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Desafios do crescimento
Claudio Salvadori Dedecca é professor titular de economia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com especialização na área de economia social e do trabalho. É professor e pesquisador visitante de universidades estrangeiras, consultor e assessor especialista em temas de emprego, distribuição de renda e pobreza. Foi presidente da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho. É autor do livro Multidimensionalidades da Pobreza, publicado em 2013.
Esta palestra, com o tema “Desafios para o Crescimento Brasileiro”, foi proferida no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Fecomercio, Sesc e Senac de São Paulo, no dia 10 de abril de 2014.
Não sou um economista que mexe com questões fiscais ou financeiras. Minha especialidade é a discussão das políticas públicas econômicas e das públicas voltadas para o campo social – educação, saúde e trabalho. Portanto, as ideias que vou expor expressam em grande medida uma trajetória de trabalho e um campo de preocupações que com certeza são limitados. As questões que vou colocar na verdade têm orientação muito forte para uma discussão sobre crescimento, contemplando a questão social, um movimento distributivo que de certo modo já estamos trilhando.
É importante entender as restrições desse movimento distributivo que tivemos nos últimos 14 anos e, mais do que tudo, aceitar que isso está em nossa realidade, independentemente de nossa vontade. Em segundo lugar, entender que provavelmente qualquer crescimento futuro do país deverá contemplar a questão social, indispensável numa situação de aprofundamento democrático. E o terceiro ponto é que o enfrentamento da questão social no Brasil pode ser uma alavanca importante para o crescimento. Muitas vezes vemos a questão social como um custo e não como um vetor significativo de estímulo ao crescimento.
Outro aspecto também importante a explicitar é que a partir de meados de 2013 o país entrou numa onda de pessimismo muito acentuada, em grande medida alimentada pelo mercado financeiro. Quando a taxa de juros começou a se aproximar significativamente da taxa de inflação, iniciou-se um movimento claro de pressão pelo aumento dos juros e esse foi o foco inicial de tensão no campo econômico, um campo já razoavelmente complexo, e se construiu uma visão muito pessimista em termos de perspectivas. Não compartilho dessa posição, pois dificilmente o Brasil conhecerá uma recessão nos próximos anos. Nas crises passadas, a restrição na balança de pagamentos, isto é, a ausência de divisas, e a restrição energética sempre foram o nosso calcanhar de aquiles. A crise internacional emergiu, sofríamos de dependência energética e não tínhamos dinheiro para importar. Em 1986, durante o Plano Cruzado, de cada três dólares que o país utilizava no comércio internacional, dois destinavam-se à importação de petróleo. O cenário hoje é bem distinto. Nossa dependência energética é relativamente reduzida e nos próximos três ou quatro anos, por mais trapalhadas que se faça na Petrobras, a estatal deverá garantir nossa autossuficiência no campo energético.
Esse é um aspecto importante para se discutir e meu ponto de partida vai nesta direção: o país não terá dificuldade para crescer 2%, como estamos vendo nos últimos anos. É uma possibilidade razoavelmente aberta. O maior desafio não é crescer 2%, mas 4%, 5% ou 6%, um crescimento mais robusto. Uma expansão de 2% gera uma situação muito estranha, porque, quando estamos numa recessão, a economia como um todo vai mal. Há setores que vão mal e outros bem, é um comportamento heterogêneo do ponto de vista da estrutura produtiva. É importante ter isso em mente, e a pergunta é como dar homogeneidade a esse crescimento. Esse é o desafio, que não é de curto prazo, mas de médio e longo prazo.
Padrão de investimento
Estamos num momento crítico em termos de tomada de posições em relação ao futuro do crescimento brasileiro. Há poucos dias, o ex-ministro João Paulo dos Reis Velloso escreveu sobre isso, afirmando que na década de 1970, quando o crescimento brasileiro travou, buscamos montar um padrão de investimento que permitisse viabilizar o crescimento a médio e a longo prazo. Em sua opinião, isso é uma coisa que nos falta no momento presente. Então esse ponto é uma questão chave. O padrão de investimento é que vai definir em grande medida se esse crescimento será mais ou menos distributivo ou inclusivo.
A primeira questão é a seguinte: nosso crescimento foi em grande medida realizado a partir de capacidades produtivas, tecnológicas e humanas que o país tinha. Não aumentamos a qualificação na mão de obra e a melhora do padrão tecnológico também foi muito marginal. Nosso aumento da capacidade produtiva também foi localizado em alguns setores, como o automobilístico.
A continuidade do crescimento a taxas mais elevadas depende hoje do investimento. Reduções futuras da desigualdade encontram-se dependentes não só das taxas de crescimento, mas do perfil do investimento que realizaremos. Esse é um ponto chave. O padrão de investimento deverá ser, portanto, instrumento estratégico, seja para crescer, seja para superar problemas sociais e reduzir a desigualdade. Questões tributárias e fiscais são básicas, precisam ser devidamente equacionadas. Isso é fundamental para estimular o investimento, mas não é suficiente para viabilizá-lo. A viabilização do investimento depende de outras coisas – políticas setoriais, condições de financiamento e marcos regulatórios –, porque é um dos aspectos em que o governo na verdade não tem nenhuma clareza.
Quando olhamos a queda da desigualdade ocorrida na década passada e toda a propaganda que se faz em torno disso, trata-se de uma redução da desigualdade que se explica pelo aumento da renda das famílias, isto é, com o dinheiro que elas recebem mensalmente. Isso foi potencializado pelo crescimento do emprego e pelo crédito. Outra questão diz respeito ao patrimônio e disso pouco se sabe no Brasil. E uma terceira dimensão relativa à redução da desigualdade cada vez mais importante diz respeito ao acesso à água, ao saneamento e a outros bens públicos.
