Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

O exemplo da Coreia do Sul

A bela Seul (ao fundo o rio Han): reflexo da modernidade do país  / Foto: Lee Jae-Won/Reuters
A bela Seul (ao fundo o rio Han): reflexo da modernidade do país / Foto: Lee Jae-Won/Reuters

Por: EVANILDO DA SILVEIRA

Um país essencialmente agrário listado entre os mais pobres do mundo, com infraestrutura praticamente inexistente, poucos recursos naturais e povo sem instrução, com taxa de desemprego de 25% da população em idade de trabalho, renda per capita anual de menos de US$ 100 e exportações de meros US$ 20 milhões. Essa descrição parece não ter correspondência com a realidade, considerando que a nação mais pobre do mundo, na atualidade, é Serra Leoa, na África, com renda per capita de US$ 490 e expectativa de vida de 39 anos. Aquele relato, na verdade, não é obra de ficção, mas da real situação da Coreia do Sul na década de 1950, um lugar então sem luz e sem túnel, mas que hoje, por improvável que possa parecer, é uma das sociedades mais desenvolvidas do mundo. Como pôde um país de economia precária se transformar em tão pouco tempo numa das nações mais ricas e igualitárias do planeta, com renda per capita superior US$ 25 mil e sede de grandes empresas globais fabricantes de produtos de alta tecnologia?

Conhecido como “o milagre do rio Han”, na realidade um grande case que vem despertando cada vez mais interesse, a meteórica ascensão da Coreia do Sul é motivo de estudos mundo afora e vitrine para uma infinidade de nações. O outrora poluído rio Han, que banha a capital Seul, tem 514 quilômetros de extensão, é o segundo maior do país. A expressão acima citada remete ao chamado “milagre do Reno”, usada para descrever o renascimento econômico da Alemanha Ocidental após a Segunda Guerra Mundial, graças, em grande parte, ao Plano Marshall. Denominado oficialmente Programa de Recuperação Europeia, o plano foi uma iniciativa dos Estados Unidos de ajudar na reconstrução dos países aliados da Europa, depois do fim do conflito, que tiveram suas infraestruturas e economias arrasadas. A Coreia não contou com um plano semelhante, mas teve a ajuda decisiva dos Estados Unidos, preocupados com o risco que as ideias comunistas da vizinha Coreia do Norte representavam para os sul-coreanos. Não foi outra a razão que, entre 1950 a 1953, levou as duas Coreias a travarem entre si uma guerra sangrenta e de enorme proporção.

Gilmar Masiero, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP) e coordenador do livro Coreia do Sul – Políticas Industriais, Comerciais e de Investimentos (Juruá Editora, 2014), recorda que antes da década de 1960, o desenvolvimento econômico da pequena Coreia do Sul era insignificante e sua história bastante tumultuada. “Seus ‘Três Reinados’ a partir de 39 a.C. somente foram unificados a partir de 668 d.C. com a Dinastia Shilla, sucedida posteriormente pela Koryo, de 935 a 1392 e, desde então, até a anexação da península pelo Japão em 1910, pela Joseon”, relata o professor no primeiro capítulo da obra.

Por estranho que pareça, talvez esse período de dominação nipônica, que durou até 1945, tenha contribuído para forjar a têmpera nacionalista dos coreanos e levar o país ao que ele é hoje. “Durante a colonização japonesa, não era permitido aos nativos exercer funções administrativas e nem desenvolver habilidades técnicas e gerenciais”, diz Masiero, sugerindo que isso talvez tenha contribuído para a criação de fortes sentimentos pátrios que, em seu devido curso, se transformariam no ímpeto psicológico central para os milagres econômicos que vieram depois.

A invasão e a colonização japonesa por 35 anos não foram, no entanto, as únicas dificuldades enfrentadas pelos coreanos em sua história recente. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, que levou à derrota dos países do Eixo – Alemanha, Itália e Japão – os japoneses foram expulsos da Península da Coreia. Mas esse foi só o começo de novos problemas para o povo que ocupava aquele território havia séculos. Os principais vencedores do conflito mundial, o capitalista Estados Unidos e a comunista União Soviética, resolveram dividir o mundo em áreas de influência e domínio, dando início ao que se convencionou chamar Guerra Fria. Na península coreana, a linha divisória era o paralelo 38, que separou, em 1948, um mesmo povo em dois países, a Coreia do Norte e a Coreia do Sul.

