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O toque marcado pelo preconceito
Por Milu Leite
Em 2011, dentre os mais de 15 mil homens com idade entre 45 e 70 anos que passaram por consultas médicas com os grupos de oncologia e doenças da próstata do Centro de Referência em Saúde do Homem – maior serviço público de urologia do estado de São Paulo, ligado ao Hospital de Transplantes –, 3 mil simplesmente se negaram a fazer o exame de toque retal, ou seja, 20% do total. Os outros 80%, que já conheciam a finalidade do procedimento na detecção precoce do câncer de próstata, não criaram embaraços.
Os especialistas relacionam o resultado da pesquisa a questões culturais, que ainda associam o homem ao único provedor da família, forte e imune às doenças. “Portanto, não se trata apenas do preconceito e do medo de colocar a própria masculinidade sob suspeita ao permitir o toque retal. Na realidade, o homem não se sente à vontade quando ‘perde’ sua posição de chefe da família para cuidar da própria saúde e iniciar tratamento médico”, diz Joaquim Claro, médico-chefe do centro de referência. Contudo, quem são esses renitentes? “Geralmente são os pacientes mais velhos e com menor grau de instrução”, relata Cláudio Murta, coordenador do serviço de urologia da mesma instituição. “Há também os que se negam por crenças religiosas. Nesse caso, orientamos o paciente a conversar com sua família e até mesmo com as autoridades de sua igreja.”
Há um problema ainda mais grave e que talvez seja o grande responsável pela resistência daquela parcela de homens ao exame de próstata: a desinformação. Para a doutora Anne Calbusch Schmitz, oncologista clínica do Centro de Pesquisas Oncológicas (Cepon), de Santa Catarina, é preciso dizer a eles que se trata de um procedimento simples. Da mesma forma, é importante esclarecer que a próstata é uma pequena glândula, de apenas 15 gramas, que circunda o colo vesical (a junção entre a bexiga e a uretra) e é responsável pela produção de esperma. “Ela tem o tamanho de uma noz, mas pode gerar grandes sofrimentos, afetando muito a qualidade de vida”, afirma o médico Miguel Srougi, professor de urologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Conscientes da utilidade da glândula, quem sabe muitos dos ainda recalcitrantes não acabem mudando de opinião? Pelo sim, pelo não, sempre que se defronta com o problema Anne se arma de argumentos na expectativa de quebrar a resistência do cliente. “Digo que o exame é indolor e leva apenas alguns segundos, e traço um paralelo com as consultas de rotina das mulheres no consultório do ginecologista”, ressalta. De acordo com ela, a falta de informação acaba gerando a crendice infundada da perda da virilidade. “O papel do médico, portanto, consiste em oferecer esclarecimentos a fim de abrir caminho para o exame”, ela diz.
Fugir do consultório por motivo tão despropositado é coisa de brasileiro ou se trata de um tabu mais ou menos generalizado lá fora? Há quem diga que é algo próprio do homem latino, já que nos Estados Unidos e em alguns países europeus, onde a cultura de prevenção está difundida, a resistência é menor. “O toque retal é um exame bastante disseminado em nações desenvolvidas, realizado por médicos de saúde de família em consultas de rotina ou de emergência no hospital geral”, explica a especialista catarinense.
O urologista e professor Carlos Márcio Nóbrega de Jesus, do Departamento de Urologia da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), campus de Botucatu, tem experiência diversa da apontada pelo levantamento do centro de referência, e explicada pelo fato de atender aos pacientes apenas em seu consultório. “Nunca aconteceu comigo. Imagino que todos que procuram o urologista por vontade própria já estejam cientes de que terão de realizar o exame prostático”, ele afirma. Vale destacar que essa ida ao médico deve obedecer a uma regularidade. Segundo Joaquim Claro, “os homens devem começar a visitar o urologista a partir dos 40 anos, no mínimo uma vez a cada 365 dias, e passar por um check-up, uma avaliação de rotina urológica completa, em particular da próstata, que é o que mais preocupa a população masculina”, diz.
