizadores, que costumam trabalhar bastante e ficam mais satisfeitos quando são remunerados pelo que fazem. Esse talvez seja o impulso mestre. Nos projetos convencionais, com a figura do produtor tradicional e de muitos atravessadores, a autonomia criativa perde bastante. Com o financiamento colaborativo, por sua vez, não só isso muda como mais de 90% dos valores arrecadados ficam com o autor do projeto, já descontados a taxa de 7,5% retida pela plataforma e os 2,5% correspondentes a outros encargos financeiros. Os proponentes encontram diferentes formas de declarar a receita obtida, e até o momento não foram relatados problemas.
O período das campanhas é variado; no Catarse, por exemplo, é de 60 dias. Na eventualidade de a meta estipulada não ser atingida no prazo, o valor é devolvido aos doadores, que, caso prefiram, podem recebê-lo como um crédito para apoiar outros projetos.
Por meio do Catarse já foram viabilizados desde curtas-metragens de baixíssimo orçamento até o longa Belo Monte – Anúncio de uma Guerra, por ora o mais vultoso projeto já financiado dessa forma no Brasil. Todavia, se considerarmos os números da indústria cinematográfica tradicional, o orçamento – destinado à finalização do filme, que já contava com mais de 120 horas de registros feitos ao longo de dois anos e três expedições ao Xingu – foi baixo.
Dentro do universo do crowdfunding no Brasil, Belo Monte foi um projeto realmente muito bem-sucedido. A meta mínima era de R$ 114 mil, e o total obtido somou mais de R$ 140 mil. A campanha terminou em dezembro de 2011, e em 17 de junho de 2012 aconteceu o lançamento nacional do filme no Auditório Ibirapuera e mundial pela internet. O diretor do longa, André D’Elia, contou com nada menos que 3.429 apoiadores, tendo conseguido concluir, com um intervalo inferior a seis meses entre o êxito no Catarse e o lançamento, um documentário a respeito da construção da hidrelétrica polêmica no Pará, na crista da onda e com o assunto fumegando.
A abordagem foi isenta e crítica. Como se sabe, as organizações contrárias à represa afirmam que 80% das águas do Xingu serão desviadas e que mais de 20 etnias indígenas ficarão desabrigadas. O filme está disponível livremente na internet. O caso revela uma das características da cultura própria do financiamento colaborativo: quanto maior for o apelo social da proposta, maiores as chances de gerar adesão. E o retorno para a sociedade vai além da disponibilidade online: o filme já está sendo traduzido para línguas indígenas e exibido em aldeias xinguanas, com a ajuda do Instituto Raoni.
Pimp My Carroça é o nome inusitado de outro projeto bem-sucedido no Catarse. O idealizador do movimento e membro do coletivo de artistas Parede Viva, conhecido como Mundano, articulou uma rede de grafiteiros que contribuíram para a restauração de carroças usadas por catadores de lixo reciclável na capital paulista. O grupo promoveu em junho de 2012 uma ação no vale do Anhangabaú, nessa cidade, que procedeu às reformas e prestou atendimento de saúde aos trabalhadores, com a presença de dentistas, médicos, oftalmologistas, cabeleireiros e massagistas. O projeto, que conta com o apoio do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), levantou no Catarse mais de R$ 60 mil, superando em 67% o valor mínimo e granjeando a simpatia de 792 apoiadores. Rendeu documentário, colocou no ar a proposta “abrace um catador” e conta com um cronograma estruturado para levar o projeto até outras cidades.
O Festival Baixo Centro é outra iniciativa vitoriosa que nasceu graças ao crowdfunding e que teve o mérito de criar algumas ações improváveis, como os jardins suspensos no Minhocão, levando o verde a áreas cinzentas e colorindo avenidas em São Paulo com uma proposta de evento horizontal e aberto. Sessões de cinema ao ar livre, tintas solúveis em água jogadas no asfalto e levadas ao acaso pelas rodas dos carros, festas... Dado o formato de autogestão previsto nesse caso, o financiamento por vias mais institucionais teria sido improvável. Com a campanha colaborativa, o coletivo que propôs o festival conseguiu pouco mais de R$ 17 mil, dinheiro que viabilizou sua realização.