Todos esses vetores que explicam a desigualdade estão escritos na Constituição brasileira de 1988 como direitos que o Estado deve garantir aos cidadãos. É importante falar disso porque ou retiramos essas coisas da Constituição ou mais cedo ou mais tarde o país terá de cumpri-las. É difícil que numa democracia a sociedade ignore os problemas a serem enfrentados no seu processo de desenvolvimento. Em governos autoritários talvez se possa passar por cima deles, mas numa democracia é muito complicado. Mesmo porque a cada ano o Ministério Público dependura essa conta crescente sobre o Estado. Um dos exemplos é a judicialização da saúde, isto é, se não tenho acesso a um tratamento, vou à Justiça e ela, baseada na Constituição de 88, manda cumprir. Esse processo não ocorre em outras áreas porque ainda não se iniciou esse movimento, mas não tenham dúvida de que ocorrerá.
Salário mínimo
Quando analisamos a evolução da renda nos últimos anos, verificamos que a redução da desigualdade esteve fortemente associada a uma política. Em relação ao salário mínimo, hoje há uma regra que estipula um aumento progressivo e lento. Se tirarmos essa regra, tenho certeza de que a discussão voltará a ser a de dobrar o salário mínimo em dois anos e triplicá-lo em quatro ou oito anos. A regra progressiva tem vantagens e desvantagens, mas na verdade retirou um ponto de tensão dentro da política pública. Para ter uma ideia do tamanho do problema que a questão do salário mínimo carrega, se retirarmos a lei, uma discussão possível seria cumprir o salário mínimo de 1940, que hoje estaria em torno de R$ 3,5 mil a R$ 4 mil, segundo o Dieese [Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos].
A queda da desigualdade está fortemente associada à renda do trabalho. A inclusão no mercado do trabalho com a política do salário mínimo foi o elemento decisivo ao longo dos últimos anos. Também houve uma queda significativa da pobreza, sendo que desde 2009 o nível de pobreza de natureza monetária está estancado. Não é à toa que o governo vem adotando novas medidas complementares.
Vale dizer também que há um comportamento paralelo do emprego em relação ao PIB [Produto Interno Bruto]. Não é à toa que o governo fazia todo um alarde em torno da geração de emprego, porque os indicadores que tivemos durante a década passada até o meio desta eram espetaculares. Não foi ruim a redução da taxa de desemprego no país, mas por outro lado temos um problema que deveríamos ter trabalhado e não o fizemos até este momento. Se há um crescimento do emprego semelhante ao do PIB, percebam que de 2009 para cá esse crescimento ficou ainda mais aderente ao comportamento do PIB, com uma relação produto/emprego muito próxima de 1. Do ponto de vista econômico, isso significa que a produtividade da economia brasileira está estancada em termos médios. Foi por isso que afirmei que voltamos a crescer explorando capacidades existentes. É uma economia que voltou a crescer, teve até taxas de crescimento substantivas, mas com uma dificuldade fenomenal de aumento da produtividade. Como não temos uma dinâmica de produtividade, de fato, sempre que aumentar a atividade econômica, crescerá o nível de emprego na mesma proporção. Portanto, numa situação de mercado de trabalho enxuto, isso é um problema, porque os salários com certeza vão crescer muito mais aceleradamente. Mas há um problema do ponto de vista do investimento das empresas e do financiamento do Estado. Na verdade, se houvesse crescimento com aumento de produtividade, provavelmente o financiamento do Estado seria beneficiado.
Esse é o nosso calcanhar de aquiles, porque não há possibilidade de crescer a médio e a longo prazo com uma dinâmica de produtividade dessa natureza. Não há teoria econômica de qualquer linha que justifique o país crescer com esse padrão. Vale a pena ressaltar que se trata de uma coisa nova, mas já deveríamos ter percebido que temos de tomar alguma medida em relação a isso, porque, se a produtividade não cresce, é um sinal de que a indústria está perdendo espaço. Estamos cada vez mais dependentes dos serviços e mais cedo ou mais tarde virá uma inflação desse setor, não do industrial. Havia já sinais desde 2008, pelo menos foi quando comecei a me preocupar com a questão, de que esse padrão de crescimento necessitava ser devidamente analisado.
Mas acontece que a distribuição de renda melhorou, a massa de renda cresceu a uma velocidade espantosa. E o aumento da renda média fez com que nos extratos inferiores os rendimentos sofressem expressivo aumento. Associado com a bancarização e com a elevação do crédito, isso levou o governo a olhar o movimento como extremamente positivo, independentemente do comportamento da produtividade. O que há de mal nisso? O fato em si não tem nenhum problema, mas quando se presta atenção às condições que estão alimentando esse processo, fica mais complicado. Uma coisa é o Estado fazer propaganda política, outra é o que ele deve fazer como lição de casa e que não fez.
Efeito China
Se não bastasse isso tudo, comparemos a evolução do salário mínimo nominal com a dos preços dos equipamentos domésticos. Em 2012, qualquer pessoa comprava quatro vezes mais bens eletrônicos do que no ano 2000. Aumentou o emprego, cresceu a renda e o crédito e uma parte dos bens tem os preços congelados. Uma televisão que custava X no ano 2000 em 2012 custa X dividido por quatro. É o efeito China, foram os chineses que nos permitiram chegar a essa situação. Entretanto, isso acabou, porque derivou da valorização cambial, que chegou ao limite e inverteu a trajetória. Do ponto de vista econômico, é um efeito muito potente, não é à toa que o Brasil ganhou uma proeminência muito grande no cenário internacional, porque teve aumento de emprego e de renda, o que favorece o padrão de consumo de modo muito substantivo. O que não aconteceu só conosco, nos Estados Unidos vemos a mesma situação, um barateamento de bens de consumo eletrônicos muito significativo.