Como era de se esperar, isso também não estabeleceu a paz na região, comprovado dois anos depois, em 25 de junho de 1950, quando a Coreia do Norte, com o apoio da finada União Soviética e da China, invadiu seu vizinho do sul, tomando a capital, Seul. Iniciava-se assim a Guerra da Coreia, o primeiro conflito armado da Guerra Fria, com os Estados Unidos apoiando os sul-coreanos. O confronto causou temor em todo o mundo, por causa do risco do uso de armas nucleares por ambos os lados. A então jovem – com apenas cinco anos de existência – Organização das Nações Unidas (ONU) interferiu e enviou tropas para tentar expulsar os norte-coreanos dos territórios do sul.

Com o apoio da ONU, dos Estados Unidos e de outros países capitalistas, a Coreia do Sul obteve várias vitórias militares em sangrentos combates. Estima-se que aproximadamente quatro milhões de pessoas, a maioria civis, tenham perdido a vida nessas batalhas. Para tentar acabar com o conflito, o governo norte-americano ameaçou usar armas nucleares contra a Coreia do Norte e a China caso a guerra não acabasse com a rendição norte-coreana. Diante deste poderoso “argumento”, em 28 de março de 1953 os invasores e os chineses aceitaram a proposta de armistício da ONU, assinado em 27 de julho de 1953. Na prática o conflito acabou, mas tecnicamente os dois países ainda estão em guerra.

Bens não duráveis

A curto prazo, pode-se dizer, a Coreia do Sul conseguiu uma “vitória de Pirro” (diz a lenda que em 280 a.C. o rei do Épiro, uma região da Grécia antiga, derrotou os romanos na Batalha de Heracleia, mas seu exército teve tantas baixas que, ao ser cumprimentado pelo triunfo, teria dito: “Mais uma vitória como esta e estarei arruinado”). “No fim do conflito, a nação dos coreanos era uma economia agrícola atrasada, com crises de fome periódicas”, conta o sociólogo Renato de Oliveira, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), um estudioso sobre o país. “A prática de exportar crianças para serem adotadas no exterior era comum e incentivada pelo próprio governo até 30 anos atrás.”

Oliveira lembra que Soon-Yi Previn, atual mulher do famoso cineasta norte-americano Woody Allen, é coreana de nascimento, foi adotada aos oito anos de idade por Mia Farrow, sua ex-mulher. “Hoje, com 50 milhões de habitantes, a Coreia do Sul é a 15ª economia mais forte do mundo e uma das líderes nos segmentos de alta tecnologia, e há poucos anos o governo declarou que nunca mais uma criança coreana seria adotada por famílias no exterior por razões econômicas”, diz Oliveira, que também ocupa os cargos de professor colaborador do Centro Universitário Univates e de assessor do consórcio das Universidades Comunitárias Gaúchas – Comung. A situação começou a mudar, na realidade, com o fim da guerra entre as duas Coreias. “Os Estados Unidos incentivaram e orientaram o desenvolvimento econômico e social sul-coreano, inicialmente financiando uma industrialização de bens não duráveis e a formação de uma classe média, no começo integrada por uma pequena burguesia rural que desse apoio estrutural ao novo regime”, explica Oliveira.

À colaboração externa dos americanos juntaram-se as peculiaridades políticas e sociais internas do país. “Além de um alto grau de integração social, com uma cultura milenar, a sociedade sul-coreana era pobre, mas sem grandes desigualdades, e, principalmente, sem uma oligarquia que pudesse alimentar ambições de perpetuação no poder, explorando benefícios marginais da dependência econômica do país em relação às economias mais avançadas, especialmente os Estados Unidos”, destaca o sociólogo. Outra particularidade é a grande importância dada à educação no país. “Por conta da ocupação japonesa, os coreanos perceberam que o acesso restrito à educação era uma forma de manter a dominação e a subordinação”, diz o pesquisador Paulo Watanabe, da Assessoria de Relações Externas da Reitoria da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp).

Mestre em Relações Internacionais, Watanabe estuda a região Ásia/Pacífico, com ênfase na política externa e segurança do Japão, da China e da Coreia. Ele diz que os coreanos fizeram da educação um elemento forte na sua cultura, e que ela se tornou uma política de Estado nas décadas seguintes. A Coreia do Sul é um grande exemplo de como a educação pode mover montanhas. “O país mostrou que não importa o cenário, é sempre possível recomeçar e construir uma potência. Os dados exibidos por essa nação na área são impressionantes. Algumas das melhores universidades asiáticas são coreanas e 98% da população é alfabetizada contra somente 20% na metade do século passado.”

