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Eles não querem ficar de papo para o ar
Por: ALBERTO MAWAKDIYE
É quase um ritual que se repete todas as manhãs de sábado. Lá vai seu Joaquim levando os vidros de mel para a principal feira livre do Tremembé, um arborizado bairro nas vizinhanças do Horto Florestal, na zona norte da cidade de São Paulo, considerado pelos moradores um comércio de rua absurdamente caro, mas que é conhecido, também, pela qualidade excepcional das mercadorias que oferece. Seu Joaquim expõe os produtos na barraca de acepipes de um amigo feirante, bastante frequentada pela freguesia, e onde o mel, puríssimo, que produz em sua chácara em Juquitiba, na Grande São Paulo, já virou atração.
“As pessoas vão até a barraca só pra comprar o meu mel”, diz orgulhoso seu Joaquim, como é conhecido esse fluminense de Niterói, que vive em São Paulo desde 1961. Seu nome verdadeiro é Jobst Joachin Anton Ebeling, de ascendência alemã, uma particularidade que se vê logo na fisionomia e na tez da pele. Entretanto, o sotaque carioca não esconde sua brasilidade. “Aposentado é mais brasileiro do que qualquer outro cidadão, porque, se os brasileiros já sofrem para sobreviver, o aposentado sofre mais ainda”, diz ele. Seu Joaquim tem 78 anos, trabalhou desde a adolescência como bancário, comerciário e principalmente industriário e, por conta de sua fluência em alemão, militou em várias filiais de empresas germânicas no país.
A satisfação que sente por sua trajetória profissional não esconde, porém, o desapontamento. “Uma vida inteira na labuta para receber na velhice, a título de aposentaria, apenas R$ 1.147,00”, queixa-se ele. “Se não fosse a produção de mel, teria de depender dos filhos. A sorte é que adoro o que faço, meu pedacinho de terra fica em uma região cheia de árvores e a atividade que desenvolvo é um misto de lazer e de trabalho.”
Muitos aposentados não têm a sorte de seu Joaquim, a de juntar o útil ao agradável para complementar a renda, tendo de trabalhar no que der e vier para sobreviver. É uma luta que a maioria dos brasileiros em idade economicamente ativa não imagina e pouca ideia faz da quantidade de pessoas que se encontra nessa situação. E pensar que o sonho de todo trabalhador é de um dia se aposentar e passar a viver no bem-bom. Pode até ser que, durante o tempo em que ditou seus passos pela Carteira de Trabalho, tenha feito um gordo pé-de-meia. Na prática, contudo, não é isso que se vê, já que a maior parte dos assalariados não consegue poupar. Como se aposentam relativamente cedo, o número total de aposentados que continuavam trabalhando chegou a 5 milhões no ano passado, segundo levantamento da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). É mais do que a população do Uruguai, que não chega a 4 milhões de habitantes. O estudo levou em conta tanto os aposentados do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) quanto os de outros sistemas.
“A proporção de aposentados que continuam ou voltam à ativa também vem aumentando”, diz Marcelo Guerra, sócio do Instituto Somatório, que realizou no final de 2013 a segunda rodada da pesquisa quadrianual feita para grandes empresas, de modo a traçar o perfil dos participantes desse segmento. “Um em cada quatro brasileiros aposentados continuava na ativa no ano passado. Em 2009, era um em cada cinco.” Para Guerra, há várias razões combinadas para explicar esse crescimento, como o aumento da expectativa de vida – que saltou de 62,5 anos, em 1980, para pouco mais de 73 anos, no ano passado –, a baixa taxa de desemprego e a disseminação de uma cultura que recomenda o trabalho como o melhor caminho para a realização pessoal.
