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Um olho no céu, outro no mercado

Ascensão religiosa: milhares de templos e milhões de seguidores / Foto: Zeca Ribeiro
Ascensão religiosa: milhares de templos e milhões de seguidores / Foto: Zeca Ribeiro

Por: MARCELO SANTOS

Quando os downloads ilegais de música pipocaram na internet e comerciantes ambulantes multiplicavam-se pelas esquinas vendendo cópias pirateadas de CDs, muita gente apostou que a vida das gravadoras estava por um fio. Poucos setores da economia amargaram a tormenta das transformações tecnológicas dos últimos anos quanto o fonográfico, que assistiu impotente as vendas de discos físicos despencarem. Enquanto em 2012 foram comercializados em CDs, DVDs e Blu-rays o equivalente a R$ 281,4 milhões, em 2013 houve uma redução de 15,5% e os negócios fecharam em R$ 237,7 milhões.

O mercado, porém, converteu-se. E em dois sentidos. A primeira mudança diz respeito à transição do analógico para o digital: enquanto a venda dos produtos com a tecnologia tradicional ainda causa dissabores, os bons negócios e perspectivas em arquivos musicais e streaming adoçam a vida dos empresários. Em 2012, o comércio com digitais rendeu R$ 111,4 milhões e, em 2013, cresceu 22%, atingindo um volume de R$ 136,3 milhões. As vendas já respondem por 36% do lucro total das gravadoras brasileiras e a tendência é que se transformem na principal fonte de receita já nos próximos dois anos. “O que as estatísticas do mercado brasileiro de música gravada mostraram em 2013, muito além do comportamento do mercado físico de CDs e DVDs, que de fato não foi bom, é a continuidade do crescimento dos negócios em música digital”, diz Paulo Rosa, presidente da Associação Brasileira dos Produtores de Discos (ABPD).

A outra conversão referiu-se à adesão de vez ao gênero gospel. Desde 2010, as três maiores gravadoras em operação no mercado fonográfico brasileiro decidiram apostar suas fichas num filão que cresce a cada ano. Executivos do setor estimam que os negócios com a música, entre os evangélicos, renda R$ 1,5 bilhão anualmente. No início da década de 1990, quando apenas 9% da população professava a fé evangélica, esses valores eram inimagináveis. Porém, a conta mudou quando os recenseadores do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) descarregaram seus dados com as informações do Censo 2000 e surpreenderam-se com os resultados que mostravam que aquele percentual chegara a 15%. Número que continuou crescendo segundo o último levantamento, de 2010.

A ascensão religiosa é traduzida em milhares de templos pelo país. Segundo o Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT), apenas em 2013 foram catalogados 4,4 mil novos templos, média de uma nova igreja a cada duas horas. A mudança no mapa religioso teve como um dos seus pilares a música. Foi há cerca de 20 anos que a música evangélica deu margem a uma verdadeira revolução com a criação de grandes festivais e a inclusão de gêneros variados como axé, samba, sertanejo e rock. Roqueiros cristãos como a Banda Resgate, Oficina G3, Fruto Sagrado, Katsbarnea e outros se apossaram dos riffs das guitarras e estrondos das baterias, transformando os eventos religiosos em verdadeiros shows musicais.

Mercado incipiente

“O gospel já corresponde a 20% do nosso faturamento”, relata Mauricio Soares, diretor da Sony Music e um dos mais requisitados executivos do mercado de música evangélica. A empresa conta com artistas exclusivos e gerencia outras seis gravadoras menores, cuidando do marketing digital e da distribuição. São cerca de 50 artistas, entre eles a cantora Damares, que está no pódio de seus campeões de venda.

Dona de uma voz potente e intérprete do ritmo pentecostal – um subgênero do gospel, parecido com o sertanejo, mas que tem como característica sua intensidade que vai aumentando na dramaticidade das letras e nas batidas rítmicas, até explodir num refrão vigoroso –, Damares fica atrás somente de estrelas do selo, como o padre Marcelo Rossi e Roberto Carlos. E à frente de Zezé Di Camargo e Luciano. “O Maior Troféu, álbum de Damares lançado em 2013, fez um estrondoso sucesso”, comemora o executivo.

O carioca Mauricio Soares é um exemplo de como o mercado tem se convertido aos cantos evangélicos. Presbiteriano, fez sua carreira capitaneando outras gravadoras como a Line Records, ligada à Igreja Universal do Reino de Deus, e a Graça Music, vinculada à Igreja Internacional da Graça de Deus. Em 2010, foi escolhido cirurgicamente pelos diretores da Sony para fazer o projeto gospel decolar no Brasil. “A empresa investiu um valor, de alguns milhões de reais, e esperava ter retorno disso em cinco anos. Dois anos depois, ele conta, “o investimento inicial se pagou. Nosso projeto de gestão está sendo levado para outros países, como a Colômbia, o México e a Venezuela”. Atento, Soares aposta no mercado digital. “Não se trata do futuro. No gospel da Sony, 38% do faturamento vem daí – vendas no iTunes, celulares e, principalmente, em serviços de streaming. Essa participação deve chegar a 45% no próximo ano”.