Vejamos o efeito disso sobre as contas públicas. Quando se fala em contas públicas sempre se coloca o aumento da carga tributária, que de fato bateu 36% em 2012. Mas é importante olhar, por outro lado, que não só cresceu a carga tributária, mas a arrecadação do Estado aumentou 60% num espaço de dez anos. Se a população tem renda para consumir, esse movimento gera renda para o Estado reativar políticas sociais e investimentos. A dificuldade é que, em grande medida, o aumento da receita pública esteve associado à ampliação dos gastos sociais e o investimento ficou relativamente limitado. A confluência do modo de crescer e de distribuir gera um efeito muito substantivo do ponto de vista da desigualdade de renda, inclusive um efeito de bem-estar para a população, porque passa a ter um conjunto de bens que não tinha até então. Sem querer fazer uma discussão sobre esse assunto, nos últimos 14 anos se valorizou o acesso ao consumo, que foi explorado politicamente.
Analisando as condições de vida da população, pode-se perceber que entre os mais pobres, apesar da redução da desigualdade, o desemprego é alto, a informalidade é elevada e o aumento da dependência da proteção social é crescente. Apesar de todo o movimento que tivemos no mercado de trabalho formal, os mais pobres não entraram nele. Ao contrário, ficaram fora e estão vinculados a políticas de transferência de renda. É disso que estamos falando e obviamente não se trata de uma questão menor. Um dos motivos é que, quando o crescimento declina, a capacidade de gasto do Estado com a transferência de renda também cai e se estabiliza o nível de pobreza monetária. Portanto, essa é uma das dificuldades que o movimento engendrou e até hoje não tratamos do assunto.
Outro aspecto diz respeito à demanda social. Estou tratando aqui exclusivamente da população foco da política do governo federal chamada Brasil Sem Miséria. Uma em cada três famílias não tem acesso a água e esgoto, 20% delas não têm água encanada, 30% não possuem coleta de lixo, 31% não têm domicílio minimamente apropriado, sem falar na questão da saúde. Portanto, se quisermos reduzir a desigualdade, esses são setores que necessitam ser devidamente ativados. Houve de fato uma redução da extrema pobreza, mas ainda há uma carência social muito grande.
Nos indicadores de educação há uma melhora na taxa de analfabetismo. Hoje ela é cada vez mais direcionada aos adultos. Vai ser muito difícil reduzi-la pela política pública, dependendo da estrutura demográfica da população. Mas a taxa de escolarização das crianças de 6 a 14 anos é alta. A defasagem caiu, mas é substantiva. E a incidência de ensino médio e ensino superior é muito pequena. Colocamos todo mundo na escola básica, só que temos um problema de qualidade e o acesso ao ensino médio e ao ensino superior depende não só da melhora na qualidade quanto do investimento no ensino médio e superior. Trata-se de um segmento da política pública que demanda um investimento cavalar.
No caso da saúde, a taxa de mortalidade infantil da família pobre é muito semelhante à da família de maior renda, isto é, caiu significativamente. Mas pode-se perceber a seguinte situação: se olharmos a queda da mortalidade infantil por idade das mães, vemos que entre as famílias mais pobres a gravidez na adolescência é o que explica em grande medida a diferença na taxa de mortalidade entre os pobres e as famílias de maior renda. Reduzimos a mortalidade infantil, mas agora precisamos orientar a política para a reprodução humana e com preocupações com os jovens, já que o problema de gravidez na adolescência também está associado ao uso de drogas, ausência da escola etc., problemas significativos da desigualdade.
Montanha-russa
Quando olhamos a tendência de crescimento do país, nos últimos 14 anos, percebemos que o consumo é o lastro desse crescimento, com uma estabilidade invejável ao longo do período. O investimento na verdade é uma montanha-russa e isso fica explicitado inclusive com as taxas de crescimento. Em 2002, foi de 2,66%, depois, 1,1%, vai a 5,7%, cai para 3,1%, sobe para 4%, chega a 6%, volta a 5%, depois cai a -0,33% em 2009, sobe a 7%, desce a 2,7% e a 0,8% em 2012, que é o último dado. Também é importante perceber que quando o investimento vai bem o crescimento do PIB apresenta as taxas mais elevadas. O consumo é o lastro do crescimento, mas o país cresceu mais significativamente nos anos em que o investimento acelerou.
Sou de opinião que a conjunção de fatores que tivemos no ano passado, que favoreceu o crescimento lastreado no consumo e reduziu a desigualdade, cumpriu uma função importante, mas possivelmente chegou a seu limite. A transferência de renda quase se universalizou, o salário mínimo já tem uma regra relativamente estável, enxugamos o mercado de trabalho, portanto, o crescimento do emprego não vai ser significativo e o efeito China, via taxa de câmbio, também não deverá ser mais um fator positivo nesse processo, porque a tendência da taxa de câmbio não é de ficar em R$ 1,60 ou R$ 1,50, mas de ir pelo menos para R$ 2,20, que é o patamar em que se encontra neste momento. Mais: parece que aquela dinâmica de ausência de crescimento da produtividade chegou ao limite e um dos indicadores obviamente é a situação do mercado de trabalho. Portanto, dependemos disso. É preciso investir para gerar capacidade, para aumentar de modo ponderável a produtividade da economia.