Autônomos e na informalidade
“A bem da verdade, o principal motivo alegado é sempre o mesmo: o baixo valor da aposentadoria”, diz Guerra. “O medo de uma queda no padrão de vida – questão bastante factível – é o que mantém os aposentados no trabalho ou o seu retorno ao mercado depois de já terem recebido o benefício.” De acordo com o sócio do Instituto Somatório, é por isso que não chega a surpreender o alto percentual de aposentados de maior nível de escolaridade e pertencentes aos estratos sociais mais altos, participando em grande escala do mercado de trabalho. De fato, na classe A um terço dos aposentados são ativos, enquanto nas camadas B, C e D a participação cai para 30%, 25% e 13%, respectivamente. Ou seja, as classes que mais teriam a perder são as que continuam trabalhando depois da aposentadoria.
A condição profissional dos aposentados que prosseguem na ativa é complicada para todas as faixas de renda e graus de instrução: 70% deles trabalham como autônomos e, na esmagadora maioria dos casos, na informalidade. E de cada quatro aposentados em franca atividade, pelo menos um teve de assumir uma função diferente da que exercia anteriormente. Só uma minoria volta a ser assalariada, embora, pelo menos nos últimos dois anos, o maior crescimento da População Economicamente Ativa (PEA) tenha sido registrado nas faixas etárias acima de 50 anos. Nesse período, o mercado de trabalho formal, com carteira assinada, absorveu 52% mais de indivíduos acima dos 60 anos do que há cinco anos.
“O Brasil vive um momento de pleno emprego e há demandas de mão de obra não atendidas principalmente nas áreas da construção civil, mecânica, eletrotécnica, administração e vendas”, diz Fernanda Diez, gerente de relacionamento da empresa de recrutamento Vagas Tecnologia (vagas.com). “Para muitas empresas, o trabalhador aposentado é atraente porque traz experiência, demonstra comprometimento e vontade de crescer junto com a companhia. É diferente do trabalhador da geração atual, que é mais imediatista e nem sempre veste a camisa da contratante.” Uma pesquisa com 476 entrevistados, com média de idade de 68 anos, feita pela Vagas Tecnologia, comprova essa tendência. Entre os 53% que se declararam inativos, 36% receberam pelo menos uma oferta para retornar ao trabalho nos últimos meses. Dos 47% que continuavam empregados após se aposentarem, 80% pretendiam trocar de empresa e 36% desejavam ganhar o dobro do salário atual.
Esses seriam, entretanto, os “privilegiados” entre os aposentados que se recusaram a vestir o pijama, bafejados com bons contatos no mercado e maior qualificação profissional. Pois o que predomina mesmo é a informalidade e também quase sempre a precariedade do trabalho. Não há empregos de qualidade para todo mundo.
Vejamos o exemplo de Geraldo Alves dos Santos, eletricista de profissão. Ele se aposentou faz tempo, mas chegou à casa dos 70 anos trabalhando e, assim como 70% dos aposentados brasileiros, é o principal responsável pela renda da família. Bem conceituado no seu ofício e oferecendo serviços na área de reformas domésticas, na região de Vila Mariana, zona sul da cidade de São Paulo, Santos é obrigado a “fazer de tudo” para encorpar os rendimentos. “Ofereço meus préstimos também como carpinteiro, encanador, jardineiro, marceneiro e pintor porque só com o serviço de eletricista não dá para me manter, pois a procura não é suficiente”, justifica-se. “Tive de aprender no grito essas profissões, já que minha aposentadoria é de pouco mais de R$ 1 mil”. Em algumas dessas tarefas, Santos recorre a auxiliares: por causa da idade, tem dificuldade para subir em forros e telhados, portanto, precisa dividir os ganhos.
São numerosos os aposentados – ou em idade de se aposentar – que continuam em atividade, não por questões econômicas, mas porque gostam do que fazem ou não aguentam ficar em casa, longe dos ofícios que desempenharam, às vezes, durante uma vida inteira. É nesse nicho que estão muitos artistas, intelectuais, políticos e empresários. Antônio Ermírio de Moraes (falecido aos 86 anos em agosto deste ano) era o presidente de honra do Grupo Votorantim. A mesma idade da grande dama do teatro brasileiro, Fernanda Montenegro, e da polêmica economista Maria da Conceição Tavares, que, aos 84 anos, ainda continua dando aulas na universidade.
