Postado em
Menos “The End”, mais “Fim”
Por: CARLOS JULIANO BARROS
Mauro Garcia tem larga experiência no mercado audiovisual brasileiro. Carioca, já dirigiu a TV Cultura de São Paulo, ajudou a criar a TV Rá Tim Bum e presidiu a TVE, do Rio de Janeiro. Hoje, aos 57 anos, esse fanático torcedor do Fluminense é o diretor executivo da Associação Brasileira de Produtoras Independentes de Televisão (ABPITV).
Nesta entrevista exclusiva, concedida a Problemas Brasileiros, Mauro Garcia traça um panorama do audiovisual brasileiro que jamais respirou ares tão promissores quanto agora. A quadruplicação do número de assinantes da TV paga na última década e a aprovação da Lei 12.485/2011, que cria cotas para filmes, séries e programas nacionais nos canais de televisão fechados, vêm abrindo uma janela de oportunidades jamais sonhadas para os produtores de conteúdo do país. “O mercado brasileiro há dez anos era pequeno e para poucos. Hoje, os canais compram produto nacional”, explica o comandante da ABPITV.
Problemas Brasileiros – Em setembro de 2011, entrou em vigor a Lei 12.485, conhecida como Lei da TV Paga, que obriga os canais por assinatura a veicular um mínimo de conteúdo nacional realizado por produtoras brasileiras independentes. Há tempos, países desenvolvidos – como a França – têm cotas para sua produção audiovisual. A lei brasileira chegou tarde?
Mauro Garcia – Em geral, têm sido retratadas as oportunidades criadas pela lei, mas ela reflete um movimento que já estava em curso. Durante anos, a base de assinantes da TV paga no Brasil ficou em torno de 5 milhões. Havia uma projeção mirabolante sobre o número de assinantes que não se confirmou por uma série de razões, mas principalmente pela falta de renda da população. Os pacotes eram muito caros. Quando novas operadoras entraram, a concorrência aumentou. Quem iniciou o movimento de pacotes populares foi a Embratel [Empresa Brasileira de Telecomunicações] – agora, o nome fantasia é Claro TV. A entrada da Vivo, da Oi, enfim, de novos competidores na oferta de TV por assinatura, junto com a internet banda larga, mudou esse panorama. Eles iniciaram a comercialização de pacotes populares, entre 2009 e 2010, e as empresas que estavam no mercado precisaram se mexer. A NET inventou pacotes de R$ 49 e a SKY não ficou parada. Isso também foi resultado das ações de redistribuição de renda que encorpou o tamanho do mercado consumidor. Com os pacotes populares, um novo grupo social entrou na base de assinantes. Eles vêm das classes C e D e trazem um hábito de consumo audiovisual focado na TV aberta. E o que há na TV aberta? Produção brasileira. Mesmo quando não se trata de produção local, os enlatados são dublados. Esse hábito não se modifica de uma hora para outra. Então, ainda antes da lei, os canais já começaram a mudar a programação.
PB – Então, a demanda por conteúdo nacional é fruto do alargamento da base de assinantes?
Garcia – É isso. Esses novos telespectadores respondem por 60% da base de assinantes, que hoje chega a quase 19 milhões. Olha só: foi de 5 milhões para 19 milhões. Eles são maioria e os canais precisam dialogar com esse público. O hábito de consumo de programa nacional, além da questão de idioma, está posto. Alguns canais já faziam isso, mas sem obrigatoriedade e sem um tempo determinado. O que a lei faz? Fixa uma cota. Questiona-se que esse tanto é tímido, mas já é um início.
PB – No começo, a lei previa uma hora e dez minutos de conteúdo nacional por semana em horário nobre. Em 2014, a cota subiu para três horas e meia – sendo que metade deve ser realizada por produtoras independentes. Isso dá menos de 30 minutos por dia. A cota é bem acanhada, não?
Garcia – Claro que sim, mas é um ponto de partida. Não foi a obrigatoriedade que fez a cota ser maior ou menor. Foi o mercado. Essa lei tem tempo: doze anos. Quando chegar ao final desse prazo, ela não será mais necessária. Isso aconteceu nos Estados Unidos. O fator indutor ao mercado vem da lei. Mas o interessante é que em tão pouco tempo a lei já pegou. Por enquanto, ela ainda é necessária para não haver risco de ruptura. Porém, ao final dos doze anos, não vamos mais precisar dela porque o mercado já terá assimilado.
PB – Grupos de comunicação questionaram a constitucionalidade da nova legislação no Supremo Tribunal Federal [STF]. Por quê?