Seja detectado nos hospitais, seja nas clínicas, a verdade é uma só: a incidência do câncer de próstata, uma doença que pode se alastrar rapidamente, aumenta junto com a idade. Estatísticas demonstram que o tumor prostático atinge 10% dos homens com mais de 50 anos, chega a 30% entre os que têm mais de 70 e alcança 100% entre aqueles que chegaram aos 100. Não há como negar o poder destrutivo da próstata afetada por um tumor maligno. “Não conseguimos definir as causas da doença e, por isso, não temos como evitar seu surgimento”, afirma o urologista Miguel Srougi. “Então, o ideal é detectar a moléstia no começo, quando as chances de cura são altíssimas, permitindo resgatar para a vida de 80% a 90% dos doentes.” Se o tumor se expande porque não foi diagnosticado a tempo, ampliando seu raio de ação para fora da próstata, mas sem ainda se espalhar, só o fato de alcançar os tecidos vizinhos já faz a chance de cura cair para 30%.
Código genético
A cada dia, muitos são os homens que chegam aos hospitais com quadros considerados avançados e que necessitam de intervenção cirúrgica, conta Joaquim Claro. “Grande parte desses pacientes desconheciam suas condições de saúde e ignoraram os sintomas iniciais da doença, adiando a busca por ajuda especializada.” O médico diz que atitudes como essa levam, ao longo do tempo, à evolução de um caso comum e facilmente tratável para um problema mais sério, que representa riscos para o paciente se ele não se submeter a cirurgia. “Por outro lado, o diagnóstico precoce propicia maiores chances de cura. Além disso, a recuperação do paciente também costuma ser mais rápida, e os gastos com o procedimento e a hospitalização são menores”, diz.
A evolução do câncer de próstata é silenciosa, e seus sintomas iniciais – quando presentes, já que muitos pacientes não relatam nenhum deles – são semelhantes aos do aumento benigno da glândula, como dificuldade de urinar ou a necessidade de urinar mais vezes que o normal. Em sua fase avançada, podem se manifestar, além de dificuldades urinárias, dor óssea e, em casos mais graves, infecção generalizada ou insuficiência renal.
Por que a doença surge? Como preveni-la? Como tratá-la? Já se sabe que os homens carregam no próprio organismo, mais propriamente em seu código genético, os proto-oncogenes, genes que têm uma missão muito bem definida: ordenar às células normais que se tornem malignas. Isso quer dizer que o sexo masculino traz em si a possibilidade de desenvolver um tumor maligno na próstata, caso não funcione o “antídoto” naturalmente produzido pelo próprio corpo para lidar com os genes maléficos: o suicídio das células doentes induzido pelos chamados genes supressores.
Esse é um mecanismo natural do corpo. Todos os dias células cancerígenas “se suicidam” graças a ele, afastando o perigo da doença. Ao longo dos anos, porém, por fatores tão diversos quanto (alguns) ainda inexplicáveis, o exército de genes supressores vai perdendo seus soldados, abrindo caminho para a vitória dos proto-oncogenes. Essa é uma das razões pelas quais as descobertas no campo da genética trazem promessas de avanço promissor no diagnóstico do câncer de próstata, entre elas a identificação de pessoas com propensão a desenvolver a doença, por meio de um exame de DNA.
Apesar dos avanços, a necessidade de cura pressiona os cientistas. Há hoje milhares de cidadãos sofrendo desse mal. O Instituto Nacional de Câncer (Inca) divulgou em seu último relatório os seguintes números: 12.778 homens morreram em decorrência da doença no Brasil, em 2010, e as estimativas falam no registro de mais de 60 mil novos casos apenas em 2012.
Curiosamente, a incidência da doença é cerca de seis vezes menor nos países em desenvolvimento que nos desenvolvidos. Em que categoria está o Brasil é ainda uma questão controvertida. Sabe-se, porém, que aqui a doença deverá se comportar da seguinte maneira até o final deste ano: na região sudeste, 78 a cada 100 mil homens terão câncer de próstata; no nordeste, 43; no centro-oeste, 75; no sul, 68; e no norte 30, o menor índice do país.