Tom político
“As ruas são para dançar” foi a frase que serviu como slogan e ajudou a sensibilizar os mais de 270 apoiadores. A ideia inicial surgiu na Casa da Cultura Digital e seu proponente foi Lucas Pretti. Já no caso do desdobramento desse evento, a Festa Junina no Minhocão, a proponente foi Grasi Drumond, e a campanha de crowdfunding específica criada arrecadou mais de R$ 9 mil. Um trecho do texto de descrição do projeto dá o tom político a essa festiva empreitada: “Tornou-se ainda mais urgente pensar em soluções e propostas para ressignificar a cidade depois dos acontecimentos do começo do ano em São Paulo – incêndio na Favela do Moinho, ação policial na Cracolândia, reintegração de posse de diversas ocupações de sem-teto no centro. É concreta a necessidade de criar parâmetros possíveis de relações entre as pessoas numa metrópole como esta em que vivemos”.
O conceito de crowdfunding está bastante difundido, tanto que surgem propostas fora das plataformas usuais. O compositor e músico Makely Ka, nascido no Piauí e criado no interior de Minas Gerais, elaborou em Belo Horizonte uma campanha que hospeda em seu próprio site, recebendo as doações mediante depósito bancário normal. Denominado Cavalo Motor, o projeto está dividido em algumas etapas, e inclui uma viagem de bicicleta, a gravação de um álbum musical e a publicação de um livro com relatos e registros da jornada, reproduzindo aproximadamente o itinerário do personagem Riobaldo Tatarana, protagonista do livro Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. “Li o livro pela primeira vez aos 17 anos, isso há 20 anos. Depois reli antes dos 30 e fui folheá-lo novamente agora, também de cabo a rabo, para fazer o roteiro e mapear os trajetos”, conta Makely Ka.
São cerca de 1,8 mil quilômetros de percurso, e um dos detalhes interessantes da viagem é o dínamo de fabricação alemã incorporado à bicicleta. “Desde o pós-guerra, na metade do século 20, os alemães têm uma cultura de geração de energia com o movimento dos pedais”. Além do dínamo, Makely Ka leva outros apetrechos para registros audiovisuais e que se somam a uma barraca.
“É um processo incomum de fazer um trabalho de campo para produzir um disco autoral, mas acho que é uma forma de ampliar os sentidos do trabalho”, diz o músico. Em sua opinião, a bicicleta é um dos engenhos de tecnologia mais fantástica já criados. “Você vai para qualquer lugar montado nela. Qualquer pessoa pode ter uma, e para mim o cavalo motor não é nem homem nem bicicleta, é a simbiose, a coisa de gerar energia, então tem todas essas retroalimentações de sentido”, destaca o músico.
Quanto ao formato que escolheu para viabilizar o projeto, ele diz: “Conversei com os parceiros, meus amigos no projeto, se iríamos tirar dinheiro do bolso. Então alguém falou em financiamento colaborativo. O crowdfunding tradicional estabelece um prazo e a garantia é a plataforma quem dá. Em meu caso, estou dando como garantia minha carreira. Tenho uma trajetória de muitos anos. Lancei quatro discos, publiquei dois livros, editei uma revista, tenho uma atuação na área do cooperativismo. Muitas de minhas músicas foram gravadas por outros intérpretes. Vi a colaboração coletiva como a potencialização da ação que ia realizar de qualquer forma”. Makely Ka revela que ainda no início do processo colocou seu carro à venda, mas que mudou de ideia quando se deu conta de que a coisa funciona mesmo.
Sem assessoria de imprensa, o Cavalo Motor recebeu bastante atenção da mídia, graças à campanha e ao movimento gerado nas redes sociais, com reportagens publicadas em quase todos os jornais mineiros e em alguns outros veículos de circulação nacional. As pessoas interessadas em seguir o périplo ciclístico-literário podem recorrer tanto às reportagens escritas quanto ao site do projeto, onde é possível acompanhar o deslocamento monitorado por GPS e acessar relatos e imagens da viagem paradoxalmente solitária e compartilhada.