Garcia – Não era inconstitucional. A SKY, por exemplo, em audiência pública, nem foi [defender esse ponto de vista] com tanta vontade. A cota é tímida e, ao contrário do que a SKY dizia, não provocava nenhum aumento de custo. E alguns canais já estavam praticando. Nós fazemos encontros com os executivos de canais anualmente. Todos eles vão muito além e não é por conta da lei. É porque o produto nacional, segundo afirmam, ajuda a fidelizar o público que tem esse hábito.
PB – A campanha da SKY talvez seja o exemplo mais notório de resistência. A empresa acusava o governo de um intervencionismo desmedido. A lei também intercede em modelos de negócios para impedir que um mesmo grupo empresarial controle toda a cadeia audiovisual. Essa resistência à lei tinha mais a ver com o conteúdo nacional ou com o modelo de negócios?
Garcia – Claro que tinha a ver com o modelo de negócios. O conteúdo nacional entrou de bode expiatório nessa história. A SKY tem outras questões envolvidas. Ela foi multada em R$ 5 milhões porque tem de tirar do ar um canal próprio. Ela não é programadora [não é um canal de TV]. Ela é empacotadora [empresa que oferece os pacotes de canais aos consumidores]. Mas a SKY tem um canal próprio no mundo inteiro [o Sports+] e é detentora de direitos de transmissão de algumas competições esportivas. Mas, no Brasil, isso não é permitido [acumular as atividades de programadora e empacotadora]. Essa era a questão. Conteúdo nacional nem é responsabilidade dela. Quem tem de cumprir as cotas são os canais, não ela. No Brasil, ela é apenas empacotadora. E ponto final.
PB – Um dos principais objetivos da nova legislação é impedir que grandes grupos controlem toda a cadeia audiovisual: a produção, a programação e o empacotamento dos conteúdos. Isso não os desagradou?
Garcia – Eles se transformaram. Um grupo grande, já instalado, está numa zona de conforto. Quem demora mais a entrar nessa onda é sempre o grupo Globo, que é o maior do país. Mas ele se antecipou. Quando a lei veio, já tinha feito mudanças de participação societária nas suas empresas e estava preparado para outras plataformas. A antiga NET Brasil modificou, inclusive, seu objeto de atuação. Hoje, ela representa os interesses dos conteúdos do grupo Globo. A empresa, que agora se chama G2C, é responsável pela distribuição do conteúdo da empresa carioca em qualquer plataforma, inclusive na TV por assinatura. O que a lei permitiu, e isso é saudável, é que entrassem novos agentes no mercado. A TV Globo não está perdendo audiência para a Record ou para outra televisão aberta. Ela está perdendo para outro hábito de consumo. A audiência da Globo é igual à da soma de todos os canais de TV pagos. Daqui a pouco, a soma dos canais de TV pagos responderá por mais do que a Globo. Mas ela já está na TV paga também. Só vai fazer uma transposição. A Bandeirantes também criou uma empresa, chamada Band Content, que distribui conteúdo à emissora. Os grandes grupos continuarão sendo grandes. Antes da lei, eles promoviam uma barreira muito forte. Não existe mais o impedimento legal. A barreira agora é econômica, mas ela vem sendo rompida. À medida que a base de assinantes cresce, as plataformas aparecem e uma nova geração consome de outra forma: o jogo vai se modificando.
PB – A lei também possibilitou que mais recursos fossem aportados no Fundo Setorial do Audiovisual [FSA], que financia filmes e programas de televisão. Qual é a importância dele?
Garcia – Em 2013, foram anunciados R$ 400 milhões para o FSA, mais do que a soma de todos os anos anteriores. Em julho de 2013, o governo federal anunciou mais R$ 480 milhões. Por que o FSA ganhou essa importância e mudou do patamar de R$ 30 milhões para mais de R$ 400 milhões por ano? Porque a adesão do mercado foi grande. Se todos os canais tivessem ficado nas três horas e meia semanais, não teríamos esse dinheiro. Então, a lei vem ao mesmo tempo em que se cria um mecanismo de financiamento que propicia o crescimento acelerado de novos conteúdos brasileiros.
PB – Há críticas de que o acesso ao FSA é muito burocrático.
Garcia – Talvez ele venha funcionando mais para cinema do que para TV. É claro que sempre vamos querer melhorias de prazo, de gestão. Porque o tempo do FSA e da burocracia ainda não estão adequados para a televisão, que tem um tempo imediato. Uma série precisa estrear em poucos meses, não pode esperar. Ainda há uma defasagem entre o tempo da aprovação e da liberação do FSA. Já para cinema, como a obra tem uma expectativa mais flexível de entrada em circuito, ele tem funcionado bem. Apesar de todas as críticas, nunca houve uma disponibilidade financeira tão elevada.