Essa alta valorização da educação se reflete na posição de realce ocupada pela economia nacional e nos elevados níveis de qualidade de vida experimentados pelos sul-coreanos. “Apesar de não ser considerada uma ‘grande potência’, a Coreia do Sul aparece com índices tão bons ou até superiores aos de países mais desenvolvidos”, observa Watanabe. Na última edição do “Programa de Avaliação Internacional de Alunos” (Programme for International Student Assessment – Pisa), de 2012, por exemplo, os sul-coreanos ficaram em quinto lugar numa lista de 65 países. A título de comparação, o Brasil ocupou a 59ª colocação. No Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), a Coreia do Sul posiciona-se em 12º lugar, enquanto o Brasil, a sétima maior economia do mundo, ocupa o distante 85º, conforme o último levantamento feito no mesmo ano.

Presença do Estado

Além dessa característica cultural, a Coreia do Sul contou com alguns fatores geopolíticos, que também tiveram papel considerável no seu processo de desenvolvimento. “A posição geográfica do país na Ásia, região de grande dinamismo econômico no pós-guerra, que convive com fortes conflitos políticos, mantém aquele lado do mundo sob permanente pressão”, diz Hélio Nogueira da Cruz, professor titular do Departamento de Economia da FEA-USP, no prefácio do livro de Gilmar Masieiro. “A ascensão do Japão e da China oferecem exemplos e desafios para a Coreia do Sul. A longa tradição de conflitos militares e a presença de governos fortes marcaram a tradição de mobilização dos coreanos e do governo para alcançar seus objetivos nacionais. O apoio persistente, desde os anos 1950, dos Estados Unidos, também marcou esta trajetória política e econômica.”

Apesar dessas vantagens naturais, por assim dizer, nenhuma das conquistas do país veio por acaso. Além da ênfase na educação, os sul-coreanos, por meio do governo, também planejaram passo a passo seu crescimento econômico. O Estado teve participação importante no desenvolvimento do país, seja como planejador e fornecedor de subsídios ao setor privado, e, na mesma proporção, como agente de uma série de medidas de proteção do mercado doméstico e de estímulo às exportações, diz Cruz. “Destaca-se, nesse aspecto, a atuação do Banco de Desenvolvimento da Coreia (KDB, na sigla em inglês), semelhante ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) no Brasil, pela capacidade de mobilizar poupança em um mercado financeiro doméstico pouco desenvolvido e favorecer a industrialização por meio da implementação de políticas governamentais.”

A mão do Estado foi sentida, primeiro, no campo, através de uma reforma agrária iniciada ainda 1948, antes, portanto, do começo do processo de industrialização. Para Masiero, ela foi fundamental para a criação de indústrias e a construção de uma sociedade mais igualitária. De acordo com ele, tanto na Coreia quanto em Taiwan, outro território ocupado pelos japoneses até o final da Segunda Grande Guerra, a reforma agrária serviu como um dos pilares do rápido processo de industrialização por que passaram os dois países. E, por inacreditável que isso possa parecer, a reforma agrária na Coreia do Sul foi conduzida pelos Estados Unidos, pois a viam como uma chave capaz de fechar as portas para a ameaça que vinha do leste europeu.

O país mais capitalista do mundo tinha lá as suas razões. “A imperiosa necessidade de neutralizar a influência do comunismo e reduzir o conflito de classes, assim como estabilizar a nova república politicamente depois da Guerra da Coreia e da desordem interna, foram os fatos que ajudaram a impulsionar a realização da reforma”, explica Masiero. Ou seja, ela foi o resultado de circunstâncias mais políticas que econômicas. Seja como for, de acordo com o sociólogo, superadas as resistências iniciais, pode-se afirmar que a distribuição de terra foi efetiva na redução das diferenças de classes e na estabilização econômica e social dos campesinos. Além disso, o setor rural ainda propiciou ao urbano mão de obra constante, possibilitando uma rápida expansão da industrialização intensiva.

O desenvolvimento fabril começou, na verdade, no início dos anos 1960, e, também aqui, os coreanos puderam contar com o apoio dos americanos. A partir de meados do mesmo ano, o governo sul-coreano tomou para si a responsabilidade de planejar a expansão da nação por meio de uma série de planos quinquenais que fomentaram, inicialmente, uma industrialização imitativa visando o mercado norte-americano. Foi o período conhecido como a fase da exportação de quinquilharias, explica o sociólogo Renato de Oliveira.