Estudo publicado em 2008 pela Agência Internacional para Pesquisa sobre o Câncer avalia que o câncer de próstata é o que mais atinge os homens em países economicamente desenvolvidos, exceção feita ao Japão, onde a maior incidência é do câncer de estômago. A médica Anne Schmitz fornece uma pista para compreender o fenômeno: “O aumento do número de casos tem algumas explicações, e a primeira delas é o envelhecimento da população, uma vez que o aumento da idade é um dos principais fatores de risco para a doença”. Segundo ela, já foi documentado que, entre os 80 e 90 anos, “mais de 70% dos homens vão apresentar evidência histológica de câncer de próstata, mesmo sem sintomas”. Como os países desenvolvidos contam com uma população mais velha que os demais, é natural, assim, que apresentem índices maiores da doença.
Afora a idade, outros fatores de risco para o desenvolvimento de câncer de próstata não podem ser totalmente comprovados, e isso dificulta muito a batalha contra a doença. As avaliações existentes são feitas a partir de estudos comparativos, com parâmetros como etnia e história familiar da doença, por exemplo. O câncer de próstata é aproximadamente 1,6 vezes mais comum em negros que em brancos. “Os americanos, jamaicanos e caribenhos com ascendência africana apresentam as mais altas taxas de incidência no mundo, o que pode ser atribuído, em parte, à suscetibilidade genética (cerca de 5% a 10%)”, informa o relatório do Inca. “Todavia, é possível que essa diferença seja explicada pela heterogeneidade do acesso, bem como pelos diferentes estilos de vida”, conclui o documento. Em relação à hereditariedade, pesquisas indicam que homens com antecedentes familiares de câncer de próstata têm maior chance de desenvolver a doença. Os riscos dobram quando um parente de primeiro grau é acometido pelo problema, são quase cinco vezes maiores quando dois parentes de primeiro grau são portadores do tumor e dez vezes quando três parentes de primeiro grau têm a doença. A orientação é que, caso um indivíduo faça parte de algum grupo de risco, as consultas médicas sejam frequentes e regulares.
No topo da lista de fatores que facilitam a escalada da doença está a alimentação. “Gorduras, enlatados e embutidos devem ser evitados”, alerta o professor Carlos Márcio, da Unesp. “Deve-se priorizar o consumo de vegetais, em detrimento de alimentos ricos em gordura saturada, enfim, procurar manter uma alimentação balanceada e saudável”, enfatiza também a doutora Anne. Sob essa perspectiva, o consumo exagerado de carne pode explicar a grande incidência da doença na Escandinávia, por exemplo. Pesquisadores americanos fizeram experimentos com camundongos portadores de câncer da próstata com o propósito de comprovar essa teoria. Separaram os roedores em dois grupos, oferecendo a um deles uma dieta rica em gordura e ao outro uma alimentação bem menos gordurosa. Algum tempo mais tarde, descobriram que o volume do tumor dos animais do primeiro grupo havia triplicado.
Toque e PSA
Se a última estimativa mundial apontou o câncer de próstata como o segundo tipo de doença mais frequente entre os homens, e se aproximadamente 75% dos casos diagnosticados no mundo ocorrem em nações ricas, como frear seu avanço? Como fazer frente a uma doença cujo percentual de incidência deve aumentar cerca de 60% até 2015? “Em 2012, só a cidade de São Paulo deverá ter quase 4,8 mil novos casos da doença”, revela o médico Cláudio Murta.
Diante de um quadro tão negro, não há como negar que o exame de toque é um dos principais métodos utilizados para identificar tumores em sua fase inicial (quando a chance de cura é de 90%), ainda que não seja o único. Dois outros exames são indicados de forma complementar: dosagens do antígeno prostático específico no sangue (PSA) e ultrassom. Se a próstata está aumentada, deve-se solicitar ao paciente a contagem do PSA, uma vez que sua elevação é indicativa de algum tipo de infecção ou de um crescimento benigno exagerado da glândula, mas também pode sinalizar a existência de câncer.