Não estou tirando um coelho da cartola. Isso foi o que fez a Coreia do Sul e é o que está fazendo a China. Neste país na década de 1990 e parte dos anos 2000 começou um movimento de internalização de empresas internacionais com produção voltada para o mercado externo e interno sem dinâmica tecnológica, porque copiavam os produtos ou simplesmente faziam a montagem. Nos últimos dez anos, a China está migrando dos setores de menor complexidade para os mais complexos. Tanto é assim que tem um produto melhor do que o da Apple, com tecnologia própria e todos os componentes produzidos por ela. Migrou de um crescimento lastreado no consumo para um crescimento induzido pelo investimento. Nós não fizemos isso, ficamos com nosso crescimento ancorado no consumo e na exportação de commodities – minério de ferro e produtos agrícolas.
Está claro que precisamos reativar o investimento, não há muito a acrescentar a isso. A questão que interessa é que não basta voltar a investir e crescer, é preciso saber em que setores vamos investir, porque há setores que só vão reproduzir a desigualdade e outros que vão contribuir para reduzi-la. Mais do que isso, há setores que a médio e a longo prazo são sustentáveis e outros que não são. Nosso crescimento foi alicerçado muito nesses dois setores que hoje apresentam problemas enormes do ponto de vista da estrutura econômica e social. Um exemplo é o complexo automobilístico. O Brasil não para de aumentar a capacidade de produção de veículos e também do caos urbano. Fazemos desoneração desse setor, o que pode ser importante para sustentar o crescimento no curto prazo, mas deveríamos estar discutindo outra questão: queremos saber o que fazer com o complexo automobilístico no médio e longo prazo. Resolver no curto prazo é enxugar gelo, porque se vende mais um pouquinho, daqui a pouco surge mais um gargalo e vamos de desoneração em desoneração, porque não sabemos o que fazer com esse setor, a não ser dar benefícios fiscais seletivos sem nenhuma estratégia do ponto de vista de médio e longo prazo.
Nos outros complexos produtivos que dizem respeito à área social, por exemplo, no saneamento, os impactos positivos são muito maiores do que os efeitos negativos. No setor automobilístico, ao contrário, os efeitos negativos são muito maiores do que os positivos. Qual será o preço a pagar no futuro para resolver o caos urbano, danos ao meio ambiente e até a sucata que o setor produz? Não estamos hoje utilizando recursos públicos na ampliação de vias para o automóvel, retirando dinheiro para ampliar o investimento no setor público? Os efeitos positivos do crescimento alavancado desses segmentos são poucos quando comparados com outros setores. O setor da saúde, em termos de dinâmica tecnológica, hoje dá de dez a zero no complexo automobilístico.
Longo prazo
São vários os complexos produtivos que podem contribuir para um crescimento de longo prazo para o país, com redução da desigualdade. Obviamente temos de discutir qual é o modelo de regulação que recai sobre eles, isto é, como a sociedade brasileira olha a partilha entre o público e o privado nesses setores. Estamos fazendo essa discussão? Não, o debate é muito pequeno. Vide as trombadas que o próprio governo teve nas mudanças de marco regulatório em alguns setores. Na verdade precisamos olhar as coisas a médio e longo prazo, isto é, não para resolver o crescimento do país em 2014, 2015, 2016, mas para 2019 ou 2020. Se não fizermos isso, os investimentos nesses complexos não virão.
Aqui fica muito claro que ou olhamos nossos entraves de médio e longo prazo como fatores decisivos para o crescimento do país ou obviamente ficamos com o martírio da política fiscal e monetária, redução do gasto do Estado, aumento da taxa de juros, enfim, prisioneiros da política econômica que, na verdade, é nossa tradição desde a crise da década de 1980. De certo modo o país vem manipulando de maneira razoavelmente eficiente desde 1994 sua política monetária, fiscal e cambial, considerando que com isso o problema do crescimento do país está resolvido, mas de fato um crescimento mais sustentado e robusto de médio e longo prazo não se apresenta.
Para concluir: o nível e em especial o padrão de investimento jogam um papel decisivo para o crescimento brasileiro. O problema não está na questão fiscal, não está na política monetária, essas são políticas que devem ser manejadas, inclusive a política tributária, mas manejadas no sentido do que queremos a médio e longo prazo. A dinamização do mercado de trabalho obviamente é importante para o escopo de redução da desigualdade econômico-social e superação do estado de pobreza. É preciso crescer lastreado num padrão amparado no investimento e esse investimento hoje não está nos setores clássicos, está nos que têm um efeito social e econômico de natureza diversa dos setores pregressos. A sociedade tem de mudar isso, essa é uma discussão que está ocorrendo hoje na Europa e nos Estados Unidos: olhar a política social não como fonte de problemas, mas como elemento importante para o crescimento.
Um exemplo na área da cultura. A cultura hoje tem um potencial enorme para crescer, um mercado a ser explorado seja pelo setor público seja pelo privado, com uma capacidade fenomenal. Obviamente depende do marco regulatório, das políticas para o setor, talvez com um benefício para a sociedade brasileira muito maior do que o complexo automobilístico pode nos trazer. As concessões e o financiamento de investimento público produtivo podem reativar o crescimento a médio prazo. Desde 1994 o governo tem tomado medidas – privatização, concessões, mudança do marco regulatório da área energética – que do ponto de vista do curto prazo podem abrir frentes de crescimento, mas no médio e longo prazo devemos ter mais clara qual é a estrutura produtiva que este país quer ter daqui 15 ou 20 anos. Temos perdido tempo nesse aspecto. Outros países estão fazendo devidamente a lição de casa, a Coreia já fez e está ocupando nosso mercado. A China está fazendo. Ela pode acertar ou errar, mas está se movendo nessa direção e cada vez que ela se move de modo muito significativo o Brasil é beneficiado, porque aumentam nossas exportações.