PB – A Lei da TV Paga está democratizando de fato o mercado audiovisual ou vem beneficiando apenas grandes produtoras e diretores consagrados, que aumentaram o número de projetos vendidos aos canais por assinatura?
Garcia – As grandes ganham mesmo. Mas nunca ocorreu a entrada de tantos atores novos como agora e tem lugar para todo mundo. Hoje, existem 440 produtoras associadas à ABPITV, todas atuantes no mercado. Dois anos atrás, eram 170. E há 6 mil produtoras registradas na Agência Nacional do Cinema [Ancine]. Com certeza, nesse interregno – entre 440 e 6 mil – certamente existem as que não estão produzindo. Mesmo presentes em quinze estados, sua maior concentração se localiza em São Paulo e no Rio de Janeiro.
PB – Um dispositivo da lei determina que 30% do conteúdo destinado aos canais por assinatura sejam feitos por produtoras do norte, nordeste e centro-oeste. Empresas fora do eixo Rio-São Paulo também são beneficiadas?
Garcia – Isso está em processo. Ainda são poucas, mais por conta de qualificação. São necessárias algumas especificações para habilitar não só as empresas, mas os produtos a participar desse mercado. A ABPITV e os sindicatos audiovisuais locais estão procurando cada vez mais levar a qualificação às produtoras. Há empresas de animação, na Bahia, por exemplo, que fazem coisas maravilhosas e já estão no mercado. Por que se fala tanto que essas grandes produtoras dominam? Porque os canais se preocupam com a adequação de orçamento, cronograma.
PB – Canais internacionais fazem exigências – tanto em termos de qualidade quanto em questão de gestão – que muitas vezes não podem ser atendidas por produtoras pequenas?
Garcia – As pequenas produtoras estão se organizando. Esse era um pré-requisito: os canais se relacionavam com aqueles que ofereciam garantias, porque tinham prazo para colocar os programas na sua grade. Então, não podiam arriscar. Além disso, tem a questão do orçamento. Imagine o seguinte: um canal entra com 15% para licenciar um programa. E aí o FSA pode entrar ou não com os 85% restantes. Vamos supor que ele até entre. Existe o problema do cumprimento do prazo que está correndo. A grande produtora, que faz vários projetos ao mesmo tempo, tem um fluxo de caixa que permite dar continuidade ao o trabalho independentemente do dinheiro do FSA sair [depois ela se reembolsa]. Mesmo que o FSA não cubra os 85%, o canal sabe que a produtora qualificada conseguirá captar o restante do dinheiro no mercado. Hoje é tão importante a parte criativa quanto a gestão, a prestação de contas e a arquitetura financeira. As produtoras dos filmes de maior bilheteria do cinema nacional têm uma área só destinada à arquitetura financeira. Elas requisitam recursos da Lei do Audiovisual, compõem com o FSA e somam com patrocínio direto. Acaba parecendo uma sopa de logos.
PB – Qual é sua avaliação sobre a Lei do Audiovisual, que concede benefícios fiscais a empresas que investem em produções de filmes, séries etc.?
Garcia – Na verdade, o Fundo Setorial vai incorporar a Lei do Audiovisual. Tanto que as regras praticadas no Brasil já estão no FSA. As incompatibilidades estão sumindo. A Lei do Audiovisual permite dedução fiscal. Já o FSA não tem nada a ver com isso. É um fundo de investimento. A Lei do Audiovisual foi atualizada para televisão, pois não havia essa possibilidade. Antes era só para cinema. Mas acho que ela continua sendo necessária porque se trata de dedução fiscal, coisa que o FSA não faz.
PB – Muita gente critica a Lei do Audiovisual com o argumento de que as produtoras ficam reféns do departamento de marketing das grandes empresas.
Garcia – Pois se trata de dedução fiscal. Mas não acho que ficam reféns. Quem não quer usar a estratégia de marketing da empresa tem de recorrer ao FSA. Não dá para esperar que alguém queira usar o recurso [via Lei do Audiovisual], ainda que seja uma dedução fiscal e mesmo que seja dinheiro público, sem querer dialogar com a empresa. Ninguém vai autorizar um recurso para uma obra autoral que só o proponente acha que seja boa. Nós estamos falando de negócios. Quem quer fazer uma obra autoral tem linhas específicas para isso. São editais, em que o produtor apresenta um projeto e recebe dinheiro a fundo perdido.