O professor Cruz, da FEA-USP, reafirma essa informação dizendo que na época a Coreia do Sul adotou um modelo de desenvolvimento voltado às exportações num contexto em que o mercado internacional mostrava-se favorável. “A oferta manufatureira era composta de produtos intensivos em mão de obra, como têxteis e calçados”, explica, relatando que a presença do Estado foi marcante no processo de industrialização do país, pois não havia capital em escala suficiente, a capacidade empresarial era limitada e o mercado doméstico relativamente pequeno. Essa estratégia contribuiu para a formação de uma burguesia nacional, fortemente induzida por financiamentos estatais mediante adoção de medidas fiscais e de um sistema bancário nacionalizado.

Exportador global

A expansão fabril imitativa, por outro lado, capacitou o país – até então preso a uma economia rural tradicional – em tecnologias industriais através de investimentos maciços em educação. Cruz lembra que foi a partir dessa fase que, na década de 1970, as indústrias pesadas e o setor químico afloraram e ganharam destaque. “Novamente o Estado teve papel relevante, favorecendo o financiamento das exportações e dos investimentos produtivos”, diz. Os chaebols, (termo coreano que define um conglomerado de empresas em torno de uma empresa-mãe, normalmente de controle familiar), como a Samsung (eletrônicos, informática e telecomunicação), Kia e Hyundai (veículos), passaram a ter crescente participação na estrutura produtiva do país. Essas e uma série de outras companhias industriais sul-coreanas atuam com desenvoltura nos quatro cantos do globo, inclusive no Brasil, servindo de vitrine para o poder fabril e tecnológico do pequeno país asiático.

Uma segunda fase, iniciada nos anos 1980, teve como foco a seleção das tecnologias com maior potencial de agregação de valor aos produtos e à economia, visando seu desenvolvimento autônomo. Nesse período, segundo Oliveira, o governo reforçou o estímulo à formação de conglomerados industriais, voltados à exportação de produtos de alta tecnologia, bem como a forte interação entre eles e as universidades, que passaram então a atuar com grande afinco no desenvolvimento tecnológico-industrial do país. É quando, diz ele, a economia coreana consolidou a face pela qual é conhecida hoje, de fabricante e exportador global de automóveis e eletroeletrônicos, por exemplo, e, ao mesmo tempo, ganhou autonomia em relação aos capitais norte-americanos, até então os maiores investidores no país.

O professor Cruz lembra outro aspecto da economia da Coreia, que começou no final da década de 1980 e se intensificou nos anos 1990: a mudança do modelo de planejamento e de relacionamento internacional do país, ajustando-a às práticas da Organização Mundial do Comércio (OMC), que proíbe subsídios a empresas e a setores específicos. “As políticas industriais, ainda efetivas, tornaram-se mais limitadas, com a redução da regulação e da intervenção na área econômica”, explica. O professor diz que as distorções geradas pelos períodos anteriores tenderam a ser reduzidas, tais como as práticas monopolistas de várias grandes empresas. Ainda de acordo com ele, a abertura de mercado, a racionalização e a liberalização nos anos 1980 prepararam o país para a globalização desencadeada a partir da década de 1990. As liberações dos Investimentos Estrangeiros Diretos (IEDs) também foram significativas, e a busca pela inovação passou a receber grande ênfase.

Oliveira, aponta ainda uma terceira fase, que começou no início deste século, e teve como objetivo a realização de um salto tecnológico que colocasse o país na condição de economia inovadora em escala global. Aqui a interação entre empresas e universidades assumiu um caráter estratégico. Todavia, todos os planos colocados em prática ao longo desses mais de 50 anos não deixaram a Coreia imune às crises econômicas. Como lembra Cruz, o país sofreu intensamente tanto a crise do final dos anos 1990 quanto a de 2008. “Este é um país dependente do comércio e com poucas alternativas de ajustamento às flutuações econômicas internacionais”, explica. Apesar disso, os coreanos revelaram grande capacidade de adaptação, sem descuidarem dos avanços da estrutura produtiva, que se tornou cada vez mais competitiva em setores de alta tecnologia, como o da informação (componentes e bens de consumo durável como celulares, por exemplo), de automóveis, da siderurgia e da química.