Novidades à vista
Quando se fala em crowdfunding no Brasil, a expectativa é de maior incremento e atividade. Diego Borin Reeberg, um dos fundadores da plataforma Catarse, diz que as pessoas simpáticas ao financiamento colaborativo podem esperar grandes novidades pela frente. Por exemplo, segundo ele, é intenção democratizar ainda mais os processos de curadoria e seleção dos projetos que vão ao ar, hoje ainda restritos a um grupo enxuto, assim como gerar espaço para formas não monetárias de colaboração.
Ao longo deste primeiro ano de existência, o Catarse vem apresentando números expressivos. Foram contabilizados, até agosto último, mais de 32 mil apoiadores, a arrecadação geral ultrapassou R$ 3 milhões e chegaram a 270 os projetos bem-sucedidos. Na época desse balanço, 89 propostas estavam no ar. O código é aberto, e tem sido adaptado e usado para finalidades variadas, algumas delas no exterior, em nichos tão específicos quanto o de criação de equipamentos médicos.
Rodrigo Maia, também sócio fundador do Catarse, diz que a noção de competição que existia no passado entre as pessoas (leia-se plataformas) que se exercitavam no ramo foi abrandada graças a um intenso intercâmbio de informações. “Isso ajudou a consolidar quase um grupo de trabalho e a trazer à tona a ideia de que o crowdfunding é antes de tudo crowd. Temos sido procurados por instituições e entidades estrangeiras justamente porque elas identificam que estamos praticando um tipo de crowdfunding diferente aqui no Brasil, com muita ênfase no networking e na formação de uma rede de pessoas. Acreditamos que temos de puxar a parte mais crowd porque somos um povo que tem propensão a práticas de comunidade”, ilustra ele.
O formato das campanhas no Catarse inclui um vídeo, que costuma ser o carro-chefe da divulgação. A adesão gerada a partir dele desencadeia as etapas seguintes. Um bom texto de apresentação do projeto, assim como transparência na explicação do orçamento proposto, é considerado fator importante também. O uso das mídias sociais para difusão das campanhas é de praxe e a chance de êxito é proporcional à divulgação espontânea gerada pelas pessoas que acreditam na ideia. Os proponentes dos projetos criativos têm um compromisso apenas ético em relação às contrapartidas que prometem, sem exigência de relatórios, a não ser quando o financiamento se dá via leis de incentivo fiscal, modelo em que ainda prevalecem as definições estipuladas em editais.
No financiamento colaborativo cada faixa de apoio (a partir de R$ 10) corresponde a diferentes níveis de retorno. O doador pode receber uma simples menção de agradecimento no site do projeto ou, dependendo da natureza da iniciativa, dispor dos materiais ou produtos originados ou ter acesso privilegiado à fruição do bem cultural, se esse for o caso. As empresas – que podem contribuir com valores maiores – costumam receber como contrapartida a inclusão da marca nos materiais de divulgação relacionados aos projetos.
Maia ressalta o caráter flexível da novidade e as intenções que superam a mera busca por dinheiro: “O crowdfunding no Brasil está em ascensão e tem um enorme potencial. E vamos buscar criar um modelo adaptado ao país, com um financiamento colaborativo onde nossos olhos estarão voltados não apenas para a questão financeira, mas também para a formação de redes”, afirma. Na realidade, isso já vem acontecendo. Em algumas situações, relata Diego Reeberg, projetos que foram bem-sucedidos no Catarse obtiveram, após ou durante a visibilidade gerada pela campanha, apoio de outras fontes, que incrementaram o orçamento inicialmente previsto. “A iniciativa acaba motivando a adesão de mais pessoas e organizações dispostas a colaborar de outras formas, ampliando o alcance dos projetos para muito além do pontapé inicial”.
Plataforma pioneira do financiamento colaborativo no Brasil, o Catarse conta com uma rede de parceiros que lhe dão capilaridade e o legitimam. Algumas hastes que integram esse guarda-chuva atendem pelos nomes de Fora do Eixo, Cultura e Mercado, Negócios Sociais, Catraca Livre e Festival de Ideias. Refletindo suas funções essenciais, os títulos dessas iniciativas falam por si e prescindem de outras explicações.