Finalmente, um aspecto importante: o movimento de redução da desigualdade que fizemos acabou, se esgotou e pode ser lastro para uma configuração mais tranquila da sociedade brasileira. Agora, alterações mais substantivas na dimensão social dependem, por incrível que pareça, do padrão de investimento que venhamos a constituir. Nesse sentido, estamos num momento crítico, porque esgotamos de certo modo o grau de liberdade que tínhamos no crescimento lastreado no consumo e até hoje não definimos o que pode ser colocado no lugar. O que do ponto de vista do crescimento pode nos permitir chegar a 2%, mas é insuficiente para crescermos 5% ou 6% e darmos uma dinâmica mais homogênea à estrutura produtiva e continuidade à redução da desigualdade ou ao ataque da pobreza no Brasil.
Debate
ISABEL ALEXANDRE – Gostaria que o senhor falasse um pouquinho mais sobre a miopia e a resistência clara de setores públicos e privados com relação ao investimento na cultura como um investimento de mercado. Quando falo em cultura, refiro-me também à educação não formal, investimento em novos grupos, atores, peças e livros que não têm espaço no mercado porque não apresentam retorno imediato.
CLAUDIO DEDECCA – Essa miopia não é só em relação à cultura, mas também na saúde e educação. Isso está associado à ideia do industrialismo, ou seja, de que a base industrial clássica é o eixo do crescimento e desenvolvimento. Isso tem uma raiz histórica e inclusive para nós, na universidade, é um sofrimento publicar um livro didático. Como economista, tentei várias vezes, não consegui aprovação na Fapesp [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo], porque não é ciência, e dificilmente vou conseguir publicar. Se fizer um livro de autoajuda, tenho certeza de que a prioridade será muito maior.
Na questão da cultura, falta uma política, faltam questões regulatórias, além desse preconceito que é histórico. Temos de mudar, pois a cultura é fonte de crescimento muito significativa em vários sentidos, inclusive para a ativação da base produtiva.
FRANCISCO BARBOSA – Concordo plenamente com sua afirmação de que há uma impossibilidade de sustentar o padrão de crescimento atual, que é muito ruim. É um crescimento medíocre, mas concordo também que o que vem pela frente é pior do que o que ocorre atualmente. Estamos acostumados a ouvir os economistas falar sobre o que precisa ser feito, mas existe um ponto dramático, que é a falta de recursos, o que ocorre por duas ordens de razões. Primeira: o PIB cresce pouco e a renda não aumenta. O PIB não cresce como consequência da própria política econômica.
O Banco Central continua manipulando a taxa de juros com o fim de controlar a demanda, ou seja, o consumo. Só que o consumo não é sensível à taxa de juros, que para o consumidor está muito acima da taxa Selic [Sistema Especial de Liquidação e de Custódia]. Sensíveis à taxa de juros são a oferta, as empresas. Quando o governo eleva a taxa de juros, desarranja a oferta. Isso, combinado com um câmbio desfavorável, ou seja, o dólar muito baixo, é mortal. O que já vimos, desde 1982, várias vezes, em todas as crises mais graves, com Fernando Collor, depois com Fernando Henrique e agora com Dilma. Isso é desarranjador.
O PIB cresceu em 2009 porque foi negativo no período anterior, a taxa média é muito baixa. Nossa política é exatamente o contrário da China. Quem está certo, nós que crescemos pouco ou a China que cresce muito? Antes de cuidar da distribuição, precisamos promover o enriquecimento da população e sem crescimento não tem como a população enriquecer. O Estado também não vai ter recursos, aumentou a carga tributária substancialmente para poder atender a uma distribuição melhor da renda, mas não possui recursos suficientes, o que elimina o investimento.
O que me preocupa é que os entendidos não procuram as causas do que acontece, sempre falam em fins e consequências, mas ninguém se refere aos meios. Sou muito favorável a extinguir as políticas, porque são desarranjadoras.
CLAUDIO – Concordo. Não sei se fui devidamente explícito, mas desde 2008 nosso modelo de crescimento deveria ser debatido em suas consequências e não fizemos isso. A sociedade e o governo também surfaram nas benesses que aquele crescimento teve, sem questionar se ele trazia vantagens ou produzia desvantagens. Uma delas foi a valorização cambial, além da desindustrialização. Entretanto, não podemos cair numa situação do tipo “escolha de Sofia”, isto é, optar entre consumo e investimento.
O senhor tem razão, o aumento da taxa de juros desorganiza a oferta, não o consumo. Os dados indicam que se temos algum crescimento hoje no Brasil é por causa do consumo. Se reduzirmos o consumo, não tenho nenhuma certeza de que isso significará ativação do investimento. O padrão de crescimento lastreado no consumo sem investimento causa os problemas que o senhor colocou, mas reproduz uma base econômica com uma dinâmica de produtividade medíocre. E, no mundo da competição, ter baixa produtividade é a morte. Então parece óbvio que a médio e longo prazo isso não é sustentável.
Entre os economistas, alguns acreditam que para aumentar o investimento tem de reduzir o consumo, não há consenso. Minha posição é a seguinte: não dá para reduzir o consumo hoje. Se o fizermos, não vamos crescer nem 2%. O que temos de equacionar é como manter esse movimento de reprodução de consumo resistente e ao mesmo tempo criar condições para a ativação mais consistente do investimento de médio e longo prazo. Se nesse momento de ativação da base de investimento não forem definidos os setores que serão privilegiados, vamos ter resultados da desigualdade muito distintos. Não basta reativar o investimento, é fundamental discutir qual o padrão de investimento que será adotado.