O iTunes Store, da Apple, domina a venda de músicas pela internet. Dos downloads pagos no mercado nacional, 95% foram feitos pela loja virtual. Porém, é no serviço de streaming que pode estar a grande redenção das gravadoras. “É a segunda onda do mercado digital. A primeira foi o download, que seguiu o conceito da venda física, de propriedade. Já por meio do streaming você tem acesso a 6 milhões de músicas e paga uma assinatura. Você não é mais o dono do produto, mas tem acesso a ele na hora que deseja”, esclarece Soares.

Na Som Livre, outra grande player a entrar no segmento evangélico nos últimos anos, o mercado digital ainda é incipiente. “Cerca de 10%, apenas”, contabiliza a diretora executiva Cláudia Fonte, responsável pela área gospel da gravadora. Ela conta com 16 artistas evangélicos, nomes de peso como André Valadão, Davi Sacer, Ludmila Ferber e David Quinlan. “Vendemos, anualmente, em média, 1 milhão de discos evangélicos, volume que corresponde a cerca de 30% do nosso resultado.”

O grupo musical Diante do Trono foi o grande nome da Som Livre e seu principal cartão de visitas gospel. Criado em 1997, a partir do conjunto musical da Igreja Batista da Lagoinha, em Belo Horizonte, já vendeu mais de 10 milhões de discos e lidera no estilo adoração, outro subgênero musical do gospel que reúne as canções normalmente entoadas nas liturgias religiosas. Porém, a parceria com a gravadora não rendeu o resultado aguardado, causando uma conturbada separação, com queixas de ambos os lados. “O conjunto musical decidiu seguir o caminho independente. Acabou o contrato e ficou livre para fazer o que bem entender”, preferiu não polemizar Cláudia Fonte. Mesmo assim, o DVD Davi, gravado pelo grupo em 2013, figurou na vigésima colocação entre os lançamentos mais vendidos daquele ano.

Do próprio bolso

A última gravadora a entrar na disputa pelo público evangélico foi a Universal Music, gigante que lidera o mercado de música mundial, com participação em 25% nas vendas. Em 2013, lançou o selo Universal Music Christian Group e contratou duas jovens revelações, Eli Soares e Hadassah Perez, e dois nomes consagrados, o grupo Renascer Praise e Thalles Roberto. Ambos com vendagem superior a 1 milhão de cópias cada.

Se hoje os artistas são disputados pelas grandes gravadoras, até a década de 1980 nenhuma delas quis custear cantores evangélicos. Os pioneiros tiveram de bancar seus próprios investimentos. “A música evangélica era absolutamente amadora: ninguém ‘vivia’ de música, ela era uma parte de outro trabalho. Os cantores e grupos recebiam ajuda de custo para a viagem, ficavam hospedados nas casas de membros das igrejas e às vezes recebiam uma oferta em dinheiro”, explica a historiadora Érica de Campos Visentini da Luz, doutora pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e docente na Universidade do Oeste Paulista, em Presidente Prudente, no interior paulista.

Em sua pesquisa acadêmica, Érica debruçou-se sobre os nomes do gospel e gravadoras, entre 1930 e 1990. Pesquisou acervos improvisados de antigas empresas, depósitos de rádios evangélicas e listou 965 álbuns, 9.370 canções e 6.269 artistas. “Você não encontrava títulos evangélicos em lojas de disco. Eram os próprios artistas que comercializavam seus produtos”, conta ela, que sonha construir um centro de memória com todo o material levantado.

Em 1958, Luiz de Carvalho foi o primeiro artista evangélico a gravar um LP, o Boas Novas. “São mais de cinquenta anos de carreira e cerca de 80 discos. Poucos cantores no mundo tiveram tanta produção quanto ele. Não sei o número exato, mas creio que já tenha ultrapassado 10 milhões de discos vendidos”, diz Elias de Carvalho, filho do cantor e criador da gravadora e editora Bom Pastor, uma das pioneiras no segmento, fundada em 1975. Para aumentar as vendas, Elias viajava, partindo de São Paulo, para todo o país com sua Kombi abastecida de sucessos de Luiz de Carvalho e de outros cantores evangélicos da época. “Eu vendia bem. Era uma forma de agilizar as entregas e faturar mais.” Nem mesmo um grave acidente na estrada o desencorajou. “Se hoje os evangélicos vendem bem é porque a música tem qualidade, beleza e uma mensagem poderosa. Além disso, as igrejas têm um enorme poder catalisador.” Elias conta que esteve recentemente em Belo Horizonte onde, numa quarta-feira comum, 5 mil mulheres participavam de uma celebração.