PB – É possível vislumbrar a emancipação do mercado audiovisual em relação aos incentivos públicos?
Garcia – Não dá mais, diante da evolução do mercado, para os produtores audiovisuais brasileiros ficarem pendurados em recursos públicos. Antes, não havia mercado nacional. Aqui mesmo na ABPITV há um programa internacional desde 2004 com a Apex [Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos], porque o mercado que se vislumbrava para o produtor nacional era o mercado externo, já que o brasileiro há dez anos era pequeno e para poucos. Hoje, os canais compram produto nacional. Os filmes vão bem, têm bons resultados de bilheteria. Dez das vinte maiores audiências do horário nobre da TV paga, em qualquer canal, já pertencem a séries brasileiras e de produtores independentes. Esse mercado está começando a interessar ao financiador privado, que só coloca dinheiro onde há certeza de retorno. A Ancine já reconhece que há necessidade de fundos privados para poder compatibilizar. O que um fundo privado pode resolver? A questão de fluxo de caixa das produtoras. Em tese, o particular sempre tem mais agilidade. Mas ele pode ser compensado com o dinheiro público que tarda, mas chega. Uma parte do dinheiro da produtora Conspiração Filmes, do Rio de Janeiro, por exemplo, vem de um fundo privado.
PB – Há quem diga que faltam atores, roteiristas, dentre outros profissionais qualificados a fazer bons programas, séries e filmes. O que se pode dizer da qualidade do nosso audiovisual?
Garcia – Está em processo contínuo de aperfeiçoamento. Mas vou responder com dados: um canal estrangeiro no Brasil não daria espaço para uma série brasileira no horário nobre se ela não fosse boa. A comprovação é que, nesse horário, a metade das séries com maior audiência são brasileiras. Mesmo antes da lei, já havia séries brasileiras na HBO, como “Mandrake” e “Filhos do Carnaval”. A novidade é a frequência, a escala. A cada série brasileira que termina outra já é anunciada. No campo infantojuvenil, só a Disney ou a Nickelodeon faziam séries de 52 episódios. O Mundo Gloob levou ao ar “Gaby Estrella”, com 52 episódios, e vai agora para a segunda temporada. “Pedro e Bianca”, da TV Cultura, ganhou neste ano o Emmy Internacional, principal prêmio da televisão. São poucos exemplos ainda, mas o que importa é que as coisas estão fluindo.
PB – Como dar qualificação a esses profissionais?
Garcia – Em cursos e laboratórios, trazendo consultores estrangeiros. A todo instante divulgamos um novo curso para formar novos roteiristas, principalmente para séries. O Brasil já é supercapacitado em novela. Estamos evoluindo e conseguindo grandes bilheterias em cinema. Agora, olhe para a TV Globo de novo: todo mês ela estreia uma série nova. Essa é a tendência. A Globo pegou a inteligência e a qualidade da novela e está adaptando para séries porque esse será o formato do futuro no mercado brasileiro. As novelas estão diminuindo de tamanho, não têm mais 150 episódios. Entre a novela – que ela não pode abandonar – e a série, a Globo está fazendo uma transição suave. As séries brasileiras contam com um apelo igual ao das americanas. Estão ganhando componentes policiais, o que é uma tendência mundial, mais apelo sensual e erótico. São produtos preparados para outro tipo de mercado.
PB – As tecnologias digitais têm barateado, e muito, o custo de produção. Qual é a importância desses novos equipamentos?
Garcia – A tecnologia hoje é commodity. Está acessível. O “Porta dos Fundos” é um bom exemplo. Está na internet, mas sua qualidade não é grosseira. Os vídeos do Youtube às vezes são mal apresentados. Mas o “Porta dos Fundos” nunca foi malfeito. É um conteúdo que poderia migrar para outra plataforma com uma qualidade bem significativa. Um caminho de outras plataformas, como a internet, é a experimentação. Você não pode testar em broadcasting, não pode correr esse risco porque envolve um caminhão de dinheiro. A tecnologia hoje é secundária. A valorização é do formato, do roteiro.
PB – A tecnologia é secundária em que sentido?
Garcia – No sentido de que não é o fator determinante. Antes, os grandes grupos econômicos detinham também a capacidade de investimento, tinham os melhores equipamentos. Hoje, há uma tecnologia que resolve em Full HD com uma câmera pequena. Então, o que vai valer são as histórias, os formatos, a dramaturgia. O Brasil tem de se concentrar nisso agora. Quanto mais conteúdo qualificado, mais oportunidades terão os produtores no Brasil e no exterior. A tecnologia pode ser alugada.