FRANCISCO BARBOSA – Existe um volume fantástico de perda de recursos produtivos que o sistema tem, tanto do lado privado, por conta da política econômica, quanto do público. Quanto custa para a sociedade a elevada delinquência? Quanto custa a burocracia? Quanto custa esse inferno que a legislação trabalhista impõe às empresas? Quanto custa o Poder Judiciário que não funciona? Quanto custa a burocracia na importação e na exportação, na legislação tributária? Por isso temos uma carga tributária elevada. Se não mexermos definitivamente nessas questões, tudo vai piorar, o investimento não vai crescer, não poderemos nem sonhar com recursos para investir.
CLAUDIO – Com certeza precisamos modernizar o país. Todas as nossas instituições são de 70 anos e foram validadas pela Constituição de 1988. Essas instituições hoje organizam um conjunto de interesses amplo e complexo. Vamos ter de consertar a bicicleta sem parar de pedalar. Posso estar equivocado, mas creio que não há possibilidade de termos uma reforma radical do ponto de vista institucional. Só existem duas experiências no mundo de reformas institucionais profundas, as duas no pós-guerra. A primeira delas foi no Chile, numa situação de governo autoritário, que alterou radicalmente o marco regulatório, social e econômico. A segunda foi na Espanha, com o Pacto de Moncloa, na década de 1970, com o fim do governo de Francisco Franco e início do processo de democratização, também com uma reforma radical das instituições.
Precisamos melhorar a eficiência, sobre isso não há controvérsia. Que isso deve nos custar uma boa parte de nosso esforço em termos produtivos, também não tenho dúvida. A única diferença mais substantiva que colocaria em relação a seu argumento é a seguinte: essas mudanças são importantes para desobstruir uma retomada do crescimento, mas a médio e longo prazo o que vai viabilizar um crescimento mais sustentado e com redução da desigualdade é a ativação do investimento e o perfil desse investimento. Estamos valorizando muito as questões de curto prazo.
MANUEL HENRIQUE FARIAS RAMOS – De acordo com suas palavras, sem democracia não há como realizar todo o diagnóstico aqui levantado e lhe digo: não há democracia. Essa questão não foi levantada por mim, foi Norberto Bobbio, no final da década de 1970: liberdade e poder. Na medida em que concedo poder ao outro, estou abrindo mão de minha liberdade. Quanto mais poder delego, menos liberdade tenho. Nossas instituições não são autônomas, não são independentes, são viciadas. Quando se diz que a sociedade não fez sua parte, pergunto: ela teve ou tem a oportunidade de fazer escolhas? Ela não tem opção de escolha e a democracia não se explica só pelo ato de votar. Aliás, quem disse isso também não fui eu. Há 2.500 anos, em Atenas, Péricles foi questionado sobre o Peloponeso e desagradou os atenienses, mas estava discutindo uma questão de soberania em relação a Esparta. Ele afirmou que democracia não se explica pelo ato de votar, mas por aquilo que devolve ao cidadão.
O que nossa democracia está nos devolvendo? Começo a pensar que temos de encontrar uma solução. Não a do Chile, que é um desconcerto. Mas é possível uma mudança como no Pacto de Moncloa, em que a sociedade civil entrou. Não foi o Estado, não foram os políticos, porque quem está no poder resiste à entrega do poder.
CLAUDIO – Eu não usaria a posição de Bobbio sobre liberdade e poder, utilizaria mais a discussão que hoje baliza a ciência jurídica, que é a ideia de duas formas de construir a democracia, uma baseada na autonomia, que seria a liberdade na perspectiva do Bobbio, e outra a organização democrática lastreada na heteronomia, não semelhante à de Bobbio, mas uma em que o funcionamento da sociedade tem maior presença do Estado.
Na contraposição entre autonomia e heteronomia confrontam-se dois modelos, o anglo-saxão – Inglaterra e Estados Unidos –, e o da Europa ocidental – França, Alemanha e países nórdicos. Ambas têm vantagens e desvantagens. O Brasil optou por uma democracia de natureza heterônoma, uma opção histórica. A Constituição de 88 definiu claramente isso. Sinceramente, não acho que vou viver o suficiente para conhecer um país com uma perspectiva democrática que não seja essa que está escrita na Constituição. Portanto, temos de trabalhar com isso, é uma visão pragmática. Não descarto a possibilidade de outra democracia, mas esta é aquela em que eu vivo, para a qual posso contribuir. Não vou debater as questões do país sem considerar as restrições que ele carrega para o bem ou para o mal, com as vantagens e desvantagens inerentes a qualquer modelo de sociedade.
PAULO LUDMER – Ao colocar o crescimento do Brasil no altar, todos estão falando de coisas parecidas, mas penso que semanticamente não são idênticas. Cada um entende a qualidade e a natureza desse crescimento a seu modo. Concordo que política social tem de ser incluída como essencial e nuclear nesse propósito, mas não concordo com o “ilhamento” da economia do trabalho, ignorando dimensões imprescindíveis para um melhor aproveitamento e consecução desses objetivos, entre eles finanças, câmbio, gestão. Não se falou em gestão, em introdução de progresso tecnológico e outras questões.
Vou me ater a um só ponto: no Brasil há um divórcio absoluto entre os políticos legisladores e a sociedade, isso tornou o país um fio desencapado. A falta de voz da população é um problema seriíssimo, por isso ela vai às ruas de um modo difuso, apenas manifestando que não existem canais de comunicação de um lado e do outro lado um governo divorciado, sem agenda de nação, só com uma agenda de poder. Estamos numa situação dramática e não ajuda ficarmos exclusivamente na economia do trabalho, não nos ajuda a compreender, embora provoque reflexões.
EDUARDO SILVA – A respeito dos automóveis, o que chama a atenção é que são cada vez maiores e com mais conforto interno para transportar uma pessoa só e com valores muito altos também. O governo está equivocado ao estimular os bancos a financiarem cada vez valores maiores, em prejuízo do transporte coletivo, como os trens.