O PSA elevado, entretanto, não permite que se faça um diagnóstico definitivo. “Caso o paciente opte por fazer só um dos dois [ou o exame de toque, ou o laboratorial], o risco de erro é grande e o diagnóstico será prejudicado”, alerta Cláudio Murta.
“Meu câncer de próstata foi detectado com os exames de rotina. Primeiro foi feito o toque e deu tudo certo, depois o médico mandou fazer o de PSA e outros, que apontaram alterações”, conta Marcos Nimerosky Levy, de 54 anos, a quem foi indicada a cirurgia como tratamento. “Foi tudo muito rápido, e eu ouvi a opinião de três urologistas, antes de me submeter à operação. Fiquei assombrado, mas essas coisas têm de ser encaradas de frente, matar o bicho pela raiz.” Levy conta que não teve nenhuma dificuldade em se submeter ao exame de toque: “Encarei normalmente. Acho um absurdo que ainda existam homens que se recusam a fazê-lo. Se é por aí que se detecta o tumor, tem de fazer e pronto”.
As cirurgias são frequentemente indicadas, mas há outras maneiras de tratar esse tipo de câncer. Tudo depende do caso e da extensão da doença. Radioterapia e controle hormonal são hoje bastante prescritos pelos especialistas. E há, ainda, aquelas situações que não requerem tratamento, os chamados “cânceres indolentes”, ou seja, que não progridem e não causam a morte dos pacientes (na maioria das vezes, os idosos acometidos acabam morrendo em decorrência de outras doenças).
“No câncer de próstata avançado, a terapia de supressão hormonal é bastante eficaz, com relativos poucos efeitos colaterais”, diz Anne. “Esse subgrupo de pacientes, que há dez anos dispunham de poucas possibilidades terapêuticas, pode contar, hoje, com um avanço extraordinário, com novas opções efetivas de quimioterapia e vacina, além de medicações via oral de ótima tolerabilidade, determinando um melhor controle da doença, qualidade de vida e sobrevida”, ela explica, ressalvando, porém, que em determinado momento a doença pode se tornar hormônio-refratária.
O doutor Carlos Márcio, por sua vez, aponta a cirurgia robótica como um dos principais avanços no setor. A questão é controvertida. Em 2009, o jornal da Associação Médica Americana informou que homens que se submeteram à prostatectomia robótica apresentaram maiores problemas de disfunção erétil e incontinência urinária quando comparados a pacientes que fizeram a cirurgia convencional. No início deste ano, a revista “Veja” publicou matéria sobre um editorial da Sociedade Americana de Oncologia Clínica no qual a entidade afirma que não há nada que comprove que os resultados do procedimento com robô são melhores ou piores que os obtidos com a cirurgia comum. De acordo com a nota, os efeitos colaterais afetam de maneira semelhante os pacientes em ambos os casos.
Em abril, bons ventos começaram a soprar da Europa com o anúncio de uma técnica menos agressiva de combate à doença. Segundo a notícia, o tratamento realizado com ultrassom focalizado de alta intensidade (Hifu) diminui radicalmente o risco de incontinência urinária e disfunção erétil. A aplicação é feita em uma pequena área do tumor. As ondas sonoras se incumbem do resto, fazendo com que o tecido vibre e esquente até destruir as células cancerosas. O procedimento é feito com anestesia geral e a maior parte dos pacientes tem alta 24 horas depois.
A pesquisa, divulgada pela revista “Lancet Oncology”, informa que o teste foi feito com 41 homens e que, passados 12 meses, nenhum deles apresentou incontinência urinária e apenas um a cada dez passou a sofrer de disfunção erétil. De acordo com o estudo, 95% deles ficaram livres da doença depois de um ano.
As esperanças trazidas por esses novos tratamentos são mais um motivo para que seja estimulada uma mudança de comportamento do brasileiro em relação à própria saúde, adotando a prática da consulta anual ao urologista, com a realização de todos os exames prescritos.