A um passo da depressão
Essas destacadas referências da sociedade brasileira são, nesse aspecto, colegas de pessoas simples que se encontram na mesma situação, como João Inácio de Freitas, um trabalhador também na casa dos 80 e que prossegue firme e forte comandando a Vidraçaria Freitas & Freitas, na zona norte da capital paulista – em parceria com o filho Tito e um de seus netos. De origem portuguesa, Freitas fundou o negócio em 1977 e foi tão bem-sucedido que, se quisesse, poderia hoje passar todo o tempo desfrutando da confortável casa de campo que construiu na zona rural do município de Mairiporã, na Serra da Cantareira, Grande São Paulo. Mas prefere trabalhar todo santo dia. E não se trata de um trabalho administrativo, longe disso: Freitas gosta mesmo de instalar pessoalmente os boxes de banheiro, as claraboias e as vidraças, mesmo nas situações mais difíceis.
Carlos Andreu Ortiz, presidente do Sindicato Nacional dos Aposentados e diretor do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e Mogi das Cruzes, um dos maiores do país, entende bem as razões de João de Freitas e de tantos outros aposentados que não querem ficar em casa sentados em cima das mãos. Veterano militante sindical que participou por mais de uma década da comissão de fábrica da Ford no bairro paulistano do Ipiranga, Ortiz lembra-se da profunda melancolia de alguns operários daquela unidade ao se aposentarem. Diz que eles sempre visitavam a empresa e tomavam um cafezinho com os antigos colegas como forma de matar a saudade, uma rotina que se estendeu por anos a fio. “A verdade é que muitos aposentados não sabem o que fazer com a nova vida”, observa Ortiz, que em 2012 foi secretário do Trabalho e Emprego do Estado de São Paulo. “Nunca participaram muito da vida doméstica e se sentem deslocados da vida diária com a própria esposa e filhos, vivendo perigosamente próximos da depressão.”
Para o sindicalista, que se aposentou aos 44 anos (hoje tem 62), o país precisa olhar de frente para esse problema, que ele acha tão grave quanto o do aposentado que continua a trabalhar por falta de renda. “É preciso multiplicar os cursos de requalificação profissional, dar ao aposentado melhores condições para montar pequenos negócios, ensinar-lhe a desfrutar mais o lazer, a cultura”, sugere. “Temos de fazer alguma coisa para que as pessoas aproveitem melhor a aposentadoria.”
Ortiz acredita que a falta de uma boa inserção dos aposentados no tecido social é causa de transtornos não apenas para eles, mas para toda a sociedade, inclusive para os jovens. “Há hoje muitos aposentados no Brasil que são contratados para ocupar o lugar dos mais jovens, mas que acabam percebendo pagamentos irrisórios e atuando em condições de trabalho longe do ideal”, diz. “O mau equacionamento da aposentadoria no Brasil é uma das causas diretas do desemprego entre os mais jovens.” De fato, hoje 18,4% das pessoas até 29 anos não trabalha nem estuda, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Outro estudo, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), apontou que 46% dos brasileiros sem emprego têm entre 15 e 24 anos. “O Brasil oferece bastante emprego, mas a realidade para os mais jovens é bem diferente”, comentou o secretário-geral da OCDE, Angel Gurría, quando da divulgação da pesquisa. “Pessoas mais velhas com emprego e jovens desempregados são um sintoma claro de mau planejamento.”
