Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Ele deu asas à canção do nordeste

por Herbert Carvalho

A economia agropastoril cronicamente inviabilizada em razão da seca e do latifúndio concentrador em mãos de um punhado de proprietários, senhores da vida e da morte no âmbito de seus domínios. Uma população forçada a constantes migrações, desprovida de instrução e meios de subsistência, refém de fenômenos sociais como o cangaço de Lampião e o misticismo criado em torno de Padre Cícero. Esse era o retrato do interior dos estados do nordeste até a metade do século passado, quando um sanfoneiro pernambucano, nascido há cem anos, comunicou ao Brasil e ao mundo que o sertanejo, além de forte, era capaz de transformar sua dor em poesia e alegria por meio de cantos e danças de uma cultura regional então pouco conhecida.

Negro, pobre e semianalfabeto, Luiz Gonzaga do Nascimento (1912-1989) deixou, em 76 anos de vida e quase 50 de carreira, mais de 600 músicas gravadas. Na metade delas figura como autor ao lado de parceiros letrados – como o advogado Humberto Teixeira (1915-1979) e o médico José Dantas de Souza Filho, o Zé Dantas (1921-1962) –, responsáveis por uma poética que permitiu conhecer ou recordar as plantações, o gado, os pássaros e os amores do universo rural abandonado pelos retirantes em busca de melhor sorte nas metrópoles.

As melodias, porém, Gonzagão trouxe no sangue e na memória de uma infância vivida entre cantores de feira e ao lado do pai, Januário, tocador e consertador de sanfonas. “Eu vou mostrar pra vocês/ como se dança o baião/ e quem quiser aprender/ é favor prestar atenção”, dizia a primeira canção de 1946 da dupla Luiz Gonzaga/Humberto Teixeira, intitulada Baião. Ela apresentava ao público do sul do país um ritmo nordestino tradicional usado para dançar e também como introdução instrumental, na viola, das cantorias improvisadas entre repentistas. 

O acompanhamento antes feito por rabeca ou pífanos, viola e pandeiro foi substituído por instrumentos que Gonzagão escolheu para formar o trio nordestino até hoje predominante nas festas juninas e nos forrós: a sanfona, o zabumba (tambor de sonoridade grave) e o triângulo de metal para tilintar nos agudos do compasso binário, novidade copiada dos pregoeiros de rua que acabou absorvida pela música brasileira, tanto popular quanto erudita.

Ao acrescentar a indumentária dos cangaceiros – chapéu e gibão de couro – como uma moldura pop pioneira na época, o coroado Rei do Baião tornou-se presença obrigatória nas rádios, nos programas de auditório e nos filmes do cinema nacional, chegando a monopolizar as prensas da RCA Victor (atual BMG) para seus discos. Eclipsado nos centros urbanos pela Bossa Nova, no final dos anos 1950, ressurge nas décadas seguintes quando seu maior sucesso, Asa Branca, é regravado por dois ícones da era dos grandes festivais de música, Geraldo Vandré e Caetano Veloso.

Respeita Januário

Januário José dos Santos e Ana Batista de Jesus, os pais de Gonzagão, tiveram dez filhos, cinco dos quais se tornaram sanfoneiros profissionais. Nascido no dia 13 de dezembro de 1912, Gonzagão teve seu nome de batismo escolhido pelo padre que o batizou: Luiz porque nasceu no dia de Santa Luzia; Gonzaga por ser o complemento do nome de São Luís; e Nascimento em razão da proximidade do Natal. A família vivia na Fazenda Caiçara, do clã Alencar – que deu ao mundo o romancista José de Alencar e o político Miguel Arraes de Alencar –, senhores do município de Exu (PE), ao pé da serra do Araripe, divisa entre os estados do Ceará e de Pernambuco.

Com apenas 12 anos, Luiz Gonzaga escapa da enxada obrigatória aos filhos dos agregados e, escolhido pelo coronel Manuel Aires de Alencar, passa a tomar conta do cavalo do patrão em suas viagens. A paga desse trabalho lhe permite comprar uma sanfona de oito baixos, igual à do pai. Aos 18, entretanto, um incidente o afasta do torrão natal: envergonhado por ter levado uma surra da mãe após uma bebedeira, vende o fole e parte para Fortaleza, onde se alista no exército como voluntário. Serão duas décadas longe até que o molequinho “amarelo, buchudo e zambeta” volta “enricado”, “gordo como um major” e dono de uma “sanfonona de 120 baixos”, conforme descreveria em Respeita Januário, mescla de humorada autocrítica e homenagem musical ao pai.