O avanço do país, na realidade, se deu em todas as áreas, e o sucesso da indústria naval sul-coreana é um bom exemplo, segmento que passou por apuros em anos passados por conta das crises que abalaram o mundo, mas, recuperado, retomou suas funções como uma das molas propulsoras da economia local. Ninguém tem tantas encomendas quanto os estaleiros sul-coreanos, que lançam mão do uso intensivo de tecnologia e que é especializado na montagem de navios de grande porte. Para chegar até aqui, o Estado tomou uma série de medidas que, além da adoção de fartas linhas de investimentos, previam (isto nos anos 1970) que o transporte marítimo nacional de cargas deveria utilizar navios de bandeira coreana fabricados no país. Anos mais tarde, foi editada uma lei de racionalização com o propósito de elevar a produtividade e fortalecer a competitividade internacional do setor, avanços que ganharam maior ímpeto com a redução dos subsídios e a abertura da indústria naval a novos competidores. Resultado: os cinco maiores estaleiros do mundo estão na Coreia do Sul.

Perdemos feio

O fato é que o sucesso do desenvolvimento coreano na última metade do século 20 e na primeira década do 21, transformou a pobre nação agrícola em um país rico e avançado. Os coreanos receberam tecnologia de ponta de outras nações e souberam transformar o país pela inovação. O que está a olhos vistos é comprovado por números e estatísticas. Segundo Masiero, o crescimento econômico do país foi praticamente ininterrupto desde os anos 1950 até hoje. As exceções foram os anos de 1956 e de 1980 e o final da década de 1990, em decorrência da crise asiática. Antes disso, a Coreia do Sul havia crescido a uma taxa anual de 7,6% durante um período de 41 anos (1953-1994). Nesse largo espaço de tempo, o crescimento populacional foi de 2,2% ao ano e a renda per capita avançou 5,6%.

Na comparação com o Brasil, os dados positivos do desenvolvimento coreano são bem mais consistentes. “Segundo o Banco Mundial, o país do carnaval, com 200 milhões de habitantes, tinha um Produto Interno Bruto equivalente a 3,11% do PIB mundial em 2012, enquanto a Coreia, com pouco menos de 50 milhões de pessoas, exibia uma produção equivalente a 1,56%, o que, em termos relativos, equivale a quase quatro vezes o nosso”, afirma Oliveira. Não é apenas isso. Em 1965, a renda per capita do brasileiro era de US$ 258 contra apenas US$ 106 do coreano, números que devem alcançar em 2014 (estimados) US$ 11.080 (em queda desde 2011) e US$ 25.931, respectivamente.

O Brasil ainda leva desvantagens em outras áreas. Segundo Oliveira, a expectativa de vida na Coreia, em 1960, era estimada em 52,4 anos contra 56,4 anos no Brasil, números que, em 2010, foi de 80,76 anos para os coreanos e 73,48 anos para os brasileiros. “Isso dá uma ideia do impacto do ritmo do crescimento econômico sobre a qualidade de vida da população, principalmente quando eles se traduzem em agregação de valores não apenas para a economia em si, mas, também, para a vida social como um todo”, diz o sociólogo Oliveira. “A isto poderíamos acrescentar as diferenças na distribuição da renda e da riqueza e nos níveis de educação formal, por exemplo”, acrescenta.

Um outro dado interessante citado pelo professor da UFRGS, e que tem a ver especificamente com a ciência e o seu papel na sociedade, é o fato de Brasil e Coreia fazerem parte do restrito grupo de países com níveis significativos de produção científica em termos mundiais. Em 2011, último dado disponível – e que não deve ter mudado muito desde então – os brasileiros responderam por 2,6% da produção científica global e os coreanos por 3,3%. Uma diferença que não é grande, mas que cresce muito quando a produção é transformada em tecnologia, ou seja, em riqueza econômica, e que se traduz pelo número de patentes registradas. Nesse caso, o Brasil perde feio. De acordo com o último relatório anual, de 2012, da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (WIPO, na sigla em inglês), vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU), a Coreia do Sul é a quarta colocada no ranking planetário com 738 mil patentes, enquanto o Brasil ocupa a 19ª posição com apenas 41.453 registros.

Diante desse quadro, muitos estudiosos do chamado case Coreia do Sul dizem que o Brasil tem muito a aprender com o país asiático, mas não é o caso de imitá-lo. “Sempre temos que considerar as diferenças de contexto (histórico e geopolítico, por exemplo)”, sustenta Oliveira. “Isso não justifica nossa inação, mas evita abordagens subjetivas, como se tudo fosse uma questão de copiar os bons exemplos e ‘encontrar o caminho certo’. Os problemas são bem mais complexos e, se quisermos realmente avançar, devemos analisar nossas instituições para ver em que medida elas emperram o nosso desenvolvimento.”