Os rombos da Previdência
O fato de os brasileiros se aposentarem muito cedo – a média de idade é de 55 anos, embora a idade mínima para o recebimento do benefício integral seja de 65 anos para os homens e de 60 para as mulheres – coloca o país na segunda posição entre os mais ameaçados de ver seu sistema previdenciário ruir por falta de recursos. A conclusão é de um estudo internacional divulgado neste ano pela seguradora Allianz, realizado em 50 países de todos os continentes. De acordo com o trabalho, a idade média da aposentadoria no Brasil é igual apenas à da Turquia e da Tailândia (a pior do ranking). Nos outros países, ela é superior e na maioria deles ninguém começa a receber benefício antes dos 60 anos. Na Austrália, que ocupa o topo da lista das nações com os melhores sistemas, o benefício é pago somente a partir dos 65 anos.
A situação da Previdência brasileira é ruim porque há também alguns fatores extras jogando contra, como é o caso do déficit crescente do sistema. A Previdência Social fechou 2013 com passivo de R$ 51,2 bilhões, uma elevação de 14,8% sobre o rombo de R$ 44,6 bilhões registrado em 2012. Em 2013, a arrecadação previdenciária somou R$ 313,7 bilhões e a despesa alcançou R$ 364,9 bilhões. Em 2012 esses números foram, respectivamente, de R$ 299,5 bilhões e R$ 344,1 bilhões. Outro complicador é a futura redução do número de contribuintes devido ao esperado envelhecimento da população nos próximos 30 anos.
Para o economista Marcelo Caetano, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o governo só conseguirá reverter esse quadro se impuser uma idade mínima maior para a aposentadoria nos próximos 10 ou 15 anos, e decretar o fim de alguns benefícios mais específicos, como o pagamento de pensões por morte sem a exigência de idade mínima do beneficiário. “É certo que o assunto é como um vespeiro, político nenhum vai querer mexer”, fala Caetano. “Mas não há como fugir dele se o país quiser dispor de um sistema previdenciário minimamente eficiente.”
Os direitos dos idosos
A população idosa no Brasil está longe de ser bem assistida pelo Estado. O país ocupa o 40º lugar no ranking mundial dos cuidados dispensados aos mais velhos, de acordo com levantamento da consultoria internacional Natixis Global Asset Management, que comparou a situação dos idosos em 150 países. Além de não serem muito bem tratados, os idosos brasileiros também tendem a se endividar. Segundo dados do Banco Central, o saldo das dívidas de aposentados e pensionistas na modalidade de crédito consignado cresceu 27% nos últimos três anos, de R$ 52,5 bilhões para R$ 66,8 bilhões. O aumento é quatro vezes maior que o reajuste real de 5,2% dos benefícios pagos pela Previdência a esse grupo, e quase três vezes superior ao crescimento de 7% no número de aposentados e pensionistas.
O fato é que muitos brasileiros de idade mais avançada não conhecem seus direitos. Para atenuar a situação, o Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP), em parceria com a Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) e outros órgãos, lançou neste ano o Guia Prático de Direitos da Pessoa Idosa. “A publicação é destinada a orientar os idosos sobre os seus direitos em relação à cultura, à educação, ao esporte e lazer, à família, à inclusão digital, à saúde, entre outros temas”, explica Maria Candida Soares Del Masso, coordenadora do Núcleo Central da Universidade Aberta à Terceira Idade (Unati), da Unesp, que mantém diversos programas para o atendimento de idosos e aposentados. O principal deles talvez seja a própria universidade aberta, uma das mais amplas nesse segmento no país: funciona em 21 cidades paulistas, oferecendo mais de 70 cursos, de poesia e tricô ao tai chi chuan, sendo que os mais procurados são os de língua estrangeira e os ligados à área de informática – isso mostra que pelo menos uma parte dos alunos tem intenção na requalificação profissional.
Para participar dos cursos o candidato precisa ter no mínimo 55 anos e condições de locomoção própria até o local onde as atividades são realizadas. Não é exigido nível de escolaridade. Em 21 anos de atividades, já passaram pelos cursos da Unati mais de 105 mil estudantes idosos.