A Revolução de 1930 – e o turbulento período que a seguiu – o leva durante dez anos a diversos estados brasileiros, sem afastá-lo, porém, da vocação musical: por não conhecer a escala de notas foi rejeitado como sanfoneiro-militar, mas aceito para corneteiro, o que lhe valeu o apelido de Bico de Aço. A sanfona – agora uma Horner de 80 baixos, comprada com muito sacrifício – ele empunharia para valer no final da década, quando dá baixa no exército e toma o caminho do Rio de Janeiro decidido a vencer como artista.

Na então capital da República sua carreira começa entre rufiões e prostitutas, na Zona do Mangue, onde tocava em bares e inferninhos, passando o pires em seguida. O repertório alicerçado em ritmos estrangeiros privilegiava valsas vienenses, foxtrotes e tangos que aprendera a tocar com o mineiro Antenógenes Silva (1906-2001), conhecido como o Mago do Acordeom, que após algumas aulas reconheceria não ter mais o que ensinar ao pupilo. Outro professor e amigo foi o baiano Xavier Pinheiro, casado com a portuguesa Leopoldina e também músico da noite, que acompanhava fados ao violão. As casas de Silva e Pinheiro, no morro de São Carlos, foram as primeiras residências cariocas de Luiz Gonzaga. Leopoldina e Xavier Pinheiro também seriam padrinhos e pais de criação de Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior, filho da dançarina Odaléia Guedes, que Gonzagão assumiu como seu embora fosse estéril. O menino, quando adulto e cognominado Gonzaguinha, se transformaria num dos mais destacados compositores e cantores da música popular brasileira.

Apesar de à época o Rei do Baião já ser um exímio instrumentista, sua vida artística patinava em busca de um rumo até o dia em que um grupo de estudantes cearenses o desafiou, num dos bares em que se apresentava. “Ei, sanfoneiro, você toca muito bem, mas só música de gringo! Não sabe tocar música do norte?” Luiz Gonzaga hesitou, a princípio, pois do nordeste não guardava nem o sotaque. Achava, também, que seu acordeom era “um instrumento de cidade” (hoje seria de “última geração”), pouco adequado aos ritmos rurais que aprendera com o pai nos foles primitivos. Porém, ao dedilhar os baixos e as teclas, revolvendo o passado, sua memória musical foi se reconstituindo até surgir o sacudido Vira e Mexe.

Nasce o baião

Essa primeira composição instrumental, cujo ritmo ele chamou de “xamego”, lhe abriria as portas do sucesso. No bar do Mangue, o pires se transformou em prato e depois em balde para recolher o dinheiro até dos passantes, que se aglomeraram na calçada, atraídos pelo som contagiante. No programa de calouros do compositor Ary Barroso, onde os tangos só haviam lhe trazido resultados medíocres, ganhou o primeiro prêmio. Em breve, estaria na principal emissora da época, a Rádio Nacional, e na gravadora RCA, iniciando uma trajetória que fez da sanfona uma moda nacional – com academias do instrumento espalhadas por todo o país – e deixou seguidores como Sivuca e Dominguinhos, além das “orquestras sanfônicas”, algumas delas ainda ativas.

Ao se dar conta do valor de sua cultura musical, Luiz Gonzaga – que recebera do ator Paulo Gracindo o apelido de Lua, por causa do rosto arredondado – concebeu o plano de cantar as músicas de seu pé de serra, além de tocá-las. A ideia se encaixava plenamente na política de valorização do folclore e união cultural das diferentes regiões do país, estabelecida pelo Estado Novo. Esbarrava, porém, em dificuldades: à exceção da embolada, que já tinha seu rei na figura de Manezinho Araújo (1910-1993), os ritmos nordestinos careciam de letra, pois as pessoas iam aos forrós sertanejos para dançar, não para ouvir canções. Gonzaga sabia o que devia ser dito, mas não como: “Eu precisava de um poeta, um homem culto para escrever aquilo que eu tinha na cabeça”, explicaria o músico, de acordo com sua biógrafa, Dominique Dreyfus.