JOSEF BARAT – Duas observações. O PT foi formado no complexo mecânico metalúrgico, está no DNA dele, e também na fase final do Estado desenvolvimentista. A visão de longo prazo que o partido tem é para trás, não está enxergando o futuro. Com as mudanças que estão ocorrendo no mundo, a inserção do Brasil no processo de globalização fica prejudicada, justamente pela falta de visão das transformações que seriam possíveis. O padrão industrial americano se alterou radicalmente, hoje não depende mais da indústria. A Coreia também mudou seu padrão.
Segunda observação: nos anos 1970 tínhamos no IPEA [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada] uma missão da Usaid [U. S. Agency for International Development], chefiada por Albert Fishlow, que defendia a tese de que o investimento em educação era o grande motor da superação das desigualdades, como forma de combater a pobreza e elevar o nível das populações. Na época esse raciocínio era chamado de reacionário e de direita, porque o bom mesmo era o país investir na industrialização, pois com ela superaria a desigualdade. De lá para cá tivemos governos de direita e de esquerda, mas ninguém investiu em educação. A Coreia, nos anos 1960, tinha uma renda per capita inferior à do Brasil, era um país de analfabetos. Hoje é uma potência industrial. Então houve e há uma visão equivocada com relação a questões básicas, como educação, saúde, cultura. A política do governo federal é pobre, não oferece perspectivas de mudança, é uma visão de curtíssimo prazo. Existem barreiras institucionais, políticas, mas sobretudo a incapacidade de ter uma visão de longo prazo.
CLAUDIO – Não se trata de um divórcio dos economistas em relação à política. É um divórcio dos políticos brasileiros, um problema gravíssimo que eu não saberia tratar. A sociedade confia cada vez menos nos políticos. O PT de fato usa o retrovisor. Como dizia Pedro Nava, a experiência é um carro com o farol virado para trás. O problema atual é este: o governo não tem estratégia. A oposição tem menos ainda.
Na questão da educação, concordo que é fundamental. Não só ela, mas também saúde, segurança, um conjunto de políticas sociais. Não tratei de um aspecto fundamental, que é a fragmentação das políticas dentro do Estado. Estive na Secretaria do Tesouro para um debate e a direção do órgão me disse que não aguenta mais os ministros da área social pedindo verba para a saúde, para a educação, para o desenvolvimento social. Não há uma proposta articulada. Isso é um problema, a fragmentação do aparelho de Estado explica parte do mau uso dos recursos, independentemente da corrupção.
A Holanda é um país rico, com cidades pequenas onde funcionam a creche, a biblioteca, o atendimento básico à saúde e o centro de lazer. À noite a biblioteca fica aberta para a população, inclusive com jogos e cursos, é um ambiente de uso cultural. No Brasil constroem o posto de saúde, a biblioteca e muitas vezes esses equipamentos são usados só metade do dia. Enfim, de nada adianta resolver o problema da educação se não atacarmos em outras frentes.
Quanto aos transportes, não sou contra o carro, mas devemos ter a opção de não usá-lo, com alternativas de transporte de massa.
MARCOS AZAMBUJA – Há muitos e muitos anos me dou conta de que o Brasil tem um diagnóstico extraordinário sobre si mesmo. Ele se analisa com lucidez, se vê com clareza, o que não tem são terapêuticas, não adota os remédios. Fizemos ao longo do tempo uma série de observações monotematicamente. Sou do tempo em que governar era abrir estradas, assim como combater a saúva. Agora é a educação. O país tende a esquecer a orquestração de interesses em favor de um assunto que num dado momento é obsessivamente valorizado.
Queria defender um pouco os políticos. A primeira função do político é se eleger, a segunda é se reeleger. A política é feita com o objetivo da captura do poder e sua conservação. Pedir ao político uma visão de estadista, de longo prazo ou orquestrada no interesse nacional é negar a ideia da política como um instrumento para obter votos e permanecer no poder. Creio que devemos ter um pouco mais de tolerância com os limites da política como o exercício permanente de manipulação da opinião pública.
Vivi décadas fora do Brasil e o que me assombra quando estou aqui é ver como somos de certa maneira homogêneos na visão. Não ouvi nada aqui que não entendesse completamente ou que não fosse parte de meu próprio repertório de ideias. Somos um país extraordinariamente convergente, não temos cisões ou rupturas que levem a impossibilidades de reconciliação. É o que impressiona no Brasil. Então estou um tanto preocupado com uma coisa que foi pouco tocada na sua palestra, o problema da poupança. Quem diz que o consumo está esgotado e o investimento é o caminho tem de pensar em poupança. De onde ela vem? É mais externa, talvez esteja um pouco esgotada. Mas como fazer uma poupança interna? Tenho a impressão de que a fraqueza da poupança brasileira é a saúva atual.
LUIZ GORNSTEIN – Gostaria que você fizesse uma comparação entre o projeto do senador Suplicy, da renda básica de cidadania, e o Bolsa Família.
JOÃO TOMAS DO AMARAL – Todas as questões sociais, para que sejam solucionadas, apontam como luz no fim do túnel a educação. Parece que a educação tem sido tratada como o grande armário, tudo aquilo que se quer discutir na sociedade tem de caber nele. O Plano Nacional de Educação, do decênio 2011-2020, que já está em prática, até hoje não foi votado. Se for votado e aprovado, já passaram cinco anos de vigência. Então estamos sempre vivendo um processo defasado.