O que parece ser uma ilha de bonança dentro do mercado fonográfico também esconde alguns problemas. Um deles é o amadorismo no item distribuição. Enquanto as grandes gravadoras conseguem negociar com redes do varejo, o mercado exclusivamente gospel sofre para emplacar seus produtos nas gôndolas ou divulgar em mídias que não sejam exclusivamente evangélicas. “Não temos uma rede sólida e a Lojas Americanas, maior varejista do país, com 780 pontos de vendas, não se abriu como poderia para o mercado gospel”, lastima-se Soares, o executivo da Sony.

Todos perdem

Para escoar os produtos físicos, as gravadoras que atuam no ramo, principalmente as menores entre as cerca de 150 estimadas, utilizam-se de uma rede quase invisível, formada por livrarias evangélicas – algo em torno de 1,2 mil pontos pelo país – e o comércio informal dentro dos próprios estabelecimentos religiosos. O presidente da distribuidora e gravadora Aliança, Ricardo Carreras, que repassa produtos físicos fonográficos de dezenas de empresas com menor capilaridade para livrarias como Saraiva e Cultura, concorda. “Nessas redes o espaço ainda é reduzido e a tendência é a compra de música pela internet”, observa. Para ele, as vendas de CDs, DVDs e Blu-rays vão se concentrar cada vez mais nas lojas virtuais. “As lojas de disco estão se tornando uma raridade.”

Outro desafio reside na clonagem do material. “Um gordo porcentual do que as livrarias evangélicas comercializam é clonado”, diz Nelson Tristão, diretor da Onimusic, de Belo Horizonte, distribuidora de dezenas de artistas independentes. “Todos saem perdendo: o cantor e o compositor, que não têm respeitados seus direitos; a gravadora, que tem investimentos para fazer na produção, e o consumidor, que compra um produto falsificado.” Para tentar frear a pirataria, a Onimusic desenvolveu uma forma de monitorar seus lançamentos, identificando-os com um número serial exclusivo que pode ser checado através do site da distribuidora.

Entre os artistas indicados por Tristão está o pastor e cantor Fernandinho, um fenômeno da música evangélica que desenvolveu seu talento nos púlpitos de sua comunidade de fé, a Segunda Igreja Batista de Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro. Cortejado pelas principais gravadoras do mercado e com vendas superiores a 5 milhões de CDs e DVDs, ele mantém-se independente. “Eu cuido de tudo. Na verdade, eu, minha esposa e outras duas pessoas em nosso escritório, a quem cabe gerenciar o repertório, o lançamento e a agenda. Não tenho compromissos com os padrões comerciais ou as gravadoras”, revela Fernandinho, cujo maior sucesso é uma canção com duração de 14 minutos.

Para o pastor, o mercado da música evangélica não é um negócio para aventureiros. “Os grandes sucessos da música gospel nascem dentro das igrejas. Eles surgem naturalmente, por meio da convivência comunitária, da liderança e dos dons. Isso o mercado secular não pode fazer.” Fernandinho sustenta que não é possível criar um artista e colocá-lo dentro da igreja, por mais talentoso que seja. “É algo mais profundo, é algo de fé”, teoriza. O cantor realiza, anualmente, em média, 150 apresentações, algumas delas em modernas casas de espetáculos no país e no exterior.

Seja como for, o fato é que o gospel é hoje um dos gêneros musicais mais consumidos no Brasil, e há quem diga que ele fique atrás apenas do sertanejo, que surgiu há mais tempo e usufrui de uma fenomenal estrutura no país. Mas a música evangélica ainda pode crescer muito, tanto que, vez por outra, artistas de renome que nunca trafegaram por essa estrada investem na gravação de melodias que procuram falar com Deus. Recentemente, a cantora Michelle Williams, em parceria com Beyoncé, Kelly Rowland e o grupo Destiny’s Child, gravou a música Say Yes, baseada na canção popular nigeriana When Jesus Says Yes (“Não estou preocupada com nada, pois eu sei que você está me guiando. Onde você me leva, Senhor, eu vou, não tenho medo, pois sei quem está no controle”). Como é comum em toda melodia gospel, a música interpretada pelos cantores americanos tem um refrão. Neste eles cantam: “Quando Jesus diz sim, ninguém pode dizer não”.