Assim, em agosto de 1945, nasceu a parceria com o cearense Humberto Teixeira, que havia se estabelecido no Rio de Janeiro nos anos 1930 e que, paralelamente à advocacia, mantinha intensa atividade musical. Flautista que também tocava bandolim, Teixeira já havia assinado algumas composições, como Sinfonia do Café e o samba Deus Me Perdoe, esta última gravada por Cyro Monteiro. Faltava-lhe, porém, um estilo definido – isso até aquela tarde em que o conterrâneo de cabeça chata e sorriso rasgado entrou em seu escritório, na Avenida Calógeras, convidando-o a formatar para o gosto urbano canções que evocariam as lembranças e as saudades dos migrantes.

Naquele mesmo dia deram vida ao xote No Meu Pé de Serra, com melodia extraída do repertório de Januário, que inspirou a maioria das composições da dupla (xote é a versão brasileira de schottisch, dança de salão europeia). Em seguida, veio Baião, autêntico e pioneiro manifesto do ritmo recém-inventado. Foi um sucesso estrondoso e uma revolução no panorama musical brasileiro, então restrito ao samba-canção e a modismos importados. Aquela batida uniforme e sincopada, descendente de ancestrais mouros e do canto gregoriano que desde sempre povoaram as cantigas do nordeste, não apenas enfrentou a invasão do bolero, no final da década de 1940, como se transformaria em produto de exportação, com presença em filmes de Carmen Miranda e Silvana Mangano.

Ao longo de cinco anos os êxitos se sucederam: os versos pungentes que imortalizaram Asa Branca, o lamento sertanejo de Juazeiro (gravado nos Estados Unidos em versão pirata que omitia os verdadeiros autores), o jingle Paraíba (inicialmente composto para uma campanha política naquele estado e que, involuntariamente, originaria um neologismo no universo lésbico) e muitos outros, tais como Assum Preto e Baião de Dois.

Preconceito

No início dos anos 1950, a parceria se desfez em razão da eleição de Teixeira como deputado federal e por ambos pertencerem a diferentes sociedades arrecadadoras de direitos autorais, mas o parto de novas obras-primas continuaria, agora a cargo do pernambucano Zé Dantas, um obstetra conhecedor dos costumes do sertão e apaixonado pelo tema. Com ele o protesto lírico contra o abandono dos sertanejos à própria sorte durante as prolongadas estiagens se tornaria mais politizado, como em Vozes da Seca, que elencava reivindicações diretamente ao presidente da República: “Dê serviço a nosso povo, encha os rio de barrage, dê cumida a preço bom, não esqueça a açudage”. Antes da morte prematura de Dantas, aos 41 anos, clássicos seus e de Gonzagão se integrariam ao cancioneiro nacional, como Cintura FinaRiacho do NavioABC do Sertão, São João na Roça e A Volta da Asa Branca.

As músicas de Luiz Gonzaga e seus parceiros tiveram rápida aceitação nos meios de comunicação, mas o idealizador da urbanização do gosto rural ainda teria de enfrentar, pessoalmente, muitos obstáculos. O primeiro foi a proibição de cantar tanto em rádio quanto em disco, o que o levou a entregar suas composições a outros intérpretes, como os do conjunto Quatro Ases e Um Coringa, responsáveis pela primeira gravação de Baião. Isso porque sua voz singela estava longe de corresponder aos padrões estéticos da época, em que predominavam os vibratos exagerados de Francisco Alves e Orlando Silva. Para vencer essa barreira, Gonzaga teve de ameaçar a RCA dizendo que ia cantar, usando pseudônimo, na concorrente Odeon. O resultado foi uma empatia de cantor com o público até hoje não superada na música popular brasileira.

Outro preconceito manifestou-se quando ele tentou se apresentar com roupa de cangaceiro, para melhor representar o nordeste, a exemplo de outro sanfoneiro, o gaúcho Pedro Raymundo, que entrava no palco trajando as bombachas do sul. No caso de Gonzaga, porém, Floriano Faissal, diretor artístico da Rádio Nacional, decretou: “Enquanto eu mandar nesta rádio, não permitirei que você apareça diante de nosso público vestido de bandido de Lampião”. Mais três eventos evidenciam agruras e humilhações: o episódio em que foi barrado no auditório da Rádio Gazeta de São Paulo, então conhecida como “a emissora da elite”, as chacotas que enfrentou ao gravar Asa Branca, devido às pessoas que passaram pires no estúdio para estigmatizar a canção como lamento mendicante, e sua apresentação ao executivo americano da RCA, quando este se apressou a proteger o rosto com um lenço para evitar perdigotos.