Ele dá como exemplo a área em que atua, ou seja, as universidades públicas. Diz que o estatuto dessas instituições impede que elas tenham uma relação mais aberta com a sociedade. “A tutela sobre o coletivo, exercida por um sistema jurídico hipertrofiado e a cartorialização da vida civil, que faz com que a vontade e a iniciativa dos indivíduos não resulte em efeitos válidos se não for previamente sancionada pelo Estado, são dois desses obstáculos”, aponta.

 


 

Muito além das confecções

Por trás das vitrines vistosas do bairro do Bom Retiro, na zona central de São Paulo, que pouco deixam a desejar em relação a áreas “chiques” de grandes cidades do mundo, há uma história de imigração, na qual povos de diferentes etnias e nacionalidades se sucederam na ocupação do espaço. Hoje, o território é dos coreanos, donos de pelo menos 70% das cerca de 1.200 lojas, a maioria de vestuário e tecidos, existentes na região, segundo estimativas da Câmara de Dirigentes Lojistas do Bom Retiro. Eles substituíram os judeus, que deram a fama de bairro comercial ao local, e que hoje respondem por 20% dos estabelecimentos. Os outros 10% são divididos mais ou menos igualmente entre descendentes de italianos, os primeiros a chegar, e gregos.

A história da ocupação daquela área, localizada entre os rios Tietê e Tamanduateí, começou, na verdade, no século 19, mais precisamente em meados da década de 1920. Na época, aquela era uma região nobre, distante da zona urbana, que abrigava sítios e chácaras de lazer, local de retiro e descanso nos fins de semana. Diz a história que havia ali uma chamada Chácara Bom Retiro e que acabaria dando o nome ao bairro. A urbanização e o chamado progresso começaram a tomar forma mais tarde, em 1867, com a inauguração da estação Luz, da Estrada de Ferro São Paulo Railway, atualmente Santos-Jundiaí, (hoje, há ali também uma estação do metrô).

Os trilhos do trem permitiram a ocorrência de dois fatos paralelos que mudaram a cara do bairro. Um deles foi que a estação se transformou num ponto de passagem obrigatória para as levas de estrangeiros, notadamente italianos, que chegavam ao Brasil pelo porto de Santos. Para abrigá-los temporariamente ergueram no bairro aquela que viria a ser a primeira hospedaria de imigrantes. O outro fato foi a instalação na região de indústrias e depósitos. Isso fez com que muitos imigrantes resolvessem ficar por ali mesmo.

Os primeiros a se instalarem naquele pedaço de chão foram os italianos, que chegaram a formar uma vila operária no Bom Retiro. Mais tarde, nos anos 1920, começaram a desembarcar os judeus, principalmente da Rússia, Lituânia e Polônia, que deram início às atividades comerciais do bairro e que o identifica até hoje. Esse fluxo migratório se intensificou a partir do final dos anos 1930, por causa da Segunda Guerra Mundial.

A “tomada” coreana do Bom Retiro começou mais recentemente, a partir da década de 1960. O marco é o dia 23 de fevereiro de 1963, quando os primeiros imigrantes coreanos – 107 no total – entraram oficialmente no Brasil. Mas antes disso, alguns pequenos grupos, prisioneiros na Guerra da Coreia (1950-1953), já haviam aportado no país.

A maioria vinha para trabalhar na agricultura, mas, por uma série de motivos, foram ficando no bairro, trabalhando como empregados nas casas comerciais dos judeus. Os filhos destes, com o passar do tempo, foram se formando em profissões liberais, como médicos e engenheiros, desistindo de ingressar nos negócios da família. Enquanto isso, os coreanos juntavam dinheiro como empregados e, aos poucos, foram comprando as lojas e confecções dos judeus. O resultado é o que se vê hoje, um Bom Retiro predominantemente “coreano”.

Na realidade, a pequena Coreia do Sul, que se transformou em potência mundial está hoje presente em importantes setores da economia brasileira, uma participação que vai muito além das confecções e dos tecidos, abarcando setores-chaves como o da indústria de carros e implementos agrícolas, de eletrônica e informática, naval e saneamento. Um exemplo recente dessa investida, que retrata o tamanho da diversificação dos investimentos coreanos no Brasil, foi dado em outubro de 2013 com a inauguração de uma fábrica de tratores da LS Tractor no município catarinense de Garuva mediante aporte de R$ 150 milhões.