ADIB JATENE – Minha preocupação quando estive no governo foi montar esquemas financeiros para fazer funcionar a atividade. Tenho pensado nesse problema financeiro e de repente verifiquei que em São Paulo estão as melhores estradas do Brasil. Por quê? Porque foram feitas em parcerias público-privadas. O governo tem sistematicamente pretendido construir portos e aeroportos. Isso gera um potencial incrível de corrupção. Se mudarmos o esquema e a infraestrutura deixar de ser responsabilidade do governo, ele terá fôlego para cuidar da educação, saúde etc.
CLAUDIO – A questão da poupança é chave. Qualquer possibilidade de crescimento de longo prazo do Brasil tem de passar pelo equacionamento da poupança. Como o próprio doutor Jatene colocou, o Estado não possui capacidade de fazer tudo, ele tem de partilhar. Mas como são setores de bens públicos, ele não pode se omitir em relação à regulação. Aí reside o calcanhar de aquiles, o governo faz ad hoc a regulação setorial, de acordo com as necessidades de curto prazo. Falta-nos saber para onde queremos ir e definir não só quais setores queremos alavancar, mas como vamos regular isso. No campo da saúde, por exemplo, o Estado é um dos principais compradores, seja de equipamentos, seja de medicamentos, e não tem dinheiro.
ADIB JATENE – Podia ter muito mais dinheiro se não tivesse investido nessas outras coisas.
CLAUDIO – Mas para isso, doutor Jatene, o que é preciso? Definir as metas dos setores para dez anos à frente. Deixar claro quais são as regras, os objetivos, quais os setores chaves e equacionar ao mesmo tempo a poupança. Sem isso, a poupança não aparece.
Em relação à educação, cada vez que levantam a questão, tenho certo medo, porque dependuram tudo nela. A educação tem dois campos, um que está estabelecido no âmbito da escola e outro, no âmbito da família. Que temos uma política educacional frouxa, não há muita discussão. No campo social, mesmo sendo condescendentes com a política, o Estado funciona. Não há político no Brasil que ganhe uma eleição e fale em projetos de mais de quatro anos. Esse é um dos aspectos complicados da política educacional, solucionar um problema complexo e estrutural num espaço tão curto de tempo. Não há uma estratégia de médio e longo prazo.
ZEVI GHIVELDER – O senhor está querendo dizer que escolaridade é uma coisa e educação é outra?
CLAUDIO – A educação na escola é parte do processo educacional geral da sociedade, porque a escola não pode resolver um problema de educação que está no âmbito da família. Esse depende de várias coisas – condições de habitação, água e saneamento. Qual era a principal reivindicação dos trabalhadores na primeira revolução industrial? Chegar em casa e poder dormir. Não consigo imaginar que o processo educacional possa ter bons resultados se o núcleo familiar estiver completamente desestruturado.
Muitas vezes se joga para o professor a responsabilidade de dar conta de um problema que é de natureza muito mais complexa. Por exemplo, para retomar o tema da cultura, a boa educação na escola tem de criar condições de sociabilidade, de relações coletivas nos espaços fora da escola. Tenho de olhar tudo de modo abrangente. A educação sem política de saúde, sem saneamento, sem política cultural, enfim, é insuficiente. O vetor da política educacional propriamente dita, no sentido mais restrito, sem essas outras dimensões, é insuficiente.
O país tem uma política social, mas não uma estratégia das políticas sociais. O resultado disso é um verdadeiro canibalismo no interior do Estado pelos recursos. Cada um briga por seu pedaço e isso impede que as ações sejam feitas articuladamente. Um exemplo: o programa Saúde da Família tem uma equipe, o programa Bolsa Família outra, que vão aos domicílios. São duas equipes nos municípios, se não houver mais, estou falando das principais. O cidadão pobre tem de bater em várias portas, não existe uma única de entrada. Essa configuração é desfavorável aos resultados da política social.
Quanto à renda básica do Suplicy, vou ser muito direto, não é por aí. Constituímos um movimento de reativação do mercado de trabalho, com todos os seus problemas e estamos num movimento de transição demográfica, o que significa que temos a possibilidade de equacionar a reprodução das pessoas através do mercado de trabalho e não da política social. Não temos tempo para tratar de todos os aspectos levantados, mas um deles é este: o mercado de trabalho é considerado um instrumento fundamental para o acesso à renda e na verdade ele é muito maior, na vida adulta ele é o locus da socialização. É nele que acabamos encontrando com quem vamos casar, onde fazemos amigos. O sociólogo italiano Domenico de Masi discute a sociedade do ócio, mas é através da produção que nos legitimamos socialmente.
Além do que o Suplicy propõe da renda básica ou do que Domenico de Masi diz da sociedade do ócio, necessitamos de valores morais e éticos, de outras formas de socialização e legitimação. Com certeza Suplicy diria que sou muito conservador. Mas hoje no Brasil o ponto chave é construir um mercado de trabalho de melhor qualidade. O nosso é ruim, com pouca produtividade e uma relação de baixíssima confiança entre empregado e empregador. Isso precisa ser modificado, não vamos construir país algum minimamente estruturado com rotatividade alta e empregador também sem nenhum compromisso com o trabalhador.
ZEVI – Como é que o senhor vê a CLT [Consolidação das Leis do Trabalho]?
CLAUDIO – Retomo a questão do Chile e da Espanha. Não acredito que vamos nos desfazer da noite para o dia de um instrumento que tem 70 anos. Imaginem o número de advogados que vivem disso. O primeiro foco de resistência a mudanças na CLT nasce entre os advogados. Primeiro porque é a Justiça mais rápida do país, ao contrário da Justiça Civil. Segundo: são causas que dão um retorno alto. A CLT compõe um conjunto de interesses muito substantivos em que não vamos mexer da noite para o dia. Seria importante que diagnosticássemos aspectos decisivos do ponto de vista do deslocamento do modelo de regulação de natureza estatal para o âmbito da negociação coletiva.