Gonzagão a tudo enfrentou com galhardia, até ser reconhecido como autêntico intérprete da alma nordestina, recebido em palácio pelos presidentes Eurico Dutra e Getúlio Vargas, e convidado a se apresentar diante de visitantes estrangeiros, como Harry Truman, presidente dos Estados Unidos, e Evita Perón, primeira-dama da Argentina. Reinou absoluto de 1945 a 1958, quando o baião passou para segundo plano, sendo desalojado das paradas de sucesso pelos desafinados da zona sul carioca criadores da Bossa Nova.

O ostracismo a que foi condenado pela indústria cultural, porém, resumiu-se ao abandono por parte da volúvel classe média dos centros urbanos do sudeste. Nas pequenas e médias cidades do interior, sobretudo do nordeste, Luiz Gonzaga continuava a arrastar multidões. Indiferentes às modas e às mídias, as classes populares e rurais mantiveram-se fiéis ao artista que retratava o cotidiano e a cultura dessa gente em suas canções. Apresentava-se em estádios de futebol, circos e praças, fazia shows em palanques ou sobre a carroceria de caminhões, quase sempre patrocinado por armazéns, lojas e marcas locais, o que lhe permitia não cobrar ingresso de um público geralmente muito pobre. Chegou a sofrer dois graves acidentes de automóvel, mas nem por isso abandonou a estrada, porque sua vida era “andar por esse país”, com “chuva e sol, poeira e carvão”, conforme a letra de A Vida do Viajante.

Volta ao trono

Em 1965, Geraldo Vandré gravou Asa Branca em seu LP Hora de Lutar. Três anos depois, Gonzaga retribuiu gravando Caminhando ou Pra não Dizer que não Falei das Flores, a canção de protesto mais emblemática dos anos de chumbo. Ao mesmo tempo, Gilberto Gil e Caetano Veloso misturavam vanguarda e tradição no Tropicalismo, movimento que sofreu influência dos Beatles, de João Gilberto e de Luiz Gonzaga. No início da década de 1970, um disco de Caetano gravado no exílio, em Londres, trouxe apenas composições próprias, em inglês, à exceção de Asa Branca cujos versos – “Hoje longe muitas léguas/ Numa triste solidão” – retratavam também a situação dos brasileiros que a violência da ditadura militar espalhara pelo mundo.

Todo esse reconhecimento recompõe, em especial perante a juventude universitária, a majestade do Rei do Baião, que voltou a gravar e não parou mais de participar de shows em sua homenagem, como os realizados no Teatro Tereza Raquel, no Rio de Janeiro, em 1972, e no Teatro Municipal de São Paulo, em 1977. Em entrevista ao Pasquim, em 1971, foi apresentado como “uma das figuras mais quentes e talentosas de nossa música popular”.

Na década de 1980, “Lua” gravou discos com Milton Nascimento, Fagner e com o filho Gonzaguinha, que largara a carreira de economista para também compor e cantar. Recepcionou o papa João Paulo II em Fortaleza e viajou pela primeira vez à Europa, onde tocou e cantou para milhares de pessoas, em Paris. Em 1984, recebeu o primeiro disco de ouro pelo LP Danado de Bom e venceu o Prêmio Shell de Música Popular.

Ao morrer de câncer de próstata no Recife, em 2 de agosto de 1989, Luiz Gonzaga tinha mudado a música popular brasileira, abrindo espaços para a vertente regional nordestina, que na década de 1970 revelou a geração de Alceu Valença, Belchior, Elba e Zé Ramalho, Ednardo, Geraldo Azevedo e Moraes Moreira, e, em 1990, explodiria no fenômeno recifense do Mangue Beat, de Chico Science. Até o baiano Raul Seixas, pai do rock nacional, dizia que era tanto discípulo seu quanto de Elvis Presley. Ao abrir o diálogo entre a música e a literatura de Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz, contribuiu para que os nordestinos deixassem de ser os paus de arara e cabeças-chatas, como preconceituosamente eram denominados.

Em 2005, o Congresso Nacional aprovou e o presidente da República promulgou a data de seu nascimento, 13 de dezembro, como Dia Nacional do Forró. Em 2012, as comemorações de seu centenário começaram com a presença de um enorme boneco do sanfoneiro no desfile de carnaval do Galo da Madrugada, em Recife. Ainda na capital pernambucana outra consagração: o boato divulgado por Carlos Imperial, em 1968, de que os Beatles gravariam Asa Branca nunca se confirmou, mas Paul McCartney, no show que fez em abril deste ano no Estádio do Arruda, naquela cidade, prestou uma homenagem ao rei do forró, dizendo-se honrado por estar “na terra de Luiz Gonzaga”.